quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Carlos Moore desconstrói senso comum sobre o racismo.

Carlos Moore desconstrói senso comum sobre o racismo.


Carlos Moore, um dos mais importantes intelectuais negros da atualidade, veio à Curitiba no último dia 11 de dezembro para relançar o livro Racismo e Sociedade – Novas Bases Epistemológicas para entender o racismo, da editora Nandyala. Cubano radicado na Bahia, é doutor em Ciências Humanas e em Etnologia pela Universidade de Paris e chefe de Pesquisa na Escola para Estudos de Pós-Graduação e Pesquisas na Universidade do Caribe, em Kingston, na Jamaica. Moore conversou com a equipe da Imprensa da APP-Sindicato e falou sobre falácias sobre a origem do racismo, da importância de se ter estudos sérios sobre o assunto e afirma: “o racismo é um problema dos brancos”. Confira na entrevista: Qual é o tema principal do livro?

É o racismo através dos tempos, porque essa ideia que temos de que o racismo é algo recente é falsa. As pessoas supõem que o racismo tenha surgido por causa da escravidão há 400, 500 anos. Esta ideia está enraizada nas mentes e na academia. O racismo tem entre 3 e 4 mil anos de existência. Temos indícios claríssimos de racismo há 1.700 anos A.C.

Pode dar um exemplo?

Um exemplo é o Rigveda, que é o livro sagrado do hinduísmo. Nele estão descritas cenas de extermínio racial, na qual os invasores brancos dizem que Deus os mandou com a missão de exterminar o que chamavam de “extirpe” negra.

Já era contra os negros naquela época?

Claro, pois os negros estavam disseminados no planeta inteiro. A raça negra não era raça neste sentido em que hoje projetamos, porque eles não se sabiam negros. Os povos melanodérmicos – de pele preta – surgiram na África. Não havia outros povos. A raça branca é recente, que data entre 12 e 18 mil anos. Antes disso não havia brancos, nem amarelos. As raças leucodérmicas são recentes (caucásico-europóide e sino-nipônico-mongol).

A raça negra surgiu há 3 milhões de anos, concomitante com o surgimento da humanidade. Não era uma questão política. Durante 3 milhões de anos a humanidade teve pele preta porque surgiu em latitudes onde a pele protegia o organismo humano. Se fosse branca, não haveria existido a humanidade, pois era necessário um escudo contra os raios solares.

Se não fosse isso a humanidade não teria prosseguido…

Sim. Quando os humanos modernos saíram da África há 50 mil anos eles foram para climas distintos, onde havia o mínimo de raios ultravioletas, e aí começaram a morrer. Por processo de seleção natural surgiram duas outras raças que estava mais adaptadas porque a pele clara pode captar melhor o pouco de raios violetas que existem nestas zonas euro-asiáticas, do norte.

Essas três “raças”, que não se conheciam, entram em combates profundos e violentos por recursos. Os grupos que avançaram para o sul começaram a despejar os negros em lutas cruéis. A partir daí esses grupos se reconhecem como grupos distintos e surge o conceito de raça.

Essa história é muito antiga, mas em pleno século XXI ainda não se superou essa disputa…

Não há como superar, porque as pessoas sequer sabem que isso ocorreu e que isso deu lugar a um tipo de consciência que os domina hoje.

Por exemplo, a disputa entre mulher e homem não está superada, mas ninguém sabe de onde surgiu. É muito longínqua mas ninguém está nem aí. As pessoas falam de sexismo em um contexto atual contemporâneo, mas onde estão os estudos sobre sexismo que se remontam há 5 mil, 10, 15 mil anos? Não há!

E você acha que o aprofundamento desses estudos ajuda a combater o racismo hoje?

Claro. Não se pode combater uma coisa que não se conhece a existência, de como surgiu, como se transformou ou como atravessou os milênios. São milênios de sedimentação. Tendo essa visão panorâmica e histórica, baseada no concreto, aquilo que a genética, por exemplo, e a biologia molecular nos permitem conhecer, assim podemos começar a analisar o problema, a partir de outras bases epistemológicas.

Outro conceito que você contesta é que o racismo no Brasil foi mais brando que em outros países como nos EUA. Porque aqui ele foi mais perverso?

Eu não acredito em um racismo mais suave ou cordial. Racismo é uma forma de violência total. É uma rejeição total do outro, uma rejeição genocida. Por trás de todo racismo há uma intenção do genocídio, que não é o caso do sexismo. Homem não quer eliminar a mulher. Ele quer mantê-la em um posições subalternas, mas não quer exterminar sua esposa ou filha. A mesma coisa com homossexuais. As pessoas não querem exterminá-los da face da terra, pois podem ser às vezes os próprios filhos. No caso do racismo sim.

No Brasil, o extermínio que se está buscando é através da miscigenação. Uma coisa é falar de casamento entre iguais e outra coisa é miscigenação programada. Isso é eugenismo. A visão brasileira se baseia na noção de que se você cruza constantemente a raça negra com a raça branca, numa situação de inferioridade dos negros, você vai terminar por acabar com essa raça, porque o inferior quer ascender, e a ascensão no Brasil é branquear-se. Não é aceitar a diversidade, é eliminar. Esse racismo é mais letal.

Nos EUA se baseia no apartheid, que é agregador. Há dois grupos compactos e há possibilidade de negação, mas o racismo que temos aqui é de tipologia ibero-americana, ela é atomizadora. Quando se atomiza, você não negocia. É um racismo pré-industrial.

Como você acha que está a evolução da luta do movimento negro atualmente, com a adoção de medidas como cotas e ensino da cultura africana nas escolas?

Acho que o movimento negro está levando uma luta extraordinária. Mas ele está levando o peso do racismo da sociedade. Acho que a sociedade não pode progredir assim. O racismo vem dos brancos, então são os brancos que tem exercer um movimento e uma força de contraposição ao racismo.

Quais são as distorções que a mídia produz em torno desta questão? Pode citar?

A imprensa não é diferente da sociedade. Dentro da sociedade racista a imprensa tem seu papel. Assim como a universidade, ela reproduz os estereótipos e o sistema dominante. A imprensa não está aí para contestar. Ela descredita as cotas, o movimento negro, qualquer coisa que o movimento antirracista propõe a imprensa esta lá para barrar, distorcer, destruir, porque a imprensa faz parte do status quo – como a academia e a igreja. Em uma sociedade racista as instituições são racistas.

Há jornalistas que individualmente se dão conta disso e tentam nadar contra a corrente. Os movimentos antirracistas devem favorecer essas informações objetivas para atingir estes jornalistas.

Você acha que valorizar as contribuições que a cultura africana trouxe para a sociedade é uma das formas de modificar este pensamento?

Claro. É contribuir com a verdade. Falar dessa contribuição é simplesmente falar a verdade. Acontece que as escolas nunca valorizaram isso. Valorizar estas contribuições é simplesmente ser objetivo. Por exemplo, a ideia de que egípicios são brancos está bem enraizada, porque consideram impossível que africanos tenham construídos a primeira civilização mundial, que é extraordinária. Isso não compagina com aquilo que eles têm na cabeça como sendo negro.

Tem outro exemplo para me dar?

Olha a televisão: brancos representam a virtude, a pureza e a nobreza. O negro é bandido, inferior. Sempre aparece como sendo alguém violento.

Sendo que eles que sofreram violência historicamente.

Publicaram o mapa da violência no Brasil: em 10 anos, mais de 225 mil negros foram mortos! Em 10 anos, na Guerra Civil do Iraque morreram 138 mil pessoas. Imagina a hecatombe! Mas isso aqui é normal.

No Brasil não se admite que há racismo, mas basta ver que, por exemplo, na Assembleia Legislativa do Paraná nunca houve um deputado negro. É muito evidente.

E isso é violência, porque no Paraná 30% da população é negra. Isso quer dizer que esses 30% que não se vê nas prefeituras, no governo de estado, nos parlamentos, nas universidades, então sendo excluídos violentamente. Mas o racismo vê isso como algo normal.

Dê uma resposta para quem diz que defender a cultura negra é racismo ao contrário.

Não tenho nem que falar sobre isso! Porque racismo é sistema de poder. Os negros não tem poder em nenhum lugar no mundo. Mesmo na África, são os brancos que mandam e se os dirigentes se opõem são assassinatos. O negro não tem poder de ser racista em nenhum lugar, mesmo se fosse possível. Racismo negro não é nem possível porque os negros não podem reinventar a história. O racismo surgiu uma vez só. Não posso nem fazer comentários sobre algo tão absurdo, porque eu estaria na defensiva e é isso o que o racista quer: jogar essa acusação para que você se defenda. Eu não perco tempo com essa questão, eu coloco todo o meu tempo no ataque ao racismo.

- Leia a matéria completa em: http://scl.io/2GvzROcQ#gs.blxMvDM

A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO TERMO CABOCLO - SOBRE ESTRUTURAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS NO MEIO RURAL AMAZÔNICO



Deborah de Magalhães Lima

O termo caboclo é amplamente utilizado na Amazônia brasileira como uma categoria de classificação social. É também usado na literatura acadêmica para fazer referência direta aos pequenos produtores rurais de ocupação histórica. No discurso coloquial, a definição da categoria social caboclo é complexa, ambígua e está associada a um estereótipo negativo. Na antropologia, a definição de caboclos como camponeses amazônicos é objetiva e distingue os habitantes tradicionais dos imigrantes recém-chegados de outras regiões do país. Ambas as acepções de caboclo, a coloquial e a acadêmica, constituem categorias de classificação social empregadas por pessoas que não se incluem na sua definição.
Este artigo discute como a construção histórica do termo e o uso da palavra caboclo refletem a história da formação da sociedade amazônica, com sua estrutura de classes e a representação social das categorias e grupos que a compõem. Este sentido do termo é abordado para questionar as implicações do uso acadêmico da palavra caboclo.

OS USOS DA PALAVRA CABOCLO


Na fala coloquial, o caboclo é uma categoria de classificação social complexa que inclui dimensões geográficas, raciais e de classe. Considerando a dimensão geográfica, o caboclo é reconhecido como um dos “tipos” regionais do Brasil (cf. IBGE, 1975). Entre esses tipos gerais estão os gaúchos do sul, as baianas da Bahia e os sertanejos do nordeste, para citar alguns. A distinção de cada tipo regional está relacionada com a geografia, a história da colonização e as origens étnicas da população. Nesse sentido, os caboclos são reconhecidos pelos brasileiros em geral como o tipo humano característico da população rural da Amazônia.
Enquanto outros tipos regionais constituem representações estereotipadas mais restritas (aparecendo em descrições gerais e no folclore, para exibir as identidades regionais), o caboclo é também uma categoria de “mistura racial” e refere-se ao filho do branco e do índio. A combinação de um “tipo racial” específico e uma região geográfica está relacionada à história da Amazônia. Em contraste com outras regiões do Brasil, a colonização da Amazônia incluiu políticas para integrar (ou seja, escravizar, estimular casamentos mistos e “civilizar”) a população indígena à sociedade colonial.
A influência do português também foi maior na Amazônia. Devido a condições climáticas, bem como a oportunidades econômicas, imigrantes de outros países europeus preferiram se estabelecer no sul do Brasil. Em comparação com o nordeste e o sudeste, o número de escravos negros na Amazônia também foi pequeno, e a economia colonial, voltada para a extração 3de produtos florestais, dependia principalmente de trabalho indígena.
Além do caboclo, existem no Brasil outras categorias populares de raça mista, tais como o mulato (o filho do branco e do negro) e o cafuzo (filho do índio e do negro). Mas, enquanto tais categorias raciais não se associam a uma região brasileira específica, os caboclos, sim. E, em contraste com outros tipos regionais, o nome caboclo também é usado como categoria de classificação social. Embora a associação entre os conceitos coloquiais de raça e de classe não seja sempre real ou precisa, ela é usada na construção de uma representação da classe superior amazônica como branca, enquanto se faz referência à classe baixa rural como cabocla.
Na região amazônica, o termo caboclo é também empregado como categoria relacional. Nessa utilização, o termo identifica uma categoria de pessoas que se encontra numa posição social inferior em relação àquela com que o locutor ou a locutora se identifica. Os parâmetros utilizados nessa classificação coloquial incluem as qualidades rurais, descendência indígena e “não civilizada” (ou seja, analfabeta e rústica), que contrastam com as qualidades urbana, branca e civilizada. Como categoria relacional, não há um grupo fixo identificado como caboclos. O termo pode ser aplicado a qualquer grupo social ou pessoa considerada mais rural, indígena ou rústica em relação ao locutor ou à locutora. Nesse sentido, a utilização do termo é também um meio de o locutor ou a locutora afirmar sua identidade? Não cabocla ou branca.
No entanto, nem a natureza conceitual nem a relacional do termo são explicita. Como resultado, o uso coloquial do termo leva à suposição de que existe uma população concreta que pode ser imediatamente identificada como cabocla e carrega a identidade de caboclos. Além disso, nas últimas décadas, a literatura antropológica tem feito uso do termo, mas sem considerar a diferença entre o seu significado e o uso coloquial. Daí a necessidade de distinguir cada uso do termo e se questionar sobre a possibilidade de se instaurar um significado neutro para um termo consagrado pelo uso popular.
Em contraste com o uso coloquial, o conceito de caboclos empregado na antropologia aponta uma categoria social fixa, ao invés de relacional: o campesinato histórico da Amazônia. A definição de camponeses, assim como a de caboclos, também é problemática e requer especificação. As politicas coloniais, implementadas durante o século XVIII, explicitamente objetivaram a constituição de um campesinato amazônico que viria a produzir bens para o mercado europeu. Nos seus trezentos anos de existência, o campesinato amazônico mostrou períodos de intensa participação no mercado, alternados com períodos de baixa participação, quando predominaram as atividades de subsistência.
O uso objetivo do termo caboclo pretende especificar uma categoria social à qual falta um termo próprio de autodenominação e aponta para o processo histórico de sua constituição. Embora o termo transmita um significado preciso aos leitores em potencial desses trabalhos acadêmicos, ele deixa uma pergunta a ser respondida: se é um termo de identificação do observador, qual é a identidade própria das pessoas às quais o termo se refere? Os chamados caboclos, isto é, os pequenos produtores rurais amazônicos, não têm uma identidade coletiva, nem um termo alternativo e abrangente de autodenominação. A única categoria de autodenominação comumente empregada por toda a população rural é a de “pobre”. Noções mais fortes de identidade baseiam-se no parentesco, na religião, na ecologia do assentamento e na ocupação econômica do grupo e do indivíduo, como será discutido abaixo. Esses parâmetros não constituem uma base de unificação, mas de diferenciação no interior da própria população rural. As famílias constituem a base da formação de pequenos grupos e estão diretamente relacionadas à organização das comunidades rurais. E, dentro de cada comunidade, grupos familiares diferentes freqüentemente disputam a liderança local. Portanto, como os camponeses em geral, a categoria social caboclo é caracterizada pela ausência de uma identidade coletiva forte. A população rural tem, ao contrário, identidades locais, do ponto de vista de uma observação externa que nela percebe traços comuns.
Tal evidência permite perceber melhor a natureza do conceito de caboclo. O caboclo é uma categoria de classificação social empregada por estranhos, com base no reconhecimento de que a população rural amazônica compartilha um conjunto de atributos comuns. Mas esta não é uma categoria social homogênea nem absolutamente distintiva. É importante frisar a natureza conceitual do termo pois existe o perigo de tomar se o termo caboclo como uma identidade e desse modo criar fronteiras absolutas para um grupo social que não é encontrado na vida real. Ao contrário, o termo caboclo deve ser entendido como uma categoria geral de referência e identificação.
A natureza do termo caboclo é portanto conceitual e consiste em uma categoria social de pensamento analítico. Sendo uma categoria social, o termo é uma abstração, uma unidade de um sistema de classificação social projetado para retratar as diferenças entre as pessoas na sociedade. Em contraste com um grupo social, uma categoria social consiste em uma agregação artificial de pessoas baseada na identificação de atributos comuns compartilhados por indivíduos que não se engajam necessariamente em um relacionamento social em razão dessa similaridade. Os atributos que definem uma categoria social podem ser biológicos, sociais ou culturais. Um grupo social, por outro lado, consiste em uma agregação humana real, que é definida por interações estreitas e relacionamentos pessoais (ver Keesing, 1975: 9-10).
Assim, habitantes da comunidade Nogueira, uma pequena localidade da região do médio Solimões, no Amazonas, formam um grupo social. Eles interagem regularmente e estão ligados por relações de parentesco. Os habitantes de Vila Alencar, localizada a apenas 4 horas de distância de Nogueira, formam um grupo social semelhante. Mas, enquanto os moradores da cidade de Tefé podem fazer referência a ambas as localidades como sendo “comunidades caboclas” (porque ambas apresentam os atributos que definem a categoria social caboclo), os moradores desses dois lugares não fazem parte de um mesmo grupo social, uma vez que não têm e provavelmente não terão no futuro próximo, qualquer tipo de relacionamento periódico.
Os atributos que definem a categoria social caboclos são econômicos, políticos e culturais. Nesse sentido, o termo refere-se aos pequenos produtores familiares da Amazônia que vivem da exploração dos recursos da floresta. Os principais atributos culturais que distinguem os caboclos dos pequenos produtores de imigração recente são o conhecimento da floresta, os hábitos alimentares e os padrões de moradia. Devido a seus atributos econômicos similares, no entanto, os dois, caboclos e imigrantes, podem ser alocados na categoria social mais ampla de camponeses.

