Affirmative
actions: polemics and possibility about racial equality and the role
of the state
Sales
Augusto dos SantosI; Eliane CavalleiroI; Maria
Inês da Silva BarbosaII; Matilde RibeiroIII
IUniversidade
de Brasília
IISecretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
IIINúcleo de Estudos e Pesquisas sobre Movimentos Sociais - Nemos (PUC/SP)
IISecretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
IIINúcleo de Estudos e Pesquisas sobre Movimentos Sociais - Nemos (PUC/SP)
RESUMO
O
artigo analisa a importância do papel do Estado para a implementação
das políticas públicas de ação afirmativa, especialmente para
estudantes negros ingressarem no ensino superior público.
Argumenta-se que a ação afirmativa é uma das alternativas para
reduzir ou minimizar a desigualdade de inserção entre estudantes
negros e brancos de escolas públicas e/ou particulares no ensino
superior, especialmente por meio de uma de suas técnicas de
implementação: o sistema de cotas. Embora haja vários argumentos
contra o sistema de cotas, os autores se concentraram em debater ou
contra-argumentar apenas um: o de que o sistema de cotas poderá
gerar conflitos raciais no Brasil.
Palavras-chave:
políticas públicas; ações afirmativas; sistema de cotas; ensino
superior; conflitos raciais.
ABSTRACT
The
article analyses the importance of the role of the State for the
implementation of public policies of affirmative action, especially
for black students to enter public higher education. It argues that
affirmative action is one of the alternatives to reduce or minimize
the inequality in this field between black and white students and/or
students from public schools and private schools, in particular by
means of one of its techniques of implementation: the quota system.
In spite of there being various arguments against the quota system,
the authors concentrate on debating or counter-arguing only one: that
the quota system may generate racial conflicts in Brazil.
Key
Words: Public Policies; Affirmative Actions; Quota System; Higher
Education; Racial Conflicts.
Introdução
É
de conhecimento de todos que o Brasil é um país formado por
diferentes povos (indígenas, africanos, europeus, asiáticos, entre
outros) e que a interação social entre eles foi desigual desde o
início da colonização portuguesa. Alguns desses povos,
especialmente os brancos de origem européia, lograram vários
privilégios em relação aos demais povos que formaram a nação
brasileira. Em decorrência disso, até hoje, convivemos com grandes
desigualdades pautadas por diferenças de pertencimento de classe
social, de grupo racial e de sexo/gênero. Assim, no Brasil, ricos e
pobres, mulheres e homens, negros, indígenas, brancos, amarelos,
entre outros, têm possibilidades e maneiras muito distintas e
desiguais para a obtenção de bônus e de pagamento dos ônus
sociais.
As
diferenciações e as desigualdades citadas não são características
exclusivas de nosso país. E há soluções, por meio de um conjunto
de medidas, para superar todas as injustiças contra a maioria do
povo brasileiro. Para tentar amenizar as desigualdades supracitadas e
possibilitar que todos os grupos sociais brasileiros desenvolvam o
seu potencial humano (intelectual, cultural, econômico, educacional
etc.), não temos dúvida de que a educação formal e de qualidade
nos diferentes níveis de ensino deva ser direito formal e
substantivo de todos os grupos sociorraciais.
Porém,
lamentavelmente as desigualdades na esfera da educação são
gritantes, por exemplo, em geral os homens brancos nascidos nas
regiões Sul ou Sudeste são mais escolarizados e tendem a adquirir
maior destaque social em nosso país. Na contramão desse processo
estão as mulheres negras, especialmente as nascidas nas regiões
Norte e Nordeste e com baixa escolaridade.
Apesar
desses traços nas nossas relações sociais, a expansão
contemporânea do ensino público tem possibilitado que negros e
mulheres consigam concluir a educação básica. Finda essa fase,
esse grupo de pessoas, antes alijados do processo de escolarização,
também começa a demandar inserção em todos os cursos superiores.
Para as mulheres brancas com melhores condições econômicas, a
realização dessa demanda vem ocorrendo faz algum tempo. Boa parte
delas, após concluir o ensino médio, tem tido acesso ao nível
superior público, embora a grande maioria ainda esteja inserida em
cursos caracterizados como de menor valor social, como, por exemplo,
psicologia, pedagogia, nutrição, enfermagem. Mesmo nesses cursos
não valorizados adequadamente no mercado de trabalho, e até mesmo
no meio universitário, o número de alunas e alunos negros é ainda
ínfimo.