O ESTEREÓTIPO DO CABOCLO: PARÂMETROS DE CLASSIFICAÇÃO SOCIAL

Existem pelo menos duas etimologias diferentes para a palavra caboclo. Costa Pereira (1975:12) cita Teodoro da Silva, que afirma que caboclo deriva do tupi caa-boc, que quer dizer “o que vem da floresta”. Parker (1985a: xix) sugere outra etimologia, encontrada no Dicionário de Aurélio B. Ferreira (Ferreira, 1971). Ferreira sugere que o nome vem da palavra tupi kari’boka, que significa “filho do homem branco”. Ambas as etimologias são especulativas, mas na minha opinião a primeira tem mais probabilidade de estar correta. Isso porque, na Amazônia, caboclo foi inicialmente usado como sinônimo de tapuio, termo genérico de desprezo que os povos indígenas usavam quando se referiam a indivíduos de outros grupos. Em tupi, de acordo com Veríssimo (1970 [1878]:14), a palavra tapuio significa o hostil, o inimigo, o escravo. Após a colonização, o termo foi usado para designar o ameríndio assentado e trazia as mesmas conotações de desprezo que tinha quando usado entre os índios.
Como tapuio, caboclo é também um termo de desprezo em relação ao outro, e um tal significado de alteridade é encontrado na primeira etimologia. Isso é expressão pela alusão a uma espécie de expatriação: um outro cuja origem é selvagem (“o que vem da floresta”). A referência a casamento misto, por outro lado, parece-me menos provável porque só subseqüentemente caboclo adquiriu o significado de um cruzamento entre branco e ameríndio, e isso foi por extensão. Veríssimo e outros autores criticaram essa evolução semântica, mantendo que o uso popular da palavra tapuio ou caboclo para designar a mistura de ameríndio e branco foi “errônea” (Veríssimo, 1970 [1878]: 13; Costa Pereira, 1975: 12).
A utilização recente do termo caboclo é caracterizada por uma referência similar ao outro e à exclusão. Em apenas algumas instâncias caboclo é usado como termo de auto-atribuição (ver abaixo). Na maior parte das vezes, o termo é rejeitado por aqueles que designam. Considerando-se a ampla região geográfica em que caboclo é usado como termo coloquial, pode-se observar que ele é aplicado a uma seqüência de grupos sociais menos abrangentes de uma maneira segmentada. Tanto Ribeiro (1970: 375) quanto Wagley (1976: 105) descrevem essa segmentação, e, na minha experiência no médio Solimões, também constatei a pertinência dessa interpretação.
Para a população urbana das cidades maiores da Amazônia, Belém e Manaus, a população do interior - incluindo a população urbana das cidades menores como Tefé - pode ser considerada cabocla. Assim, nessas cidades maiores, numa conversa, poder-se-ia discutir sobre “o caboclo de Tefé”. Entre a população urbana de Tefé, como nas cidades amazônicas menores, são principalmente os membros da classe superior que se referem freqüentemente aos habitantes rurais como caboclos. A classe superior urbana pode às vezes se referir também à camada pobre das cidades como caboclos. A população rural rejeita o rótulo caboclo e considera que ele não se refere a ela, mas aos índios .

“O termo tapuio foi também aplicado ao ameríndio tribal, quando se o distinguia do ameríndio assentado pelo acréscimo do adjetivo brabo (selvagem), em oposição a manso (domesticado) ou “civilizado”. A etimologia de tapuio também é controversa. Inglês de Souza (1973 [1876]: 144) diz que deriva das palavras tupi tapa e puir, o que quer dizer “o que foge de casa”. Essa etimologia é semelhante à primeira etimologia de caboclo mencionada acima.”

“Na pesquisa de Wagley, os habitantes da zona rural diferenciavam-se por ocupação. Os fazendeiros rurais designavam os seringueiros com o termo caboclo. Os seringueiros, por outro lado, usavam o termo caboclo para se referirem ao ameríndio (Wagley 1976: 105-5).”


Em Roraima, o termo caboclo (deformado para caboco) refere-se àqueles considerados índios civilizados. De acordo com Rivière (1972: 28-31), o termo também é rejeitado por aqueles a quem se refere e dirigir-se a uma pessoa chamando-a de caboclo “é altamente depreciativo e o termo carrega um sentido pejorativo definido” (Rivière; 1972: 29).
Wagley (1976: 105) conclui: “O ‘caboclo’ amazônico... só existe no conceito dos grupos de status mais elevado referindo-se aos de status inferiot”. Ribeiro (1970: 375) concorda com isso, afirmando que o caboclo é sempre o outro. O termo é transferido para a categoria social seguinte que se situa numa posição inferior à do orador, até que alcance o índio. Como o termo caboclo transmite o significado de que o outro é inferior ao locutor ou à locutora, sua utilização também constitui um meio de atribuir a identidade de branco a si próprio.
No entanto, Wagley (1985: viii) não está completamente certo em sua afirmação de que caboclo nunca é usado como termo de auto-designação (“Ninguém, nem mesmo o índio inocente, usa o termo para se identificar”). Há grupos indígenas que usam, eles próprios, o termo caboclo como autodenominação. Por exemplo, no médio rio Tocantins, os gavião falam de si mesmos como caboclos. O contexto para essa utilização é a oposição e o conflito em relação aos brancos, a quem os gavião se referem usando um termo específico: kupen (Laraia e Da Matta, 1967: 122-3). Cardoso de Oliveira (1972a) e Fígoli (1985) dão outros exemplos do uso de caboclo como termo de auto denominação. Até os anos oitenta, os ticuna do alto Solimões e as tribos do alto rio Negro em contato com os brancos, definiam-se como caboclos em oposição tanto aos índios isolados (“selvagens”), quanto aos brancos. Também no Acre e em outras regiões onde predominou a extração da borracha, como no sudoeste do Amazonas, o termo caboclo é ainda usado por grupos indígenas, e nessas áreas os brancos são chamados cariú. No médio Solimões, os descendentes dos grupos indígenas remanescentes (cambeba, ticuna, maioruna, uitoto, miranha e cocama) ocasionalmente usam o termo caboclo como um rótulo de auto- identificação, embora o façam apenas quando relembram o passado.
No contexto de eventos contemporâneos, esses grupos identificam-se como índios, uma vez que esta é uma categoria que adquiriu valorização política (ver Faulhaber, 1987a e 1987b).

Van Den Berghe (1979) apresenta uma análise da classificação coloquial de grupos étnicos na Colômbia como índios, mestiços ou cholos. Essa classificação, com três categorias étnicas, apresenta uma complexidade análoga à do termo caboclo.

Deve se acrescentar que o uso da palavra caboclo como termo de autodesignação por alguns grupos indígenas está sempre ligado ao contexto de sua oposição e conflito interétnico com os brancos. Entre si, eles empregam palavras nativas para “gente” ou os nomes indígenas pelos quais são conhecidos - como os gavião, ticuna, miranha, etc. É somente no contexto local de contato interétnico entre populações indígenas e brancas que o termo caboclo é reconhecido como um rótulo de identificação e/ou um termo de autodenominação para os grupos indígenas. Em outros contextos, o termo caboclo está associado à população amazônica rural não índia.
Caboclo e índio são termos equivalentes no sentido de que ambos são essencialmente rótulos de identificação que podem ou não ser usados para a auto-identificação. Embora uma identidade índia correntemente tenha significação política, até recentemente o termo (que se origina, como se sabe, de um erro histórico) foi apenas uma categoria genérica de identificação utilizada pelos brancos e não tinha relação com as identidades dos povos indígenas aos quais se referia . A analogia entre os conceitos de índio e caboclo é útil, pois a validade do termo índio há muito se estabeleceu e assim ajuda a compreender como um rótulo de identificação, semelhante ao de caboclo, ganhou significado concreto e foi aceito por quem o recebeu.
Atualmente, no médio Solimões, a população rural é ainda chamada de caboclos. Escutam-se ocasionalmente outros nomes genéricos, tais como trabalhadores rurais, ribeirinhos ou agricultores, mas estes não carregam a mesma conotação regional que caboclo. “O caboclo” é mencionado sempre que “o homem amazônico típico” está em discussão. Embora o termo seja às vezes aplicado aos pobres das cidades, a imagem desse “amazônida típico” é essencialmente rural e ribeirinha. Um calendário de 1988 de uma grande companhia multinacional foi preparado com material fotográfico sobre “tipos brasileiros” e ilustrou o caboclo com uma fotografia de um homem forte remando uma canoa, mostrando uma floresta tropical ao fundo. Essa imagem do caboclo é recorrente. O termo evoca a figura de um homem associado com o meio ambiente amazônico.
O simbolismo masculino do caboclo não é só conseqüência do artigo masculino (“O caboclo”). Enquanto outras categorias sociais, tais como camponês, poderiam evocar a imagem de uma família e atividades de subsistência, a conotação masculina do caboclo está relacionada com o papel econômico dos homens na execução das atividades de subsistência mais próximas da natureza: a caça e a pesca. Conforme se discute abaixo, o meio ambiente amazônico e o comportamento econômico do caboclo são componentes centrais do seu estereótipo. Embora a mulher cabocla desempenhe um papel econômico chave, ela só aparece em associações secundárias ao protótipo. Em relação ao papel do homem, o dela é menos exótico e mais próximo da cultura, isto é, a agricultura e as atividades domésticas. Ela é apresentada, entretanto, em outro contexto: como “a caboclinha”, simbolizando uma sensualidade mansas.
O arquétipo do caboclo também é composto de traços culturais que distinguem seu modo de vida de uma existência branca e urbana. As características de uma arquitetura distinta, os meios de transporte que usa seus instrumentos de trabalho, seu conhecimento e modo de manejar os recursos da floresta, seus hábitos alimentares, sua religiosidade, mitologia, sistema de parentesco e diversos maneirismos sociais expressam a existência de uma cultura cabocla que é básica para o conceito desse típico amazônida.

Ver discussão sobre o estereótipo índio em Cardoso de Oliveira (1972b). Ver também em Laraia e Da Mana (1967: 122) o estereótipo regional dos gavião.
De fato, a existência de uma população rural que tem um estilo de vida distinto, em estreito relacionamento com a floresta, justifica que ela seja agrupada como uma categoria social especifica. Além disso, as políticas coloniais iniciais induziram à criação de uma classe amazônica subalterna, com a qual a categoria social caboclo está intimamente associada. No entanto, o conceito regional do caboclo é mais que uma referência a essa população rural ou ao seu estilo de vida. Inclui um estereótipo que sugere que esse habitante da Amazônia é preguiçoso, indolente, passivo, criativo e desconfiado. E os mesmos traços culturais que distinguem os caboclos (a casa de paxiúba, a agricultura de rodízio, os métodos indígenas de pesca e caça, entre outros) são tomados como evidência de inferioridade, pois são vistos como “primitivos”. Além disso, as qualificações negativas também se relacionam ao fato de que caboclos são considerados pobres.
Como no caso do termo caboclo, pobreza também é um conceito cultural. O caboclo não é só pobre em relação a padrões de vida urbanos ou internacionais, mas também em relação a uma expectativa elevada para a performance econômica e social deste neobrasileiro na Amazônia.
Podem-se interpretar os estereótipos de gênero através da história da colonização. Os colonizadores portugueses foram principalmente homens, que tomaram as índias como esposas ou concubinas.

“A história da conquista masculina da Amazônia está simbolizada em ambos os estereótipos: o estereótipo masculino do exótico caboclo caçador e pescador, que enfrenta a natureza selvagem, e o estereótipo feminino, que representa a domesticação masculina da sexualidade indígena.”

Essa expectativa deriva da intenção colonial de se estabelecer um campesinato empresarial na Amazônia. Também se relaciona ao mito de que o meio ambiente amazônico é um reino de riquezas, que o campesinato ideal iria explorar materialmente. No entanto, a população rural era e ainda é confrontada com ambos: um meio ambiente duro, que só é abundante na aparência, e condições econômicas e políticas desfavoráveis instituídas desde o início do período colonial.
A idéia de que os caboclos devem levar a culpa por sua situação social baseia-se no estereótipo étnico do ameríndio9. Como os caboclos são os herdeiros de uma bagagem cultural indígena, acredita-se em que eles sigam a mesma indisposição que se atribui ao índio para desempenhar trabalhos árduos. Nessa extensão do preconceito, considera-se que os caboclos possuem a característica estereotipada da ociosidade indígena (em oposição ao ideal de produtividade). Comprova-se essa indolência fazendo referência à modéstia de sua moradia e às suas poucas conquistas econômicas. Suas condições de vida, por outro lado, não são levadas em conta. A exuberância da floresta e a magnitude do meio ambiente amazônico impõem um contraste em relação à pobreza e, junto com a questão da raça, essa comparação é responsável pelo fato de os caboclos serem julgados preguiçosos e, em muitos juízos, como fracassos.

O CABOCLO NA LITERATURA AMAZÔNICA

Na literatura amazônica, o tema do contraste entre o povo amazônico e seu meio ambiente é recorrente. Como Richard Preto-Rodas aponta em sua revisão da ficção amazônica, o tópico do “homem” em relação ao meio ambiente atravessa as principais fases estilísticas dessa literatura (Preto-Rodas, 1974). O material literário é uma fonte de dados especialmente relevante para a análise do estereótipo do caboclo, não só devido a seu potencial informativo, mas também porque, nesse caso, o espectro de interpretações apresentadas é dado por pessoas urbanas letradas que representam a essência do ponto de vista não caboclo. A questão da pobreza do caboclo é constantemente associada com a idéia coloquial de raça, isto é, como resultado de características inatas, herdadas do ameríndio. Como o tema da miséria social, a questão da composição racial da população pobre é tratada em termos extremamente ambivalentes.

“A utilização de material literário também é importante devido à escassez de pesquisa etnográfica sobre os caboclos. Criticando essa ausência, Salles e Isdeboki (1969: 258) dizem: “[até o final dos anos 60], a ficção literária foi a única fonte de conhecimento... sobre os caboclos”. Na discussãode Motta Maués (1989) da “identidade amazônica”, a literatura amazônica também é usada parailustrar construções regionais e representações negativas do caboclo e do meio ambiente amazônico.”


Como Preto-Rodas afirma, a literatura amazônica é caracterizada por uma tendência a retratar “o que é peculiar e exótico para o leitor brasileiro urbano médio” (Preto-Rodas, 1974: 182). Na caracterização da região, os elementos exóticos retratados são a exuberância da floresta e o folclore amazônico. Por outro lado, inclui-se a miséria social como tema de especulação. Comparadas às narrativas do século XIX e aos relatos dos viajantes estrangeiros do início do século XX, que preferiam descrever o ameríndio como o representante humano da Amazônia, as obras dos autores brasileiros só ocasionalmente se referem à população aborígene (Preto-Rodas, 1974: 195). Na literatura amazônica, o caboclo é o principal tipo humano descrito. Essa concentração provavelmente se relaciona ao fato de que o caboclo representa a desilusão de uma Amazônia civilizada. Enquanto o índio não é julgado pobre, o tema da pobreza está diretamente associado com o caboclo.
Embora o “fracasso humano” que o caboclo simboliza seja constantemente associado com o meio ambiente amazônico, essa associação não deixa de ser ambivalente. Na literatura amazônica, tanto o caboclo quanto o meio ambiente são representados de maneiras contraditórias. Além de ser retratada como paraíso tropical, a Amazônia também é representada como inferno verde (ver Preto-Rodas, 1974).
Um exemplo de tal desacordo encontra-se em Terra Imatura, de Alfredo Ladislau, originalmente publicado em 1923. O primeiro ensaio do livro apresenta algumas das opiniões contrastantes sobre a população e o meio ambiente amazônico na forma de um diálogo entre dois tipos regionais. Os dois interlocutores têm visões opostas sobre o potencial de desenvolvimento da região. Ambos, porém, concordam com o fato de que falta aos caboclos energia e vontade para levar a cabo essa tarefa por eles próprios.
Um dos interlocutores mantém que não só o meio ambiente, mas também as pessoas são inadequadas. A terra é julgada imatura, não preparada ainda para sustentar uma população civilizada e as pessoas são consideradas de uma cepa racial precária. A “raça mista frágil” é considerada “incapaz de empreender a dura tarefa de domesticar uma natureza resolutamente selvagem” (Ladislau, 1971 [1923]: 17). A única solução entrevista para desenvolver a Amazônia é através da introdução de uma “raça mais forte”.

“O ameríndio foi muitas vezes julgado preguiçoso ou “inapto para a civilização”, mas sua distinção étnica lhe conferia uma justificativa, como se assim fosse, para apresentar um comportamento econômico diferente do comportamento do branco. A diferença étnica, por sua vez, foi, e em muitos locais da Amazônia ainda é, vista em termos evolutivos, quando a tal “indolência” do ameríndio é considerada resultado do “primitivismo de sua raça”.”

O segundo tipo discorda disso. Acredita que a Amazônia é uma terra rica, capaz de sustentar um programa econômico bem-sucedido se os políticos parassem de negligenciar a região. Esse interlocutor diz: “[A Amazônia é] ainda terra estrangeira na consciência nacional” (Ladislau, 1971 [1923]: 18). Ao contrário do primeiro tipo, o segundo interlocutor mantém que a tarefa de desenvolver a Amazônia não deve ser entregue a migrantes de uma nação alienígena, mas aos brasileiros. No entanto, a idéia expressa mina o potencial do amazônico nativo de alcançar esse desenvolvimento sozinho. O caboclo não é considerado suficientemente forte nem determinado. A solução vislumbrada é organizar um “influxo de sangue forte”, e ele sugere que deveria vir da migração de colonos do nordeste do Brasil.
A associação ambivalente entre pessoas e seu ambiente continua em outras obras literárias amazônicas. Para simplificar a exposição, pode-se dizer que o espectro de opiniões invariavelmente adota, em diferentes combinações, as seguintes oposições binárias: população cabocla capaz/incapaz, com meio ambiente amazônico rico/adverso. A revisão de Preto-Rodas (1974) dá uma síntese simples da controvérsia na literatura. Aqui, eu gostaria de abordar um tema relacionado: a distinção entre caboclos e nordestinos na Amazônia.

CABOCLOS E MIGRANTES NORDESTINOS: CONTRASTES E COMPARAÇÕES

Até a primeira metade deste século, ocorreu uma migração em grande escala de colonos do nordeste do Brasil, principalmente em associação com a economia da borracha. O número exato de migrantes não é conhecido. Até 1910, as estimativas vão de 300.000 a 500.000 (ver Santos, 1980: 99). Seja como for, o número de nordestinos foi grande o suficiente para prover uma clara distinção entre o caboclo e as populações nordestinas durante a primeira metade deste século, e uma série de obras literárias daquela época se concentraram nessa distinção.
A separação entre caboclos e nordestinos é histórica e é importante considerá-la nesse sentido. Examinando-se o contexto literário em que a comparação entre as duas populações é feita, podemos observar como o estereótipo do caboclo se torna o tema do debate. Além disso, dando à análise dessa distinção uma dimensão temporal, é possível notar a evolução do significado do termo caboclo.
Um exemplo que pode ser tomado para analisar a distinção entre caboclos e nordestinos é encontrado nas obras de Alfredo Ladislau (1971 [1923]) e Vianna Moog (1975 [1936]). Esses dois autores mostram a mesma preocupação em classificar tipos de população amazônica em termos de suas origens, enfatizando assim a separação entre caboclos e nordestinos. Entretanto, esses dois autores diferem nas opiniões que têm de cada população. Mais especificamente em Moog encontramos uma tentativa de definir quem é o “genuíno” caboclo. Comparando sua definição com outras, anteriores e subseqüentes, observa-se a dimensão histórica do conceito de caboclo.
No ensaio Os Mongo-Malaios e os Sertanejos (1971 [1923]), Ladislau expressa insatisfação com a aplicação geral do estereótipo caboclo à população rural amazônica. Mas não tenta negar o preconceito geral de caboclos; sua crítica tem apenas a intenção de criar uma cláusula: a de que o estereótipo se aplica apenas a um subgrupo da população rural amazônica, pois não consegue distinguir entre o caboclo que descende da população amazônica aborígine e omigrante nordestino (Ladislau, 1971 [1923]: 73).
Para Ladislau, os dois constituem categorias sociais diferentes, classificadas por ele como os mongo-malaios (aludindo a uma teoria das origens raciais da população aborígine), e os sertanejos (os interioranos do nordeste). Ladislau prossegue explicitamente denegrindo o caboclo através do que ele chama de provas. O “caso real de um caboclo” é apresentado de tal modo que corrobora o estereótipo. “Infelizmente”, diz ele, “a representação convencional do caboclo preguiçoso e indolente é confirmada” (Ladislau, 1971 [1923]: 74). A cultura e o temperamento de um homem do nordeste (dado que também estaria apoiado em um caso real), por outro lado, diferem substancialmente dos 12 caboclo, e os dois homens são comparados do em termos antitéticos.
Entretanto, embora Ladislau seja de opinião de que os migrantes nordestinos tinham posição superior à dos caboclos, na verdade, entre eles, as posições eram inversas. Assim, o grande número de nordestinos que migrou para a Amazônia nas primeiras quatro décadas deste século era chamado pela população nativa por termos como arigós, nordestinos, colonos, cearenses e brabos. Em associação com esses termos, a população autóctone mantinha seus próprios estereótipos negativos dos migrantes. O nordestino era representado como um homem firme e violento, ignorante das formas de vida da floresta e não habituado à abundância de água.

Ladislau era ele próprio nordestino, e isso provavelmente influenciou sua avaliação dos dois povos. No entanto, sua opinião não era apenas pessoal: o favoritismo em relação aos migrantes nordestinos (considerados uma “raça melhor” que o caboclo) era generalizado.

Em contraste com Ladislau, Vianna Moog concorda com a classificação regional. Assim, em O Ciclo do Ouro Negro (1975 [1936]), o caboclo é comparado ao nordestino em termos favoráveis. A base da distinção de Moog entre os dois povos é sua origem diferente. Em contraste com a comparação de Ladislau, Moog não os diferencia com base em qualificações morais e intelectuais.
Na análise de Moog da constituição da população amazônica, o caboclo é apresentado junto com o ameríndio como um dos povos autóctones amazônicos. A apresentação do nordestino, por outro lado, enfoca sua experiência de vida contrastante: do nordeste árido para a região amazônica fluvial. Tendo assim descartado o nordestino da população autóctone, Moog critica o fato de os caboclos serem representados como grupo uniforme e propõe sua própria classificação de tipos de caboclos: o mameluco de Agassiz (uma referência à descrição feita pelo naturalista, cf. Agassiz, 1868), o mongomalaio definido por Ladislau e o caboclo genuíno que, para ele, só é representado pela raça mista. Volto a essa definição de caboclo depois de apresentar a comparação que faz Moog entre o que define como caboclo genuíno e o nordestino.
Criticando aqueles que seguem o favoritismo de Ladislau em relação ao nordestino, Moog (1975 [1936]: 74) afirma: “É tempo de fazermos justiça aos caboclos amazônicos genuínos, que até agora têm sido depreciados em comparações feitas com o cearense dos rios superiores”. A defesa de Moog da raça mista cabocla baseia-se nas teorias de raça que dominavam o pensamento intelectual de seu tempo (ver Schwarcz, 1993). Seguindo a linha otimista de interpretação da miscigenação, Moog considera o caboclo “um bom equilíbrio racial”. As qualidades das raças índia e branca são combinadas e produzem uma raça híbrida bem adaptada, capaz de conviver com o meio ambiente social e ecológico amazônico. E embora Moog confirme a falta de ambição do caboclo, é só para exaltar o fato de que essa qualidade lhe deu os meios para levar a vida no vale amazônico. Enquanto muitos migrantes nordestinos retornaram para casa depois do colapso da economia da borracha, o caboclo permaneceu, apesar das condições econômicas desfavoráveis. “Se não fosse pelo caboclo sem ambições, não teria sido difícil prever o futuro da população amazônica. Graças ao [caboclo]... a civilização amazônica continua sua marcha” (Moog, 1975 [1936]: 74).
Moog não está só em sua exaltação do caboclo. Tanto na literatura quanto no discurso regional, o que está representado como preguiça é considerado sabedoria. “O caboclo é um homem feliz”, ouvi freqüentemente dos negociantes urbanos em Tefé. Na idealização positiva, o caboclo é designado como alegre e sábio, como se diz, porque se satisfaz com a pura existência e é portanto capaz de aproveitar a vida com mínimo esforço. Preto-Rodas refere-se a Leão (1956: 207 e seguintes) como outra exaltação literária do caboclo.
Voltando à definição de Moog do caboclo genuíno, é importante considerar seu contexto temporal. Em 1878, Veríssimo afirmou que a população rural deveria ser considerada como formada por tapuios e caboclos. A preocupação acadêmica de Veríssimo era preservar o que era então o significado tradicional do termo, isto é, o “índio civilizado”. A inclusão da raça mista na mesma categoria, para ele, era errada. De acordo com Veríssimo, o termo certo para a raça mista era curiboca ou mameluco.
Em Moog, como em Ladislau, o esforço está em distinguir o nordestino dos caboclos. E especificamente em Moog, a preocupação é também definir quem são os caboclos genuínos. Em contraste com Veríssimo, Moog afirma que o termo se refere apenas à raça mista, enquanto o ameríndio civilizado é considerado o verdadeiro tapuio. Assim, em 1936, Moog expressa a visão de que tapuio e caboclo não são mais sinônimos.
Hoje a distinção entre o caboclo representante de uma “raça mista” e a segunda e a terceira gerações de imigrantes nordestinos é vaga. Só em umas poucas regiões amazônicas, onde o número de migrantes era grande e eles se concentraram em um assentamento (por exemplo, em Colônia, um assentamento perto da cidade de Santarém),ou não constituíram uma população miscigenada (como em regiões deantiga extração de seringa), as duas populações estão ainda separadas.Assim, em Santarém, os migrantes e seus descendentes foram até agoraconhecidos como nordestinos, colonos ou cearenses. Já no médio Solimões e em outras regiões amazônicas, essa distinção desapareceu.
Também se desfez a diferenciação entre caboclos e tapuios. Hoje em dia o termo tapuio é usado raramente. Os ameríndios que abandonaram a vida indígena tradicional e adotaram uma vida dita civilizada, já não são chamados de tapuios. Ironicamente, é mais provável que sejam eles os únicos a se referirem a si mesmos e a serem referidos como caboclos.