Não
temos dúvidas de que esse quadro é, ainda, reflexo do processo de
formação desigual e injusta do País, ou seja, a nossa formação
nacional fundada sob os valores da escravidão e do racismo levou a
sociedade brasileira a discriminar e/ou excluir racialmente a
população negra, o que, conseqüentemente, concentrou-a nos níveis
socioeconômicos mais baixos.
Nas
últimas décadas nosso país passou a ter expansão da educação
básica, e temos uma boa parte dos nossos estudantes concluindo-a.
Todavia, considerando as péssimas condições de vida da maioria
absoluta dos nossos estudantes, a (falta de) qualidade do ensino
oferecido a eles, bem como o racismo, o sexismo, a homofobia, entre
outras discriminações contra eles em nossas escolas, a competição
por vagas em nossas melhores universidades, entre os estudantes de
escolas públicas e os alunos mais ricos que estudam em escolas
particulares, é muito desigual; mesmo assim, hoje, muitos de nossos
estudantes de escolas públicas têm conseguido concluir o ensino
médio.
Quando
da necessária inserção no curso superior, lamentavelmente não há
vagas disponíveis para todos e em todas as carreiras. Uma
alternativa para reduzir ou minimizar a desigualdade de inserção
entre estudantes negros e brancos e/ou de escolas públicas e
particulares no ensino superior foi a demanda e/ou proposta dos
movimentos negros por um tipo de implementação técnica de política
de ação afirmativa, o sistema de cotas.
Várias
críticas surgiram contra essa alternativa que consideramos viável,
necessária e justa. E a inserção diferenciada no ensino superior
público brasileiro de estudantes negros e/ou pobres é importante
não somente para amenizar a enorme desigualdade quando se compara a
pequena inserção desses alunos com a dos alunos brancos e/ou ricos,
como essa inserção diferenciada possibilita a convivência entre
estudantes de classes sociais e grupos raciais diferentes; contribui
para a revisão e a reprovação de preconceitos raciais, de classe e
de atitudes discriminatórias; possibilita a formação de
profissionais negros ou de origem social pobre gerando novas
referências para a sociedade brasileira e novas visões sobre a
sociedade brasileira; democratiza (mesmo que minimamente) bens
culturais produzidos na sociedade; e, entre outras vantagens, melhora
a qualidade de vida dos grupos historicamente vulneráveis, podendo
inclusive diminuir a desigualdade sociorracial em nosso país. E não
temos dúvida de que ela também ajudará a diminuir as desigualdades
abismais que existem entre todos os demais grupos sociais e as
mulheres negras, que são as mais discriminadas na sociedade
brasileira, por serem negras e mulheres.
Como
afirmamos, há vários argumentos contra o sistema de cotas, mas
vamos nos concentrar em debater apenas um, o de que o sistema de
cotas poderá gerar conflitos raciais no Brasil. Além disso,
comentaremos rapidamente a importância do papel do Estado para a
implementação dessas políticas públicas.
Ações
afirmativas e o papel do Estado brasileiro
A
não aceitação e a indignação contra as discriminações racial e
de gênero, que foram impostas historicamente aos negros e às
mulheres, são pontos cruciais para nos direcionarmos às políticas
de ações afirmativas, buscando construir um novo conjunto de
direitos bem como a restauração das capacidades humanas desses
grupos vulnerabilizados pelas discriminações.
Kimberlé
Crenshaw, ao refletir sobre as questões de gênero e raça,1
aponta a importância da ampliação do enfrentamento do abuso dos
direitos relativos às mulheres, no campo dos direitos humanos. No
entanto, apresenta também uma reflexão partindo da existência da
interseccionalidade entre gênero e raça, assinalando a coexistência
entre ambas. Segundo a autora, discriminação racial,
é freqüentemente marcada pelo gênero, pois as mulheres podem às vezes vivenciar discriminações e outros abusos dos direitos humanos de uma maneira diferente dos homens. O imperativo de incorporação do gênero põe em destaque as formas pelas quais homens e mulheres são diferentemente afetados pela discriminação racial e por outras intolerâncias correlatas.2
Por caminhos e áreas
diferenciados pesquisadores e pesquisadoras brasileiros - Eliane
Cavalleiro,3
Flávia Piovesan,4
Maria Inês da Silva Barbosa,5
Matilde Ribeiro,6
Sales Augusto dos Santos7
- e estrangeiros - Kimberlé Crenshaw8
e Edward Telles,9
entre outros - vêm realizando estudos demarcando que, no Brasil, as
diferenças têm gerado desigualdades e, por conseqüência,
disparidades no tratamento das políticas públicas ora entre brancos
e negros, ora entre homens e mulheres e ora entre as condições de
gênero e raça. É apontada nesses estudos a necessidade de
consideração das diferenças como elementos "saudáveis"
que devem ser absorvidos de forma positiva nas políticas públicas
e, também, na aplicação das políticas de ações afirmativas.