“Avaliações positivas do caboclo também se encontram na literatura acadêmica. Moran (1974: 136), por exemplo, vê o caboclo como “o sistema adaptado humano mais importante [da Amazônia brasileira]”. A visão negativa do caboclo corresponde à crítica mais geral contra o “nativo preguiçoso”. Sahlins (1988) fez a crítica antropológica mais influente da “síndrome do nativo preguiçoso”, substituindo-a pela idéia de “afluência da subsistência”. Ver também em Bauer (1979) uma revisão da explicação de historiadores da “indolência camponesa” que aponta a diferença entre o tempo de trabalho dos camponeses (trabalho sazonal) e dos trabalhadores industriais (trabalho orientado pelo tempo cronológico).”

Essa definição contemporânea do caboclo é adotada na literatura acadêmica. Na primeira publicação acadêmica que adotou o caboclo amazônico como título e tema central, The Amazon Caboclo: Historical and Contemporary Perspectives, editada por Eugene Parker (1985), os caboclos são definidos como “um grupo de sangue misto resultante do casamento entre os ameríndios e os primeiros colonos portugueses e, mais tarde, nordestinos” (parker, 1985b: 6). Em contraste com as primeiras décadas deste século, nos anos 80, os nordestinos já não estão separados dos caboclos. De fato, nesse mesmo volume, Barbara Weinstein apresenta um relato histórico do que chama a “caboclização” dos nordestinos. Uma classificação de tipos contemporâneos de populações amazônicas também é apresentada. De acordo com Parker: “no interior da Amazônia há três populações distintas: os ameríndios, os caboclos amazônicos e os Pioneiros/ migrantes camponese” (parker, 1985a: xxxvii).
Comparando as definições apresentadas em Verissimo (1878) e Moog (1975, [1936]) (uma que Parker (1985) também adota), vemos a dimensão histórica de termo caboclo. O caboclo é uma construção de quem é nativo num dado momento da história. O amazônida típico da época é sempre definido em contraste com aqueles que são migrantes recentes e os povos indígenas, de um lado, e o grupo social identificado como branco, urbano e rico, de outro. O termo constitui uma categoria intermediária no sistema de classificação social, situada entre categonas socias opostas. Inicialmente, a oposiçao era designada exclusivamente em termos de raça. Agora, a definição de caboclo implica uma série de oposições: pobre versus rico, selvagem versus civilizado, floresta versus cidade e, na avaliação moral, indolente versus empreendedor.
Vimos que no discurso coloquial amazônico o termo caboclo tem dois usos - um objetivo e um relacional. O uso objetivo é mais restrito, aparecendo na mídia, na ficção literária e nos discursos políticos, quando designa a população rural indígena amazônica. Apesar de se referir a uma população concreta, esse uso está associado a uma avaliação subjetiva e ambivalente da população rural. Tanto na literatura quanto no discurso regional, o retrato do caboclo vai de um fracasso humano, um tipo preguiçoso e atrasado, a um indivíduo sábio e racional, perfeitamente adaptado ao meio ambiente social e ecológico da Amazônia. O meio ambiente amazônico em si é outra fonte de desacordo e é definido ora como abundante, ora como agressivo. Um fator comum a essas visões opostas é a questão da pobreza do caboclo. O estereótipo caboclo e as opiniões que se têm sobre as qualidades do meio ambiente são usados para explicar a pobreza humana e o subdesenvolvimento da Amazônia.
A forma relacional de utilização é a mais comum. Nessa modalidade, caboclo poderia designar um índio, um habitante da zona rural ou uma pessoa pobre do meio urbano, dependendo do status relativo entre o orador e o indivíduo ou a população a que se refere. Assim, a utilização mais comum do termo caboclo é caracterizada por uma definição ambígua da população a que se refere. Como resultado, o sistema de classificação regional de indivíduos ou enquanto caboclos ou brancos (as principais categorias de classificação social na região do médio Solimões) não é coerente. Para ilustrar esse ponto, em sua pesquisa, Wagley pediu aos habitantes de um assentamento no baixo Amazonas para classificar vinte bem conhecidos membros da comunidade de acordo com as categorias étnicas usadas pelo povo local (branco, moreno, caboclo e negro). Não houve consenso nas respostas recebidas (Wagley, 1976: 134).

A QUESTÃO DA IDENTIDADE CABOCLA

O termo caboclo usado no discurso coloquial não se refere exclusivamente a um grupo social, nem corresponde a um grupo étnico. De acordo com Barth (1969: 13), os traços críticos para a definição de um grupo étnico são autodenominação e denominação pelos outros. Seguindo a definição de Barth, nem mesmo a população dos ameríndios assentados a que se chamou de caboclos durante os tempos coloniais poderia ser considerada um grupo étnico. Embora esses primeiros caboclos fossem claramente distintos dos europeus a partir de uma base étnica, eles não constituíram um grupo político nem possuíram uma identidade coletiva.
O fato do caboclo não ser um termo de autodesignação está relacionado, em primeiro lugar, com a conotação pejorativa do termo e o significado de “índio domesticado” (e não o de uma raça cruzada entre branco e índio), que ele transmite entre a população rural.
Quando caboclo é usado por certos grupos ameríndios como termo de autodesignação, a conotação pejorativa está subentendida. Como afirma Cardoso de Oliveira (1972a), o uso de caboclo como termo de auto-identifIcação é uma maneira de os índios assumirem uma posição social inferior em relação aos brancos. Discutindo o uso do termo entre os ticuna, Cardoso de Oliveira afirma que é uma identidade negativa (ou seja, a do índio que se vê do ponto de vista do branco). Por essa razão, os índios que individualmente migram do alto rio Negro para a cidade de Manaus não reproduzem sua identidade cabocla através das gerações, mas apenas a usam para si (ver Fígoli, 1985).
Uma segunda razão por que caboclo não é utilizado como termo de autodesignação deriva do fato de nunca ter sido associado a um movimento politico. Há outros casos de termos utilizados para a identificação de grupos sociais que ou ganharam ou desenvolveram um valor politico positivo e por esse motivo foram aceitos enquanto termos de autodesignação. A classificação social índio é um exemplo bem conhecido .
Enquanto a população rural vê sua relação com grupos sociais de status mais elevado com base em concepções coletivas vagas, como a de pobre, encontram-se entre eles mesmo noções mais afirmativas de identidade.
A ecologia dos assentamentos constitui um importante atributo de identidade, e esta é uma das bases sobre as quais a população rural se distingue entre si. As duas principais paisagens regionais são a várzea, a planície inundada sazonalmente, e a terra firme, as terras mais altas, livres de inundação. Esses dois cenários ecológicos impõem condições de vida contrastantes. Eles apresentam ciclos sazonais diferentes e permitem a ocorrência de um conjunto de atividades econômicas diversas. Dadas essas diferenças, os moradores locais se distinguem entre si como vargeiros, ou pessoas da várzea, e terra firmeiros, ou pessoas da terra firme.
A atividade econômica constitui outro nível de auto-identificação e distinção. A maioria dos habitantes da zona rural se define como agricultor. Os moradores afirmam que a agricultura é a sua profissão, apesar de empreenderem outras atividades econômicas, como a extração de madeira, a coleta de castanha-do-pará e a pesca, e apesar de, em muitos casos, essas atividades constituírem sua principal fonte de renda. No contexto de sua dependência de um patrão ou negociante, as pessoas também falam de seu status de fregueses e discutem as deficiências dessa posição econômica desfavorável.
A noção de identidade mais intrínseca ao habitante da zona rural é encontrada no nível da comunidade. Nesse nível, os principais parâmetros de sua definição de qualidade de si mesmo e qualidade de outro são: residência comum, relação de parentesco, lugar de nascimento, devoção religiosa e nomes pessoais. A combinação entre esses atributos individuais constitui a base sobre a qual as pessoas interagem entre si.
Os assentamentos rurais são chamados comunidades, seguindo um programa de organização politica dos assentamentos rurais introduzido pela igreja católica. Antes da introdução do termo comunidade, eram empregadas as palavras povoado, localidade ou sítio. Os habitantes locais usam a palavra comunidade (freqüentemente dita “nossa comunidade”) para transmitir a noção de direitos comuns de residência e uso comunal dos recursos – terra e água – relacionados ao território de sua localidade.

Dois outros casos são os termos posseiro, discutido por Esterci (1987), e camponês, analisado por Sigaud (1978).

Na região do médio Solimões, parentesco e residência estão fortemente relacionados. Todas as comunidades rurais são identificadas por referência a um ou mais grupos de parentesco dominantes. Nas comunidades, embora nem todos os indivíduos tenham relações de parentesco locais, a afirmação “somos todo, parentes aqui” é lugar-comum. A distinção entre “os de dentro” e “os de fora” é feita em dois níveis: considerando o indivíduo isoladamente e levando em conta a unidade doméstica. Assim, a afirmação acima é freqüentemente complementada por “só x lares não são de parentes”.
Os indivíduos entram na comunidade principalmente através do casamento, mas mantêm seu status individual de forasteiros. O lar em que vivem, entretanto, é reconhecido como casa de parentes. Só é totalmente considerada de forasteiros a casa onde nenhum dos cônjuges possui relações de consangüinidade com alguma das famílias dominantes ou em que nenhum deles é oriundo do local. Os indivíduos não nascidos na localidade, mas que têm uma ligação de parentesco reconhecida com uma família local têm garantidos os direitos aos recursos da comunidade.
A maioria dos povoados rurais na região do médio Solimões é católica. Há um número crescente de comunidades protestantes na região, assim como casos de uma minoria de protestantes que vivem em comunidades predominantemente católicas. Embora haja uma série de igrejas protestantes na região (Pentecostal, Testemunhas de Jeová, Adventista do Sétimo Dia, Batista e outras), os protestantes são conhecidos em termos coloquiais pelo nome genérico crente. A construção da identidade crente depende de seu contraste com o catolicismo (em termos de reivindicações recorrentes de superioridade), enquanto a identidade do católico é comparativamente mais autocentrada .
O catolicismo praticado pela população rural é essencialmente popular, com ênfase na devoção aos santos e em poucos sacramentos e rituais ortodoxos. A maior parte das comunidades celebra um ou mais santos padroeiros, considerados guardiões da comunidade. Festas anuais celebram seus santos padroeiros com um ritual tradicional. Por constituir um foco comum de devoção, o santo padroeiro confere à comunidade sua identidade metafisica.
Para o indivíduo, a identificação social e a identidade pessoal estão associadas ao nome pessoal. No médio Solimões, a maioria dos indivíduos tem dois nomes: um nome cristão e um apelido. A diferença entre o nome cristão da pessoa e o seu apelido é bem marcada e o uso (ou a atribuição) de um ou de outro constitui um sinal importante de proximidade ou distância interpessoal.
O nome cristão é o nome da pessoa, distinto do apelido, que é como a pessoa é chamada ou, como eles dizem, “como nós o (a) chamamos”. Enquanto o nome cristão é exclusivamente uma atribuição de parentes e guardiões da criança, o apelido é a identidade conferida pela sua comunidade.
Vizinhos, parentes e conhecidos ao mesmo tempo se referem e se dirigem à pessoa por seu apelido, ao ponto de mal se conhecer o nome cristão de alguns indivíduos. Os apelidos em geral derivam da natureza (nomes de animais, peixes, frutas ou plantas). Geralmente, o apelido é explicado através de uma história pessoal, freqüentemente um evento engraçado ou satírico envolvendo a pessoa. Disseram-me que somente os homens têm apelidos e, de fato, a maioria deles tem. No entanto, embora comparativamente com menor freqüência, algumas mulheres também têm apelidos.

Sobre a expansão do pentecostalismo na Amazônia, ver Boyer, 1999a.


O nome cristão só é dado depois do batismo. Antes disso, os bebês não têm nomes (pode-se referir a eles como anjinhos). É comum encontrar irmãos com nomes semelhantes, todos começando com a mesma letra ou sendo combinações dos nomes do pai e da mãe. Em comparação com o apelido, o nome cristão é formal. Disseram-me que é dado a estrangeiros e autoridades, como o padre, o serviço de extensão, o MEB, etc.
Em resumo, contrastando com a objetividade postulada no uso do termo caboclo, às pessoas a que se faz referência através do termo falta uma identidade coletiva que lhes daria uma noção abrangente e imediata da diferença entre elas próprias e outras categorias sociais pertencentes à sociedade amazônica. Em relação à sua posição na sociedade em geral, a população rural do médio Solimões vê-se como pobre. Essa identidade é a base de seu relacionamento com a liderança política do médio Solimões. Em níveis sociais menos abrangentes, a identidade do grupo local e as identidades pessoais baseiam-se nos atributos da ecologia do povoado, na profissão, na residência comum, no status de parentesco dentro da comunidade, na localidade do nascimento, na religião e no nome. Esses parâmetros são mais relevantes para o relacionamento interno da população rural do que para o seu relacionamento com “gente de fora” (moradores das cidades e das classes mais altas), para quem o uso do rótulo caboclo em si estabelece a principál fronteira para se traçar diferenças sociais e culturais.

UMA ANTROPOLOGIA DO CABOCLO?