Essas
perspectivas nos advertem da necessidade de políticas públicas, em
especial ações afirmativas visando à inclusão de negros e
mulheres na sociedade brasileira, de tal forma que esses grupos
possam ter pleno desenvolvimento social, político, cultural,
educacional e econômico.
O
que vêm a ser políticas de ações afirmativas? Há vários
conceitos sobre esse termo, destacamos a elaboração de Joaquim B.
Barbosa Gomes:
as ações afirmativas consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação, mas também a discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade. De cunho pedagógico e não raramente impregnadas de um caráter de exemplaridade, têm como meta, também, o engendramento de transformações culturais e sociais relevantes, inculcando nos atores sociais a utilidade e a necessidade da observância dos princípios do pluralismo e da diversidade nas mais diversas esferas do convívio humano. Constituem, por assim dizer, a mais eloqüente manifestação da moderna idéia de Estado promovente, atuante, eis que de sua concepção, implantação e delimitação jurídica participam todos os órgãos estatais essenciais, aí incluindo-se o Poder Judiciário, que ora se apresenta no seu tradicional papel de guardião da integridade do sistema jurídico como um todo, ora como instituição formuladora de políticas tendentes a corrigir as distorções provocadas pela discriminação.10
Ainda, segundo Mary
Castro11
e Marlise Almeida,12
as ações afirmativas, como parte dos debates contemporâneos,
devem, sem dúvida, pautar-se pela lógica complexa e complementar
entre demandas de redistribuição e de reconhecimento pertinentes às
atuais reivindicações políticas. Portanto, o Estado deve se
posicionar por meio de ações concretas, ou seja, ser promovente e
ir além de declaração de boas intenções e de programas pontuais
para este ou aquele grupo social. Como exemplo, e ao contrário do
pensamento (talvez mais sentimento que pensamento) da maioria dos
intelectuais brancos das ciências sociais que são contra as
políticas de ações afirmativas para estudantes negros, devemos
explicitar que o Estado deve apoiar e incentivar o sistema de cotas
no ensino superior, uma vez que, sob o ponto de vista dos direitos
humanos, esse sistema visa à igualdade de oportunidades e de
tratamento, bem como repor direitos - neste caso o direito
fundamental à educação superior de qualidade - que foram e são
sistemática e historicamente violados e usurpados da população
negra diante da discriminação racial.
Em
âmbito nacional, é importante destacar que as políticas públicas
de cunho democrático e de inclusão social, como as de ação
afirmativa, pautam-se pelas leis nacionais, tendo como principal
referência a Constituição Federal Brasileira, considerada uma
"Constituição Cidadã". Esse argumento é
ratificado juridicamente por Marco Aurélio de Mello:
urge a compreensão de que não se pode falar em Constituição sem levar em conta a igualdade, sem assumir o dever cívico de buscar o tratamento igualitário, de modo a saldar dívidas históricas para com as impropriamente chamadas minorias, ônus que é de toda a sociedade. [...] É preciso buscar a ação afirmativa. A neutralidade estatal mostrou-se um fracasso. Há de se fomentar o acesso à educação; urge um programa voltado aos menos favorecidos, a abranger horário integral, de modo a tirar-se meninos e meninas da rua, dando-se-lhes condições que os levem a ombrear com as demais crianças. E o Poder Público, desde já, independentemente de qualquer diploma legal, deve dar à prestação de serviços por terceiros uma outra conotação, estabelecendo, em editais, quotas que visem a contemplar os que têm sido discriminados. [...] Deve-se reafirmar: toda e qualquer lei que tenha por objetivo a concretude da Constituição não pode ser acusada de inconstitucional. Entendimento divergente resulta em subestimar ditames maiores da Carta da República, que agasalha amostragem de ação afirmativa, por exemplo, no artigo 7º, inciso XX, ao cogitar da proteção de mercado quanto à mulher e da introdução de incentivos; no artigo 37º, inciso III, ao versar sobre a reserva de vagas - e, portanto, a existência de quotas -, nos concursos públicos, para os deficientes; nos artigos 170º e 227º, ao emprestar tratamento preferencial às empresas de pequeno porte, bem assim à criança e ao adolescente.13
Com
isso, é enfatizado não somente a constitucionalidade da política,
como demonstrado, a Constituição Federal de 1988 incorpora
amostragem de ação afirmativa.
Toda
essa construção nacional, embora ainda muito frágil e complexa,
articula-se com a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
adotada na França/Paris, em 10 de dezembro de 1948, com a Convenção
Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação Racial - ICERD, em 1965, e com a Convenção sobre a
Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher -
CEDAW, em 1979. São esses importantes instrumentos mundiais para a
garantia de direitos e melhoria de condições de vida de todos os
cidadãos e cidadãs, sem distinção.
Esses
e tantos outros instrumentos, também, foram base para a realização
do Ciclo das Conferências Mundiais,promovido pela Organização das
Nações Unidas " ONU, nos anos 1990. Todas essas conferências14
direta ou indiretamente estimularam debates e proporcionaram
formulações nas esferas da vida social, econômica, política e
cultural, possibilitando o entendimento da necessidade de defesa de
outras políticas públicas, como as de ações afirmativas, bem como
o entendimento da necessidade do respeito à diversidade.
Flávia
Piovesan argumenta que a Conferência de Viena15
trouxe um impulso substantivo e animador no campo legal e de
políticas públicas, tendo por base a formulação sobre
universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos, partindo da
interdependência entre as áreas civis, políticas, econômicas,
sociais e culturais. Segundo a pesquisadora, mesmo considerando os
avanços, deve-se acrescentar aos resultados da Conferência de Viena
o valor e o princípio da "diversidade", pois a violação
dos direitos humanos alcança prioritariamente os grupos vulneráveis
como, por exemplo,
as mulheres, as populações afrodescendentes e os povos indígenas - daí os fenômenos da 'feminilização' e 'etnização' da pobreza [...]. A efetiva proteção dos direitos humanos demanda não apenas políticas universalistas, mas específicas, endereçadas a grupos socialmente vulneráveis, enquanto vítimas preferenciais da exclusão.16
Já
a Declaração de Viena e o Programa de Ação de Beijing17
diagnosticam e apontam medidas para alteração das condições de
vida, reafirmando compromissos em prol dos direitos humanos das
mulheres. As feministas brasileiras, ao analisarem o processo dessa
conferência, alegam que o debate que antecedeu a aprovação dos
documentos finais, o uso do termo "raça e etnia", gerou
longa e dura controvérsia. Porém, como um avanço, os documentos
finais trazem menções explícitas desses termos, partindo da
necessidade de superação de injustiça social que abate sobre a
população não branca, discriminada pelo racismo.
A
III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial,
a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância - realizada no
período de 31 de agosto a 8 de setembro de 2001, em Durban, na
África do Sul - teve como slogan: "Unidos para combater o
racismo: Igualdade, Justiça e Dignidade" e foi conectada à
agenda de "2001 - Ano Internacional de Mobilização contra o
Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia a as Formas Conexas de
Intolerância".
A
"Declaração e Programa de Ação de Durban"18
estabelecem com maior ênfase quem são as vítimas do racismo, da
discriminação racial, da xenofobia e de outras formas de
intolerância, destacando em sua ampla agenda as múltiplas formas de
discriminação que podem afetar sobremaneira as mulheres (em
particular as mulheres negras e indígenas) e impedir que elas
desfrutem ampla e dignamente seus direitos civis, políticos,
econômicos, sociais e culturais.
Foi
considerado que o colonialismo tem levado ao racismo e afetado mais
diretamente os africanos e os afrodescendentes, as pessoas de origem
asiática e os povos indígenas. A partir daí, foi anunciado que a
escravidão e a servidão dos descendentes de africanos, caribenhos,
povos indígenas, como também de outros povos discriminados, cujas
seqüelas ainda são vigentes, constituíram crimes de lesa
humanidade. Por isso, foi reafirmada a visão sobre o direito dos
povos vitimados à reparação.
Nesse
sentido, o Programa de Ação de Durban parte da necessidade de
aplicar os objetivos, destacando-se os artigos 99 e 100:
- Reconhece que o combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata é responsabilidade primordial dos Estados.Portanto, incentiva os Estados a desenvolverem e elaborarem planos de ação nacionais para promoverem a diversidade, igualdade, eqüidade, justiça social, igualdade de oportunidades e participação para todos. Através, dentre outras coisas, de ações e de estratégias afirmativas ou positivas; estes planos devem visar a criação de condições necessárias para a participação efetiva de todos nas tomadas de decisão e o exercício dos direitos civis, culturais, econômicos, políticos e sociais em todas as esferas da vida com base na não-discriminação.
- Insta os Estados a estabelecerem, com base em informações estatísticas, programas nacionais, inclusive programas de ações afirmativas ou medidas de ação positivas, para promoverem o acesso de grupos de indivíduos que são ou podem vir a ser vítimas de discriminação racial nos serviços básicos, incluindo, educação fundamental, atenção primária à saúde e moradia adequada.19
Sueli
Carneiro20
a partir do instigante artigo "A batalha de Durban" resgata
que os documentos aprovados em Durban instam os Estados a adotar
posturas de eliminação da desigualdade racial e de gênero.