Dada a complexidade do conceito coloquial, pode-se perguntar como a antropologia do caboclo define seu objeto. Na literatura acadêmica, o termo caboclo é essencialmente uma categoria teórica, um tipo ideal, no sentido weberiano. Essa literatura não é extensa. As principais obras foram escritas nos anos 50 por Charles Wagley (1976 [1953]) e Eduardo Galvão (1955). Ambos adotaram o termo caboclo para referir-se à população rural. Trabalhos subseqüentes que trataram do campesinato da Amazônia (tais como Moran, 1974; Parker, 1981; 1985; Parker et al., 1983; Nugent, 1981) seguiram com o uso do termo. Nos anos oitenta, a literatura geral sobre a Amazônia, cobrindo tópicos como ecologia, desenvolvimento e história econômica (por exemplo, Forewaker, 1981; Weinstein, 1983; Sioli, 1984; Bunker, 1985), também fez referência aos caboclos, traduzindo o termo como o campesinato amazônico nativo. Em 1993, Nugent publicou o livro Amazonian Caboclo Sociery - an essay on invisibiliry and Peasant Economy, que foi seguido de três artigos tratando especificamente da identidade do caboclo: um do próprio Nugent (1997), um de Harris (1998) e o outro de Saillant e Forline (2000).
Comentando a complexidade do significado do termo, Wagley (1985) explicou que o termo fora “imposto” a ele e a Galvão, por seus colegas, autoridades governamentais e pessoas da cidade de Belém. Sempre que os dois pesquisadores esboçavam seu programa de pesquisa, uviam a resposta: “Então o senhor vai estudar os caboclos” (Wagley, 1985: vii). Durante minha própria pesquisa sobre a população rural do médio Solimões, ouvi os mesmos comentários (incluindo formulações mais duras como “o que você vai fazer no meio dos caboclos?”) e, acompanhando os trabalhos de Wagley e Galvão, adotei o termo caboclos para definir o sujeito da minha tese, mesmo tendo tido o cuidado de analisar a complexidade de significados e apesar de, na conclusão do trabalho, apresentar nota sobre o caráter provisional do termo - dado que não havia termo genérico de autodenominação.
Hoje abandono essa opinião, mesmo a de que é possível tomá-lo como termo provisório. Como mencionei, não creio que possa existir um uso neutro para uma palavra que tem na memória coletiva um conjunto tão denso de significados.

Cf. Lima Ayres, 1992; ver também Harris, 1996, para uma etnografia sobre uma comunidade “cabocla” do Pará.

Como se viu acima, uma referência ao termo caboclo evoca vários significados, sendo os príncipais relacionados a noções de geografia (Amazônia, interior, rural), de descendência e “raça” (indígena, mestiça), das hierarquias e relações sociais (conquista ibérica, submissão, a relação de dívida e de crédito no aviamento, o par patrão & freguês) – todas ligadas à história da ocupação européia da Amazônia. Entre esses significados, predomina o sentido pejorativo do termo, decorrente da representação negativa do indivíduo ou grupo que ocupa uma posição social inferior. Embora haja também uma valoração positiva – no folclore, que retrata o caboclo como “o homem da terra”, e em cultos de possessão, em que aparece como “espírito forte” (Boyer, 1999b) – o estereótipo predominante é negativo. Corresponde a figuras como o “matuto” e o “caipira” do interior sulista. Por esse motivo, qualquer referência ao termo não pode ser inteiramente inocente, pois sempre remete à conotação pejorativa – de domínio público, apreendido pelo senso comum –, ao ponto do nome mesmo não ser senão excepcionalmente usado como autodenominação. A forma singela e humilde de pôr a mão no peito e anunciar, como reconhecimento de inferioridade, “eu sou apenas um caboclo” dirigi-se especificamente a um interlocutor branco, rico ou de outra região que não a Amazônia.
Não há uma identidade clara, forte e socialmente valorizada relacionada ao termo, e mesmo a forma acima mencionada não é senão uma encenação pré-fabricada, uma aceitação dissimulada da nomeação que é imputada ao locutor e que este só adota para uma platéia específica: uma que lhe seja (ou que ele considere) superior. Internamente, o indivíduo constrói sua noção de pessoa com outros referenciais, citados acima, como sendo ligados à sua condição social (pobre), à principal atividade econômica (pesca artesanal, agricultura de pequeno porte, coleta de castanha), ao ambiente que ocupa (várzea ou terra firme), aos laços de parentesco locais (as “comunidades” de parentes), à cosmologia e à religião que professa (o mundo dos encantados, o catolicismo popular ou as seitas pentecostais de várias denominações). Essas noções de identidade estão presentes no seu discurso direto, quando falam de si e por si.
De maneira geral, entretanto, a palavra caboclo é usada em discursos indiretos, quando se fala de alguém ou de algum grupo. O nome caboclo carrega uma história particular: surgiu ao longo do processo em que se formou o segmento camponês amazônico, no contexto de uma estrutura social altamente hierarquizada, como foi a sociedade amazônica colonial. E surgiu não só para referir a essa classe inferior como para definir suas qualidades e seu valor. Vimos como a palavra inicialmente denotava o índio genérico, destribalizado, passando posteriormente a significar o híbrido, o miscigenado. Que o termo tem a função de classificar categorias e definir posições sociais é comprovado pelo fato de a palavra ter sido mantida, apesar da evolução da composição étnica da população que nomeia. A manutenção do nome implica que, embora seu significado pareça ter mudado (se considerarmos que teve fundamentalmente a conotação de atributos “raciais”), ele é na verdade uma categoria de referência para a posição inferior na estrutura social do meio rural principalmente.
Uma forma de expressar a dominação de uma classe sobre outra é o exercício do poder de dar nomes. E a própria nominação não é destituída de poder, pois passa a influir no curso da formação do grupo nomeado, como argumentou Bourdieu (1990). Sobre o poder das palavras de efetivamente construir espaços sociais, Bourdieu (1990: 167) sintetiza em uma frase: “é possível fazer coisas com palavras”.
As palavras criadas para servir como categorias de classificação social não apenas descrevem como criam a estrutura social. A definição dos nomes das classes, privilégio dos grupos que ocupam posições superiores, reflete e configura a estrutura social. O caso do caboclo é um exemplo entre outros. Na própria Amazônia pós-colonial há outros casos. Grande número dos nomes pelos quais muitos povos indígenas ficaram conhecidos é fruto de tais processos de nominação, como é o nome macu, derrogatório e pejorativo, que engloba os hupda, dow e outros subgrupos afins, situados em posição inferior no sistema hierárquico dos povos do rio Negro. Já entre povos indígenas politizados, os nomes de atribuição foram abolidos e ao lado de seu processo de autodeterminação figura em destaque sua ênfase na autodenominação, como é o caso dos ashaninka (ex-campa), no Acre, entre outros. E, como mencionado acima, o próprio termo caboclo tem na sua etimologia o significado de alteridade (“aquele que vem do mato”).
A nominação, como a nomeação, é um ato de definição de identidades e atributos sociais. No caso de uma palavra com sentido de exclusão como caboclo (em muitos aspectos o pária da sociedade colonial amazônica), o nome atribui uma identidade que prende o grupo e os sujeitos a uma imobilidade social. A permanência do nome restringe as possibilidades de emancipação. Não é à toa que nos movimentos políticos atuais, notadamente os ligados à problemática ambiental, apresentam-se com novas identidades sociais, seja como Povos da Floresta, Populações Tradicionais, Pescadores Artesanais, ou Mulheres da Floresta, mas não como caboclos. Como mostrou Lygia Sigaud (1978), no artigo “A Morte do Caboclo”, os moradores das grandes fazendas de Pernambuco que eram conhecidos (mas também não se autodenominavam) como caboclos até os anos 60, quando se organizaram politicamente, passaram a ser chamados e a se chamar de “camponeses”.
É nesse sentido que me refiro à responsabilidade presente no uso dos nomes, pois as palavras não apenas criam, mas conservam as coisas que criam, como as estruturas e as representações sociais. Porque carrega a história colonial de subordinação, a palavra caboclo compromete o destino de uma população. O efeito do nome sobre a identidade é inegável – o nome condensa a própria essência da identidade. Aceitar o nome caboclo é aceitar a derrogação. É como o caboclismo que Cardoso de Oliveira descreveu para os ticuna, quando o fato de referirem-se a si mesmos como caboclos significava “olhar a si mesmos com os olhos do branco”. É, portanto, essa história da palavra caboclo que me faz refletir sobre a pretensão antropológica de subtrair sua carga simbólica consagrada pelo uso popular e supor que pode empregá-la com um novo sentido. Podemos falar em caboclo impunemente, atribuindo à palavra um significado neutro (e no caso pretender também o exercício da nominação)?
Por certo precisamos de uma palavra para falar sobre os sujeitos da realidade social e referir a eles – e, para nos fazer inteligíveis, nada mais direto do que tomar emprestadas palavras com significado estabelecido no vocabulário popular. Também reconhecemos serem os tempos atuais, momentos de correção, em que as palavras estão sendo submetidas a uma revisão excepcional, medidas e pesadas com cuidado antes de serem empregadas. O excesso de rigor faz-nos correr risco de paralisar a fala. Só neste campo temático, reunimos uma série de conceitos submetidos a uma severa revisão crítica: camponês, cultura e a própria etnografia. No vocabulário cotidiano, são as palavras no masculino, as maneiras de fazer referência a um indivíduo que apresente algum estigma social, que nos fazem diminuir a velocidade da fala e sair em busca de outras palavras para empregar. Mas, no caso do nome caboclo, não há razão para não adotar novos nomes em seu lugar, mesmo porque cabe a nós um papel importante de legitimá-los. A nova identidade ecológica surge não como em Pernambuco dos anos sessenta, com a morte do caboclo, mas com a morte do patrão. Com a transformação das relações sociais de produção no meio rural, abriu-se um novo espaço político para as populações rurais. Nesse contexto, criaram seus próprios movimentos políticos, como o das populações tradicionais. Embora tenhamos que reconhecer algumas incongruências nessas novas denominações - alguns autores chegam ao ponto de caracterizar esses povos como “neo-tradicionais” devido ao caráter inovador de suas propostas para uma ecologia política amazônica -, é nossa responsabilidade conhecer o significado político do uso das palavras17.
É nesse sentido que se justifica a necessidade de desistir de fazer uso da palavra caboclo, especialmente se pretendemos falar de identidades rurais na Amazônia contemporânea. Como mostrou Baktin (1979), a palavra é o primeiro meio da consciência individual. A realidade da palavra, como a de qualquer signo, resulta do consenso entre indivíduos. Constitui o material semiótico da vida interior, da consciência, do discurso interno. Nesse sentido, a palavra caboclo é uma representação, e, também segundo Baktin (1979), a representação é o modo pelo qual vemos as coisas. Mas as representações não são necessariamente identidades, nem devem ser confundidas com elas. A identidade é uma forma de representação dirigida a si próprio. É a visão de si, que em um contexto social diferenciado é relacionada a uma identidade coletiva. O grupo informa seus membros sobre o significado da pertença, e sua particularidade é construída a partir da comunicação entre os indivíduos que formam o grupo de modo a constituir sua identidade comum. A identidade de um grupo não está fora da existência de seus membros, não é algo metafísico ou exterior aos indivíduos, mas sim uma produção coletiva da somatória das contribuições individuais, no contexto de uma formação social particular.
O que fazer então se nossa representação do outro entra em conflito com a sua própria representação de si, sua própria identidade ? E como falar de uma identidade cabocla, se essa palavra, cujo sentido aponta para uma representação alegórica, impõe. uma distância social muito grande entre o locutor e o personagem a que faz referência? Manter o uso da palavra caboclo demonstra que desconhecemos as formas com que “eles” próprios se apresentam/representam. Nesse sentido, o nome caboclo vive hoje apenas no discurso que nós fazemos sobre uma outra categoria social.
Para uma análise do significado da categoria social “populações tradicionais” e sobre seu processo político de auto-constituição, ver Carneiro da Cunha e Barbosa, 2000.


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terça-feira, 27 de setembro de 2016

Ações afirmativas - polêmicas e possibilidades sobre igualdade racial e o papel do estado



Affirmative actions: polemics and possibility about racial equality and the role of the state


Sales Augusto dos SantosI; Eliane CavalleiroI; Maria Inês da Silva BarbosaII; Matilde RibeiroIII
IUniversidade de Brasília
IISecretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
IIINúcleo de Estudos e Pesquisas sobre Movimentos Sociais - Nemos (PUC/SP)




RESUMO
O artigo analisa a importância do papel do Estado para a implementação das políticas públicas de ação afirmativa, especialmente para estudantes negros ingressarem no ensino superior público. Argumenta-se que a ação afirmativa é uma das alternativas para reduzir ou minimizar a desigualdade de inserção entre estudantes negros e brancos de escolas públicas e/ou particulares no ensino superior, especialmente por meio de uma de suas técnicas de implementação: o sistema de cotas. Embora haja vários argumentos contra o sistema de cotas, os autores se concentraram em debater ou contra-argumentar apenas um: o de que o sistema de cotas poderá gerar conflitos raciais no Brasil.
Palavras-chave: políticas públicas; ações afirmativas; sistema de cotas; ensino superior; conflitos raciais.


ABSTRACT
The article analyses the importance of the role of the State for the implementation of public policies of affirmative action, especially for black students to enter public higher education. It argues that affirmative action is one of the alternatives to reduce or minimize the inequality in this field between black and white students and/or students from public schools and private schools, in particular by means of one of its techniques of implementation: the quota system. In spite of there being various arguments against the quota system, the authors concentrate on debating or counter-arguing only one: that the quota system may generate racial conflicts in Brazil.
Key Words: Public Policies; Affirmative Actions; Quota System; Higher Education; Racial Conflicts.


Introdução
É de conhecimento de todos que o Brasil é um país formado por diferentes povos (indígenas, africanos, europeus, asiáticos, entre outros) e que a interação social entre eles foi desigual desde o início da colonização portuguesa. Alguns desses povos, especialmente os brancos de origem européia, lograram vários privilégios em relação aos demais povos que formaram a nação brasileira. Em decorrência disso, até hoje, convivemos com grandes desigualdades pautadas por diferenças de pertencimento de classe social, de grupo racial e de sexo/gênero. Assim, no Brasil, ricos e pobres, mulheres e homens, negros, indígenas, brancos, amarelos, entre outros, têm possibilidades e maneiras muito distintas e desiguais para a obtenção de bônus e de pagamento dos ônus sociais.
As diferenciações e as desigualdades citadas não são características exclusivas de nosso país. E há soluções, por meio de um conjunto de medidas, para superar todas as injustiças contra a maioria do povo brasileiro. Para tentar amenizar as desigualdades supracitadas e possibilitar que todos os grupos sociais brasileiros desenvolvam o seu potencial humano (intelectual, cultural, econômico, educacional etc.), não temos dúvida de que a educação formal e de qualidade nos diferentes níveis de ensino deva ser direito formal e substantivo de todos os grupos sociorraciais.
Porém, lamentavelmente as desigualdades na esfera da educação são gritantes, por exemplo, em geral os homens brancos nascidos nas regiões Sul ou Sudeste são mais escolarizados e tendem a adquirir maior destaque social em nosso país. Na contramão desse processo estão as mulheres negras, especialmente as nascidas nas regiões Norte e Nordeste e com baixa escolaridade.
Apesar desses traços nas nossas relações sociais, a expansão contemporânea do ensino público tem possibilitado que negros e mulheres consigam concluir a educação básica. Finda essa fase, esse grupo de pessoas, antes alijados do processo de escolarização, também começa a demandar inserção em todos os cursos superiores. Para as mulheres brancas com melhores condições econômicas, a realização dessa demanda vem ocorrendo faz algum tempo. Boa parte delas, após concluir o ensino médio, tem tido acesso ao nível superior público, embora a grande maioria ainda esteja inserida em cursos caracterizados como de menor valor social, como, por exemplo, psicologia, pedagogia, nutrição, enfermagem. Mesmo nesses cursos não valorizados adequadamente no mercado de trabalho, e até mesmo no meio universitário, o número de alunas e alunos negros é ainda ínfimo.
Não temos dúvidas de que esse quadro é, ainda, reflexo do processo de formação desigual e injusta do País, ou seja, a nossa formação nacional fundada sob os valores da escravidão e do racismo levou a sociedade brasileira a discriminar e/ou excluir racialmente a população negra, o que, conseqüentemente, concentrou-a nos níveis socioeconômicos mais baixos.
Nas últimas décadas nosso país passou a ter expansão da educação básica, e temos uma boa parte dos nossos estudantes concluindo-a. Todavia, considerando as péssimas condições de vida da maioria absoluta dos nossos estudantes, a (falta de) qualidade do ensino oferecido a eles, bem como o racismo, o sexismo, a homofobia, entre outras discriminações contra eles em nossas escolas, a competição por vagas em nossas melhores universidades, entre os estudantes de escolas públicas e os alunos mais ricos que estudam em escolas particulares, é muito desigual; mesmo assim, hoje, muitos de nossos estudantes de escolas públicas têm conseguido concluir o ensino médio.
Quando da necessária inserção no curso superior, lamentavelmente não há vagas disponíveis para todos e em todas as carreiras. Uma alternativa para reduzir ou minimizar a desigualdade de inserção entre estudantes negros e brancos e/ou de escolas públicas e particulares no ensino superior foi a demanda e/ou proposta dos movimentos negros por um tipo de implementação técnica de política de ação afirmativa, o sistema de cotas.
Várias críticas surgiram contra essa alternativa que consideramos viável, necessária e justa. E a inserção diferenciada no ensino superior público brasileiro de estudantes negros e/ou pobres é importante não somente para amenizar a enorme desigualdade quando se compara a pequena inserção desses alunos com a dos alunos brancos e/ou ricos, como essa inserção diferenciada possibilita a convivência entre estudantes de classes sociais e grupos raciais diferentes; contribui para a revisão e a reprovação de preconceitos raciais, de classe e de atitudes discriminatórias; possibilita a formação de profissionais negros ou de origem social pobre gerando novas referências para a sociedade brasileira e novas visões sobre a sociedade brasileira; democratiza (mesmo que minimamente) bens culturais produzidos na sociedade; e, entre outras vantagens, melhora a qualidade de vida dos grupos historicamente vulneráveis, podendo inclusive diminuir a desigualdade sociorracial em nosso país. E não temos dúvida de que ela também ajudará a diminuir as desigualdades abismais que existem entre todos os demais grupos sociais e as mulheres negras, que são as mais discriminadas na sociedade brasileira, por serem negras e mulheres.
Como afirmamos, há vários argumentos contra o sistema de cotas, mas vamos nos concentrar em debater apenas um, o de que o sistema de cotas poderá gerar conflitos raciais no Brasil. Além disso, comentaremos rapidamente a importância do papel do Estado para a implementação dessas políticas públicas.

Ações afirmativas e o papel do Estado brasileiro
A não aceitação e a indignação contra as discriminações racial e de gênero, que foram impostas historicamente aos negros e às mulheres, são pontos cruciais para nos direcionarmos às políticas de ações afirmativas, buscando construir um novo conjunto de direitos bem como a restauração das capacidades humanas desses grupos vulnerabilizados pelas discriminações.
Kimberlé Crenshaw, ao refletir sobre as questões de gênero e raça,1 aponta a importância da ampliação do enfrentamento do abuso dos direitos relativos às mulheres, no campo dos direitos humanos. No entanto, apresenta também uma reflexão partindo da existência da interseccionalidade entre gênero e raça, assinalando a coexistência entre ambas. Segundo a autora, discriminação racial,
é freqüentemente marcada pelo gênero, pois as mulheres podem às vezes vivenciar discriminações e outros abusos dos direitos humanos de uma maneira diferente dos homens. O imperativo de incorporação do gênero põe em destaque as formas pelas quais homens e mulheres são diferentemente afetados pela discriminação racial e por outras intolerâncias correlatas.2
Por caminhos e áreas diferenciados pesquisadores e pesquisadoras brasileiros - Eliane Cavalleiro,3 Flávia Piovesan,4 Maria Inês da Silva Barbosa,5 Matilde Ribeiro,6 Sales Augusto dos Santos7 - e estrangeiros - Kimberlé Crenshaw8 e Edward Telles,9 entre outros - vêm realizando estudos demarcando que, no Brasil, as diferenças têm gerado desigualdades e, por conseqüência, disparidades no tratamento das políticas públicas ora entre brancos e negros, ora entre homens e mulheres e ora entre as condições de gênero e raça. É apontada nesses estudos a necessidade de consideração das diferenças como elementos "saudáveis" que devem ser absorvidos de forma positiva nas políticas públicas e, também, na aplicação das políticas de ações afirmativas.
Essas perspectivas nos advertem da necessidade de políticas públicas, em especial ações afirmativas visando à inclusão de negros e mulheres na sociedade brasileira, de tal forma que esses grupos possam ter pleno desenvolvimento social, político, cultural, educacional e econômico.
O que vêm a ser políticas de ações afirmativas? Há vários conceitos sobre esse termo, destacamos a elaboração de Joaquim B. Barbosa Gomes:
as ações afirmativas consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação, mas também a discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade. De cunho pedagógico e não raramente impregnadas de um caráter de exemplaridade, têm como meta, também, o engendramento de transformações culturais e sociais relevantes, inculcando nos atores sociais a utilidade e a necessidade da observância dos princípios do pluralismo e da diversidade nas mais diversas esferas do convívio humano. Constituem, por assim dizer, a mais eloqüente manifestação da moderna idéia de Estado promovente, atuante, eis que de sua concepção, implantação e delimitação jurídica participam todos os órgãos estatais essenciais, aí incluindo-se o Poder Judiciário, que ora se apresenta no seu tradicional papel de guardião da integridade do sistema jurídico como um todo, ora como instituição formuladora de políticas tendentes a corrigir as distorções provocadas pela discriminação.10
Ainda, segundo Mary Castro11 e Marlise Almeida,12 as ações afirmativas, como parte dos debates contemporâneos, devem, sem dúvida, pautar-se pela lógica complexa e complementar entre demandas de redistribuição e de reconhecimento pertinentes às atuais reivindicações políticas. Portanto, o Estado deve se posicionar por meio de ações concretas, ou seja, ser promovente e ir além de declaração de boas intenções e de programas pontuais para este ou aquele grupo social. Como exemplo, e ao contrário do pensamento (talvez mais sentimento que pensamento) da maioria dos intelectuais brancos das ciências sociais que são contra as políticas de ações afirmativas para estudantes negros, devemos explicitar que o Estado deve apoiar e incentivar o sistema de cotas no ensino superior, uma vez que, sob o ponto de vista dos direitos humanos, esse sistema visa à igualdade de oportunidades e de tratamento, bem como repor direitos - neste caso o direito fundamental à educação superior de qualidade - que foram e são sistemática e historicamente violados e usurpados da população negra diante da discriminação racial.
Em âmbito nacional, é importante destacar que as políticas públicas de cunho democrático e de inclusão social, como as de ação afirmativa, pautam-se pelas leis nacionais, tendo como principal referência a Constituição Federal Brasileira, considerada uma "Constituição Cidadã". Esse argumento é ratificado juridicamente por Marco Aurélio de Mello:
urge a compreensão de que não se pode falar em Constituição sem levar em conta a igualdade, sem assumir o dever cívico de buscar o tratamento igualitário, de modo a saldar dívidas históricas para com as impropriamente chamadas minorias, ônus que é de toda a sociedade. [...] É preciso buscar a ação afirmativa. A neutralidade estatal mostrou-se um fracasso. Há de se fomentar o acesso à educação; urge um programa voltado aos menos favorecidos, a abranger horário integral, de modo a tirar-se meninos e meninas da rua, dando-se-lhes condições que os levem a ombrear com as demais crianças. E o Poder Público, desde já, independentemente de qualquer diploma legal, deve dar à prestação de serviços por terceiros uma outra conotação, estabelecendo, em editais, quotas que visem a contemplar os que têm sido discriminados. [...] Deve-se reafirmar: toda e qualquer lei que tenha por objetivo a concretude da Constituição não pode ser acusada de inconstitucional. Entendimento divergente resulta em subestimar ditames maiores da Carta da República, que agasalha amostragem de ação afirmativa, por exemplo, no artigo 7º, inciso XX, ao cogitar da proteção de mercado quanto à mulher e da introdução de incentivos; no artigo 37º, inciso III, ao versar sobre a reserva de vagas - e, portanto, a existência de quotas -, nos concursos públicos, para os deficientes; nos artigos 170º e 227º, ao emprestar tratamento preferencial às empresas de pequeno porte, bem assim à criança e ao adolescente.13
Com isso, é enfatizado não somente a constitucionalidade da política, como demonstrado, a Constituição Federal de 1988 incorpora amostragem de ação afirmativa.
Toda essa construção nacional, embora ainda muito frágil e complexa, articula-se com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada na França/Paris, em 10 de dezembro de 1948, com a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial - ICERD, em 1965, e com a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher - CEDAW, em 1979. São esses importantes instrumentos mundiais para a garantia de direitos e melhoria de condições de vida de todos os cidadãos e cidadãs, sem distinção.
Esses e tantos outros instrumentos, também, foram base para a realização do Ciclo das Conferências Mundiais,promovido pela Organização das Nações Unidas " ONU, nos anos 1990. Todas essas conferências14 direta ou indiretamente estimularam debates e proporcionaram formulações nas esferas da vida social, econômica, política e cultural, possibilitando o entendimento da necessidade de defesa de outras políticas públicas, como as de ações afirmativas, bem como o entendimento da necessidade do respeito à diversidade.
Flávia Piovesan argumenta que a Conferência de Viena15 trouxe um impulso substantivo e animador no campo legal e de políticas públicas, tendo por base a formulação sobre universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos, partindo da interdependência entre as áreas civis, políticas, econômicas, sociais e culturais. Segundo a pesquisadora, mesmo considerando os avanços, deve-se acrescentar aos resultados da Conferência de Viena o valor e o princípio da "diversidade", pois a violação dos direitos humanos alcança prioritariamente os grupos vulneráveis como, por exemplo,
as mulheres, as populações afrodescendentes e os povos indígenas - daí os fenômenos da 'feminilização' e 'etnização' da pobreza [...]. A efetiva proteção dos direitos humanos demanda não apenas políticas universalistas, mas específicas, endereçadas a grupos socialmente vulneráveis, enquanto vítimas preferenciais da exclusão.16
Já a Declaração de Viena e o Programa de Ação de Beijing17 diagnosticam e apontam medidas para alteração das condições de vida, reafirmando compromissos em prol dos direitos humanos das mulheres. As feministas brasileiras, ao analisarem o processo dessa conferência, alegam que o debate que antecedeu a aprovação dos documentos finais, o uso do termo "raça e etnia", gerou longa e dura controvérsia. Porém, como um avanço, os documentos finais trazem menções explícitas desses termos, partindo da necessidade de superação de injustiça social que abate sobre a população não branca, discriminada pelo racismo.
A III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância - realizada no período de 31 de agosto a 8 de setembro de 2001, em Durban, na África do Sul - teve como slogan: "Unidos para combater o racismo: Igualdade, Justiça e Dignidade" e foi conectada à agenda de "2001 - Ano Internacional de Mobilização contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia a as Formas Conexas de Intolerância".
A "Declaração e Programa de Ação de Durban"18 estabelecem com maior ênfase quem são as vítimas do racismo, da discriminação racial, da xenofobia e de outras formas de intolerância, destacando em sua ampla agenda as múltiplas formas de discriminação que podem afetar sobremaneira as mulheres (em particular as mulheres negras e indígenas) e impedir que elas desfrutem ampla e dignamente seus direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.
Foi considerado que o colonialismo tem levado ao racismo e afetado mais diretamente os africanos e os afrodescendentes, as pessoas de origem asiática e os povos indígenas. A partir daí, foi anunciado que a escravidão e a servidão dos descendentes de africanos, caribenhos, povos indígenas, como também de outros povos discriminados, cujas seqüelas ainda são vigentes, constituíram crimes de lesa humanidade. Por isso, foi reafirmada a visão sobre o direito dos povos vitimados à reparação.
Nesse sentido, o Programa de Ação de Durban parte da necessidade de aplicar os objetivos, destacando-se os artigos 99 e 100:
- Reconhece que o combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata é responsabilidade primordial dos Estados.Portanto, incentiva os Estados a desenvolverem e elaborarem planos de ação nacionais para promoverem a diversidade, igualdade, eqüidade, justiça social, igualdade de oportunidades e participação para todos. Através, dentre outras coisas, de ações e de estratégias afirmativas ou positivas; estes planos devem visar a criação de condições necessárias para a participação efetiva de todos nas tomadas de decisão e o exercício dos direitos civis, culturais, econômicos, políticos e sociais em todas as esferas da vida com base na não-discriminação.
- Insta os Estados a estabelecerem, com base em informações estatísticas, programas nacionais, inclusive programas de ações afirmativas ou medidas de ação positivas, para promoverem o acesso de grupos de indivíduos que são ou podem vir a ser vítimas de discriminação racial nos serviços básicos, incluindo, educação fundamental, atenção primária à saúde e moradia adequada.19
Sueli Carneiro20 a partir do instigante artigo "A batalha de Durban" resgata que os documentos aprovados em Durban instam os Estados a adotar posturas de eliminação da desigualdade racial e de gênero. Portanto, chama a atenção que o papel dos governos ou do Estado para a implementação e o sucesso das políticas públicas de ação afirmativa é não só necessário mas também indispensável.
No Brasil, antes mesmo do Ciclo das Conferências Mundiais, a partir da segunda metade dos anos 1980, vêm sendo realizadas ações, mesmo que insuficientes, nas três instâncias do governo (Federal, Estadual e Municipal), voltadas às mulheres e aos negros e mais recentemente aos jovens e aos homossexuais. Isso se dá em resposta às pressões dos movimentos sociais, dos quais destacamos os movimentos negros e feministas.21 Segundo Matilde Ribeiro,22 no interior desses e nas últimas décadas com organização autônoma, é, ainda, importante destacar as organizações de mulheres negras que enfatizam o valor da diversidade e o empoderamento dessas como agentes políticas.
Primeiramente, foram criados os conselhos das mulheres e de negros, depois as delegacias de defesa das mulheres, os SOS racismo, bem como delegacias contra discriminação racial. Em seguida, foram criados órgãos articuladores e/ou executores de promoção da igualdade racial e/ou de gênero, como secretarias, coordenadorias, assessorias e afins.
Atualmente, tem-se buscado desenvolver ações afirmativas a partir da intersetorialidade das políticas públicas nos diversos órgãos de governo sob orientação e coordenação de alguns órgãos, como a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres - SPM, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - Seppir, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos - SEDH e também a Secretaria Nacional de Juventude - SNJ. Vale ressaltar que tem sido extremamente salutar o processo de debates e de consultas por meio dos canais de participação, como conselhos de políticas públicas e de direitos, ouvidorias, conferências, consultas públicas, entre outros.
Tudo isso, associado principalmente às pressões dos movimentos negros por igualdade racial, tem possibilitado a discussão e a necessidade de políticas de ações afirmativas para grupos sociais que historicamente têm sido discriminados na sociedade brasileira.23 Dessa maneira, tem sido desenvolvido um "casamento" necessário e imprescindível entre políticas universalistas e políticas públicas específicas, como as de ação afirmativa.
Tais políticas, pautadas pelas demandas dos movimentos negro e feminista, intensificaram significativas mudanças na sociedade brasileira, em que o racismo e o sexismo estão sendo questionados profundamente, embora haja fortes forças conservadoras, lideradas inclusive por renomados cientistas sociais, lutando pela manutenção do antigo status quo.
As leis, espelhando as lutas sociais, têm construído um caminho inverso a essas tais forças conservadoras. Em 9 de janeiro de 2003, foi alterada a lei que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB 9394/96, incluindo no currículo do ensino fundamental e médio da rede de ensino público e privado o ensino de história e cultura afro-brasileira - Lei n. 10.639; em 11 de março de 2008, a LDB foi alterada pela Lei n. 11.645/08, tornando também obrigatório o ensino da história e cultura dos povos indígenas.
Do ponto de vista da educação em nível superior no Brasil, hoje, dezembro de 2008, existem 84 instituições de ensino público que nos últimos oito anos adotaram algum tipo de ação afirmativa de ingresso, incluindo o sistema de cotas.24 Tem-se a avaliação de desempenho próximo, similar ou até melhor dos alunos cotistas em relação aos não cotistas.
Segundo o Ipea, no biênio 2005-2006, cotistas obtiveram maior média de rendimento em 31 dos 55 cursos (Unicamp) e coeficiente de rendimento (CR) igual ou superior aos de não cotistas em 11 dos 16 cursos (UFBA). Na UnB, não cotistas tiveram maior índice de aprovação (92,98% contra 88,90%) e maior média geral do curso (3,79% contra 3,57%), porém trancaram 1,76% das matérias, contra 1,73% dos cotistas. Por outro lado, dados do Censo Educacional de 2005 do MEC mostram ainda que instituições públicas realizam, em média, 331 mil matrículas anualmente. Apenas 2,37% (cerca de 7.850) delas são destinadas a estudantes negros.25
Por parte do Legislativo, temos em 20 de novembro de 2008 a aprovação na Câmara Federal do PL 73/99, que reserva 50% das vagas das universidades públicas a alunos que cursaram integralmente o ensino médio em escolas públicas, respeitando o percentual de negros e indígenas em cada Unidade da Federação. O projeto segue para aprovação no Senado Federal.
Essas medidas, sem dúvida, dão concretude às perspectivas anunciadas, ainda em 2002, por Luciana Jacoud e Nathalie Beghin, que ao tratarem das ações afirmativas admitem que
o reconhecimento de que a igualdade formal não garante aos que são socialmente desfavorecidos o acesso às mesmas oportunidades que têm aqueles que são socialmente privilegiados promoveu um esforço de ampliação não apenas do conteúdo jurídico e moral da idéia de igualdade, mas das próprias possibilidades jurídicas de concretizá-la.26
Com isso, as políticas de ação afirmativa partem de uma crítica ao princípio da igualdade formal diante da lei e reforçam a perspectiva de igualdade de oportunidade.27 Segundo Marcelo Paixão:
As políticas de ação afirmativas estão fundamentadas em um princípio ético que, buscando a superação das desigualdades (sociais, raciais, éticas, de gênero, de outras minorias), defende a hipótese da concessão de tratamento desigual a pessoas socialmente desiguais.28
Dessa maneira, compreende-se que, quando aplicadas, as ações afirmativas restituem a igualdade de oportunidades entre os diferentes grupos raciais, promovendo um tratamento diferenciado e preferencial àqueles historicamente marginalizados.

Cientistas sociais: pesquisa acadêmico-científica ou futurologia?
Como dito, há fortes forças conservadoras contra as políticas de ações afirmativas para estudantes negros. E há também entre alguns cientistas sociais contrários às cotas para estudantes negros uma desconsideração ou negação do conhecimento acadêmico já produzido a respeito de ações afirmativas. Tal desconsideração sobre o assunto põe no mínimo em suspeita as críticas às políticas afirmativas, pois essas não nascem de estudos sistematizados ou da revisão dos referenciais teóricos sobre ações afirmativas para produzir novos conhecimentos ou mesmo confirmar ou reformular conhecimentos anteriores e, conseqüentemente, criticar o sistema de cotas.
Por exemplo, os antropólogos e professores titulares do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais - IFCS, da Universidade Federal do Rio de Janeiro " UFRJ, Peter Fry29 e Yvonne Maggie,30 ou ainda Fry e Maggie31 e Maggie e Fry,32 dois dos mais contundentes críticos das políticas de cotas nas universidades públicas brasileiras, ao escreverem artigos e até mesmo livros sobre a questão racial e a implementação de ações afirmativas para negros na educação superior brasileira, citam várias vezes no mesmo artigo ou livro a expressão "ação afirmativa" e jamais entram na discussão teórica sobre esse tema, nem sequer apresentam um conceito ou uma definição explícita, conforme se pode ver em Santos.33
Ao desconsiderarem esses procedimentos metodológicos sobre a produção do conhecimento acadêmico-científico, alguns cientistas sociais contrários às cotas para negros fazem, em geral, apenas previsões sem fundamento histórico para a sociedade; previsões que muito se aproximam de futurologia e muito se afastam da construção de conhecimento fundamentado em pesquisas e no rigor acadêmico.
Essa fórmula permite a divulgação de afirmações esvaziadas de concretude do tipo: "as cotas para negros nos vestibulares das universidades públicas vão racializar a sociedade brasileira", ou ainda "vai haver uma divisão racial do Brasil", ou "divisões perigosas", entre outras insustentáveis previsões catastróficas.
Cabem, desse modo, duas breves considerações. A primeira diz respeito aos autores que são contra as cotas para negros nos vestibulares e mesmo assim admitem que a sociedade brasileira discrimina racialmente os negros.34 Ora, existe sociedade que discrimina racialmente os negros e que não é racializada? Se uma sociedade é racista contra um determinado grupo social é porque ela racializa, ou seja, usa a raça para classificar e julgar previamente os seus cidadãos, alguns positivamente e outros negativamente, não levando em consideração somente o seu caráter para julgá-los. Portanto, não é à toa que os dados estatísticos oficiais (do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea) e não oficiais (do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - DIEESE) mostram uma desigualdade racial brutal entre negros e brancos no Brasil.35
A segunda consideração discute por que esses cientistas começam a trabalhar com cenários desanimadores sobre o futuro do Brasil no que diz respeito às relações raciais. O receio de um futuro violento passa a ser um dos argumentos desses autores contra as cotas, visto que eles descortinam, com a implantação das políticas de ação afirmativa para negros, cenários de conflito racial aberto no tempo que há de vir. Por exemplo, Maggie e Fry já compartilharam a escrita de artigos36 em que fazem previsões não otimistas sobre o futuro racial do Brasil após o processo de implementação das ações afirmativas para os negros. Segundo esses artigos, dentre outros, as cotas vão aumentar o "acirramento das tensões raciais existentes" e provocarão uma "cisão racial" no Brasil.
Tal previsão sem lastro sócio-histórico, ao que tudo indica, tende a ser mais uma das muitas que já foram feitas (e não se realizaram) na esfera das relações raciais, algumas vezes supondo: a) um melhoramento ou um acirramento das relações raciais brasileiras no futuro; e b) mudanças profundas na composição racial do Brasil pela extinção dos negros e dos indígenas, entre outras previsões.
E previsões sobre a composição racial brasileira e sobre as relações raciais no Brasil não deixaram de existir ao longo de todo o século XX, bem como também não se realizaram até a presente data. Por exemplo, em 1982, segundo o historiador Clóvis Moura,37 assessor do antigo Banco do Estado de São Paulo " Banespa, apresentou um trabalho no qual previa que a população negra brasileira chegaria a 60% do total de brasileiros no ano 2000, podendo inclusive tomar o controle político do País e dominar os postos-chave. Nada disso aconteceu no ano 2000.
Durante o regime militar no Brasil, mais precisamente no final da década de 1960, também houve medos e previsões de que poderia haver conflitos raciais manifestados pública e abertamente no Brasil do futuro, ou seja, do ano 2000. Nessa época, o jornalista Itamar de Freitas organizou uma equipe de pesquisadores e intelectuais (sociólogos, etnólogos, educadores, entre outros) para discutir como seria o Brasil no ano 2000. O resultado desse trabalho prospectivo foi o livro Brasil ano 2000: o futuro sem fantasia, publicado pela editora Biblioteca do Exército Brasileiro, em 1969.
Apoiando-se nas análises feitas pelo sociólogo Nelson Mello e Souza, da Fundação Getúlio Vargas, logo na introdução do livro o seu organizador, Itamar de Freitas, afirmava que não chegamos a ser racistas segregadores, mas que também não podemos nos orgulhar da chamada democracia racial brasileira. E na época já perguntava:
Como reagiremos - por exemplo - quando os negros vencerem as dificuldades sociais e econômicas que os segregam, deixarem de ser apenas 448 universitários em 5.600.000 indivíduos? Hoje, os negros não incomodam, mas o que acontecerá quando eles tiverem - ainda que uma minoria expressiva deles - poder econômico para comprar títulos de clubes fechados, ou forçar sua entrada nos colégios mais caros, ou forçar sua admissão nos escritórios ou postos importantes, ou morar nas zonas residenciais de "primeira classe"? Estaremos maduros, bastante para aceitá-los como irmãos em tudo, ou vamos partir para conflitos raciais?38
Nota-se que o autor se posiciona como homem branco, assume que seria por iniciativa dos brancos que provavelmente haveria ataques ou conflitos raciais no Brasil do futuro. No referido livro, o tópico "Racismo no país da classe média", cujo instigante título é a "Crise racial no Brasil - ano 2000", Freitas, concordando com a análise do sociólogo Mello e Souza, conclui que poderia haver lutas raciais no Brasil do ano de 2000, embora o país não fosse se transformar num novo Estados Unidos da América nem na África do Sul.
O que é importante ressaltar aqui é que previsões sobre a composição racial brasileira e sobre conflitos explicitamente raciais no Brasil (do futuro) existiram ao longo do império e período republicano, porém nunca se concretizaram. Aliás, o antropólogo Lívio Sansone39 sustenta que, em outros contextos sociais diversos do brasileiro, a idéia de "raça" e a etnicidade já deflagraram tumultos e até mesmo guerras, mas, no Brasil, mesmo havendo racismo contra os negros, não houve ações coletivas violentas desse tipo.
Portanto, não há antecedentes históricos que demonstrem a possibilidade de haver ampliação dos conflitos raciais no Brasil, até mesmo porque todas as previsões na área das relações raciais brasileiras feitas anteriormente por políticos e cientistas sociais não se concretizaram.40 Lamentavelmente, essas previsões ou afirmações geralmente são feitas sem nenhum suporte ou evidência histórica, nem mesmo calcadas em pesquisas. Aliás, dos autores contrários às cotas que pesquisam e estudam a questão racial citados neste artigo, raros são os que realizam pesquisas (tanto quantitativas quanto qualitativas) nas quais buscam incluir o tema das ações afirmativas, conforme se pode ver em Santos.41
Uma revisão da literatura evidencia que Maggie,42 dentre renomados cientistas sociais contrários a cotas, foi a única que buscou fundamentar alguns de seus argumentos contra o sistema de cotas por meio de pesquisas. Em publicação contendo parte dos resultados da "pesquisa sobre o impacto de políticas públicas em escolas de ensino médio do Rio de Janeiro", a autora argumenta:
a pesquisa realizada em escolas do Rio de Janeiro se insere em um projeto maior - "Acompanhando as ações Afirmativas no Ensino Superior" - e mobilizou 20 estudantes de graduação e pós-graduação que empreenderam 16 estudos de caso em escolas da rede estadual e escolhidas entre as que foram classificadas com os piores indicadores a partir da avaliação do Programa Nova Escola.43
Maggie,44 tentando confirmar a sua tese de que o Brasil é um país altamente misturado, onde há uma classificação racial ambígua ante a mestiçagem cultural e biológica brasileira45 e, conseqüentemente, o gradiente de cor da sociedade brasileira, afirmou que a pergunta que suscitou mais dúvidas dos alunos foi sobre a identificação de cor/raça deles. Ela chegou a essa conclusão após fazer um pré-teste, por meio de questionários, com alunos das escolas públicas do Estado do Rio de Janeiro onde estava realizando a pesquisa:
Aplicamos um questionário para estudantes do primeiro ano do ensino médio. Era ainda um pré-teste. Entre as perguntas, havia uma que pedia aos estudantes que se autoclassificassem em uma das categorias do Censo Demográfico. A pergunta, igual à formulada pelo IBGE, era a seguinte: Qual é sua cor/raça: ( ) branca ( ) preta ( ) parda ( ) amarela ( ) indígena. Essa pergunta foi a que suscitou mais dúvidas e mais reação de todo o extenso questionário. A maioria dos estudantes não queria identificar-se em nenhuma das categorias. Alguns falaram e outros escreveram à margem da resposta fechada, raça humana. Outros riam e perguntavam aos colegas, qual a minha cor? Outros ainda falaram revoltados que essa pergunta estava errada porque não existem "raças" humanas.46
Os resultados desse pré-teste aparentemente indicavam o que alguns intelectuais e pesquisadores que estudam as relações raciais brasileiras47 já afirmavam: que as cinco categorias raciais utilizadas pelo IBGE para coletar informações sobre a cor/raça são limitadas ou, ainda, de fato não fazem sentido para os brasileiros, ou seja, o pré-teste da professora Yvonne Maggie,48 ao que tudo indicava, corroborava a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios " PNAD, realizada em 1976 pelo IBGE, que deixou o quesito cor/raça em aberto, isto é, espontâneo, o que permitiu verificar que naquela época os brasileiros autoclassificaram-se em 135 cores/raças.49
Por outro lado, no artigo "Racismo e anti-racismo: preconceito, discriminação e os jovens estudantes nas escolas cariocas", Maggie divulgou os primeiros resultados da pesquisa. Contudo, por paradoxal que pareça, não registra nenhuma das dificuldades comentadas em termos de classificação racial por parte dos alunos entrevistados:
Em novembro de 2005, como um desdobramento da pesquisa realizada desde 2004, fizemos um survey nas 21 escolas cariocas que eram objeto de estudos de caso intensivo, sendo 19 delas da rede estadual, uma da rede federal e uma da rede particular. [...] Fizemos a pergunta sobre "cor/raça" do censo demográfico aos entrevistados e tivemos a seguinte distribuição: 35,5% se autodeclararam brancos, 39,5% se autodeclararam pardos e 25% se autodeclararam pretos. Verificamos que estes dados revelam uma população estudantil mais escura que a população do estado do Rio de Janeiro que, segundo o censo de 2000, compõe-se de 53,9% brancos, 33,7% de pardos, 10,9% pretos e menos de 1% amarelos e indígenas.50
Considerando a ênfase que Maggie51 deu às dificuldades de os alunos se autoclassificarem de acordo com as categorias raciais utilizadas pelo IBGE no pré-teste de sua pesquisa, feito em dezembro de 2004, pensamos que ela deveria pelo menos ter comentado ou explicado por que no resultado final da pesquisa os mesmos estudantes não tiveram problemas em se autoclassificarem, visto que a totalidade (100%) dos entrevistados se classificou como preto, branco ou pardo. Nenhum dos entrevistados se recusou a autoclassificar-se racialmente, não disse e nem insistiu que pertencia à raça humana, como fizera antes; nem mesmo deixou a resposta em branco, ou seja, não aparece nenhum resquício da recusa da maioria dos alunos manifestada anteriormente. A totalidade dos estudantes se autoclassificou em alguma das categorias raciais desse instituto.
Caso a nossa consideração seja procedente, e pensamos que ela é plausível, entendemos que os dados coletados e, conseqüentemente, as análises da pesquisa de Maggie52 podem estar comprometidos, ou seja, os seus argumentos contrários ao sistema de cotas fundamentados nessa pesquisa perdem credibilidade. Como, por exemplo, o argumento nas entrelinhas de que não se sabe quem é negro na sociedade brasileira ante a classificação racial ambígua ou, ainda, de que a maioria dos entrevistados se recusa a se autoclassificar racialmente ou não encontra na taxonomia do IBGE categorias que expressem a sua autoclassificação racial infere daí que não se pode ter um público-alvo para as políticas de ação afirmativa, especialmente para o sistema de cotas. Vale registrar que essa foi a única pesquisadora da área de ciências sociais que demonstrou ter realizado pesquisa sobre o sistema de cotas para se contrapor a ele. Contudo, como se observou, seu principal argumento contra o sistema de cotas, fundamentado na idéia de que os estudantes de ensino médio não se identificam em nenhuma das categorias raciais ou de cor utilizadas pelo IBGE, foi negado pela sua própria pesquisa.


Conclusão
Na virada do século XIX para o século XX as mulheres brasileiras iniciaram uma campanha pelo direito ao voto, ou seja, o direito eleitoral; foi o chamado movimento sufragista.53 Elas lutavam para serem respeitadas como ser humano, não serem inferiorizadas, tratadas como objeto e incapazes de pensar por si. Lutavam por manifestar opinião própria. Como os negros em suas lutas antigas e contemporâneas por igualdade racial e contra o racismo, as mulheres também sofreram fortíssimas resistências dos seus oponentes, neste caso, os homens. Portanto, enfrentaram enormes obstáculos que eram frutos do machismo.
Como acontece hoje com as propostas de ações afirmativas para negros, naquela época o debate sobre o sufrágio feminino chegou ao Congresso Nacional e à imprensa. Prevaleceu nesse debate o tom conservador no sentido de impedir que as mulheres tivessem direito ao voto. Vários argumentos foram sustentados contra o sufrágio feminino, especialmente porque se previa que ele levaria à "dissolução da família" brasileira.
Como hoje, contra os negros, os opositores de ontem, contra as mulheres, faziam previsões aterrorizantes e sem fundamentos históricos ou concretos para a sociedade brasileira caso fosse aprovado o direito de as mulheres votarem. Segundo alguns opositores ao voto feminino que participaram da Assembléia Constituinte de 1891:
Estender o voto às mulheres é uma idéia imoral e anárquica, porque, no dia em que for convertida em lei, ficará decretada a dissolução da família brasileira.54
Precisamos opor tenaz resistência, levantar um grande dique de encontro à onda devastadora que aí vem e que quer tragar, ameaçando derruir o gigantesco trabalho construtor dos nossos antepassados, na constituição da nossa nacionalidade, para o que precisamos da mulher no seu posto de honra, onde os nossos maiores a colocaram, como sentinela e guarda do santuário da família, fundamento do organismo social.55
Embora a mulher seja capaz dos mais arrojados cometimentos, embora possa abordar a mais alta questão de transcendência matemática [...] não deve ter o direito de sufrágio, porque a sua missão é a de educar os filhos.56
As previsões feitas pelos homens contra o voto feminino não passavam de terrorismo masculino contra as mulheres. O mesmo se pode dizer contemporaneamente quando renomados cientistas sociais da área de estudos e pesquisas sobre as relações raciais brasileiras, entre outros, afirmam sem nenhum indício concreto, ou seja, apenas fazendo previsões aterrorizadoras, que a política afirmativa de sistema de cotas para negros implica "divisões perigosas", bem como levará a conflitos raciais no Brasil do futuro. Contudo, o presente nos indica outras possibilidades mais promissoras e fundamentadas em fatos concretos. Não houve a dissolução da família brasileira com a ampliação dos direitos das mulheres, pelo contrário, houve o seu fortalecimento à medida que a sociedade brasileira foi se democratizando. E não temos dúvida de que a sociedade será mais pacífica racialmente à medida que os negros e outros grupos étnico-raciais tiverem as mesmas oportunidades e os mesmos tratamentos e direitos que a população branca tem no Brasil.
As universidades ao aplicarem as ações afirmativas, destacando-se as políticas de cotas, demonstram isso, e agora com a votação do PL 73/99 na Câmara Federal avança-se para a concretização por lei do caminho de geração de oportunidades para todos. As ações afirmativas devem ser aplicadas quando necessárias, sob avaliação dos representantes de órgãos públicos e de toda a sociedade, fortalecendo a relação dos movimentos sociais com os governos e também as entidades representativas dos interesses sociais por justiça e igualdade social e racial.
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[Recebido em novembro de 2008
e aceito para publicação em dezembro de 2008]
1 Gênero e raça são construções sociais que resultam invariavelmente em transformação de diferenças em desigualdades. Vale reafirmar que raça não é uma categoria natural ou biológica, enquanto sexo, sim, traduz o ser homem ou mulher com suas diferenças biológicas. 2 Kimberlé CRENSHAW, 2002, p. 173. 3 Eliane CAVALLEIRO, 2003, 1998. 4 Flávia PIOVESAN, 2007. 5 Maria Inês da Silva BARBOSA, 1998. 6 Matilde RIBEIRO, 1995, 1999, 2006, 2008. 7 Sales Augusto dos SANTOS, 2006, 2007. 8 CRENSHAW, 2002. 9 Edward Eric TELLES, 2003. 10 Joaquim B. Barbosa GOMES, 2001, p. 6-7. 11 Mary Garcia CASTRO, 2004. 12 Marlise M. M. ALMEIDA, 2007. 13 Marco Aurélio de MELLO, 2001, p. 5. 14 Neste artigo daremos destaque à Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos (Áustria - Viena, 1993), Conferência Mundial sobre a Mulher (China - Beijing, 1995) e III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância (África do Sul - Durban, 2001), mas é importante considerar também a realização da Conferência Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Brasil - Rio de Janeiro, 1992), da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Egito - Cairo, 1994), da Cúpula Mundial de Desenvolvimento Social (Dinamarca - Copenhague, 1995), da Conferência Mundial sobre os Assentamentos Humanos - Habitat II (Turquia - Istambul, 1996) e da Cúpula Mundial sobre Alimentação (Itália - Roma, 1996). 15 ONU, 1993. 16 PIOVESAN, 2007, p. 27. 17 ONU, 1995. 18 ONU, 2002. 19 PROGRAMA... apud C. A. MOURA e Jônatas Nunes BARRETO, 2002, p. 131, grifo nosso. 20 Sueli CARNEIRO, 2002. 21 Aqui utilizaremos o termo "movimentos negros e feministas", conforme decisão coletiva entre os quatro autores. Embora em outros textos deste dossiê Matilde Ribeiro utilize o termo "MOVIMENTO NEGRO e feminista" (no singular), sendo essa a sua posição pessoal. 22 RIBEIRO, 1995, 2006. 23 A Seppir foi criada em 21 de março de 2003 após intensas negociações entre o Governo Federal, depois da posse do Presidente Luiz Inácio LULA da Silva, e representações de entidades nacionais do MOVIMENTO NEGRO. 24 Os dados do Programa Políticas da Cor - PPCOR/UERJ-2008 contém na lista 78 instituições de ensino com algum tipo de ação afirmativa. Outros dados (seis novas universidades) foram agregados pelos autores. 25 IPEA, 2008. 26 Luciana JACOUD e Nathalie BEGHIN, 2002, p. 45-46. 27 Esta é uma formulação presente no "Programa para Superação do Racismo e da Desigualdade Racial" - Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida. 28 Marcelo PAIXÃO, 2006, p. 132. 29 Peter FRY, 2000, 2002, 2003, 2005a, 2005b, 2005-2006. 30 Yvonne MAGGIE, 2001, 2004, 2005a, 2005b, 2005-2006, 2006. 31 FRY e MAGGIE, 2004. 32 MAGGIE e FRY, 2002, 2004. 33 SANTOS, 2007. 34 Por exemplo, segundo Peter Fry, "todos nós sabemos das grandes e pequenas discriminações e humilhações que os cariocas mais escuros e mais pobres vivem cotidianamente. Todos nós gostaríamos de ver as universidades públicas cada vez mais multicoloridas (as privadas já são). Também acredito que a maioria quer que o Brasil elimine o racismo de tal jeito que a discriminação racial e o medo dela deixem de ferir tanto. Mas a 'solução' das cotas vai aumentar os problemas, não diminuí-los" (2003). 35 Sales Augusto dos SANTOS e Nelson Inocêncio Olokafá da SILVA, 2006. 36 FRY e MAGGIE, 2004. Eles escreveram também separadamente, cujo título foi "Em breve, um país dividido". 37 Clóvis MOURA, 1988. 38 José Itamar de FREITAS, 1969, p. 7. 39 Lívio SANSONE, 2004. 40 Por exemplo, Joseph Arthur de Gobineau, o Conde de Gobineau, um dos teóricos do "racismo científico", que defendia abertamente a superioridade da raça ariana (GOBINEAU apud Georges RAEDERS, 1988), também fez previsões sobre o futuro racial do Brasil. Após viver 14 meses no Brasil, de abril de 1869 a maio de 1870, como chefe da delegação diplomática da França, Gobineau construiu uma visão sobre a população brasileira que é sabidamente pessimista. Segundo ele, "em menos de 200 anos, [...] veremos o fim da posteridade dos companheiros de Costa Cabral e dos imigrantes que o sucederam", pois o "sangue mulato" produz "rebentos que não sobrevivem" (p. 241). Gobineau considerava os brasileiros "preguiçosos", "malandros", "feios", "degradáveis", "raquíticos" e, conseqüentemente, sem futuro, porque a miscigenação extremada os conduziria a uma decadência irremediável. Com relação aos negros que habitavam o Brasil, Gobineau foi tão ou mais taxativo quanto sobre os mestiços: eram uma "depravação primitiva" (p. 121). Segundo Gobineau, "Uma população toda mulata, com sangue viciado, espírito viciado e feia de meter medo [...]. Nenhum brasileiro é de sangue puro; as combinações dos casamentos entre brancos, indígenas e negros multiplicaram-se a tal ponto que os matizes da carnação são inúmeros, e tudo isso produziu, nas classes baixas e nas altas, uma degenerescência do mais triste aspecto [...] o resultado são compleições raquíticas que, se nem sempre repugnantes, são sempre desagradáveis aos olhos" (p. 90). 41 SANTOS, 2007. 42 MAGGIE, 2005, 2005-2006, 2006. 43 MAGGIE, 2005-2006, p. 113. 44 MAGGIE, 2005, 2005-2006. 45 Ver também FRY, 2005, p. 163. 46 MAGGIE, 2005, p. 289. 47 Célia Maria Marinho de AZEVEDO, 2004; FRY, 1995-1996; MAGGIE, 2005; e Marcos Chor MAIO e Ricardo Ventura SANTOS, 2004. 48 MAGGIE, 2005, 2005-2006. 49 SANTOS, 2006. 50 MAGGIE, 2006, p. 743-744. 51 MAGGIE, 2005, 2005-2006. 52 MAGGIE, 2005, 2005-2006, 2006. 53 Branca Moreira ALVES, 1980. 54 Muniz FREIRE apud ALVES, 1980. 55 Esaú de MORAES apud ALVES, 1980. 56 Barbosa LIMA apud ALVES, 1980.