Portanto, chama a atenção que o papel dos governos ou do Estado
para a implementação e o sucesso das políticas públicas de ação
afirmativa é não só necessário mas também indispensável.
No Brasil, antes mesmo do
Ciclo das Conferências Mundiais, a partir da segunda metade dos anos
1980, vêm sendo realizadas ações, mesmo que insuficientes, nas
três instâncias do governo (Federal, Estadual e Municipal),
voltadas às mulheres e aos negros e mais recentemente aos jovens e
aos homossexuais. Isso se dá em resposta às pressões dos
movimentos sociais, dos quais destacamos os movimentos negros e
feministas.21
Segundo Matilde Ribeiro,22
no interior desses e nas últimas décadas com organização
autônoma, é, ainda, importante destacar as organizações de
mulheres negras que enfatizam o valor da diversidade e o
empoderamento dessas como agentes políticas.
Primeiramente,
foram criados os conselhos das mulheres e de negros, depois as
delegacias de defesa das mulheres, os SOS racismo, bem como
delegacias contra discriminação racial. Em seguida, foram criados
órgãos articuladores e/ou executores de promoção da igualdade
racial e/ou de gênero, como secretarias, coordenadorias, assessorias
e afins.
Atualmente,
tem-se buscado desenvolver ações afirmativas a partir da
intersetorialidade das políticas públicas nos diversos órgãos de
governo sob orientação e coordenação de alguns órgãos, como a
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres - SPM, a
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial -
Seppir, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos - SEDH e também a
Secretaria Nacional de Juventude - SNJ. Vale ressaltar que tem sido
extremamente salutar o processo de debates e de consultas por meio
dos canais de participação, como conselhos de políticas públicas
e de direitos, ouvidorias, conferências, consultas públicas, entre
outros.
Tudo
isso, associado principalmente às pressões dos movimentos negros
por igualdade racial, tem possibilitado a discussão e a necessidade
de políticas de ações afirmativas para grupos sociais que
historicamente têm sido discriminados na sociedade brasileira.23
Dessa maneira, tem sido desenvolvido um "casamento"
necessário e imprescindível entre políticas universalistas e
políticas públicas específicas, como as de ação afirmativa.
Tais
políticas, pautadas pelas demandas dos movimentos negro e feminista,
intensificaram significativas mudanças na sociedade brasileira, em
que o racismo e o sexismo estão sendo questionados profundamente,
embora haja fortes forças conservadoras, lideradas inclusive por
renomados cientistas sociais, lutando pela manutenção do antigo
status quo.
As
leis, espelhando as lutas sociais, têm construído um caminho
inverso a essas tais forças conservadoras. Em 9 de janeiro de 2003,
foi alterada a lei que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação
Nacional - LDB 9394/96, incluindo no currículo do ensino fundamental
e médio da rede de ensino público e privado o ensino de história e
cultura afro-brasileira - Lei n. 10.639; em 11 de março de 2008, a
LDB foi alterada pela Lei n. 11.645/08, tornando também obrigatório
o ensino da história e cultura dos povos indígenas.
Do
ponto de vista da educação em nível superior no Brasil, hoje,
dezembro de 2008, existem 84 instituições de ensino público que
nos últimos oito anos adotaram algum tipo de ação afirmativa de
ingresso, incluindo o sistema de cotas.24
Tem-se a avaliação de desempenho próximo, similar ou até melhor
dos alunos cotistas em relação aos não cotistas.
Segundo
o Ipea, no biênio 2005-2006, cotistas obtiveram maior média de
rendimento em 31 dos 55 cursos (Unicamp) e coeficiente de rendimento
(CR) igual ou superior aos de não cotistas em 11 dos 16 cursos
(UFBA). Na UnB, não cotistas tiveram maior índice de aprovação
(92,98% contra 88,90%) e maior média geral do curso (3,79% contra
3,57%), porém trancaram 1,76% das matérias, contra 1,73% dos
cotistas. Por outro lado, dados do Censo Educacional de 2005 do MEC
mostram ainda que instituições públicas realizam, em média, 331
mil matrículas anualmente. Apenas 2,37% (cerca de 7.850) delas são
destinadas a estudantes negros.25
Por
parte do Legislativo, temos em 20 de novembro de 2008 a aprovação
na Câmara Federal do PL 73/99, que reserva 50% das vagas das
universidades públicas a alunos que cursaram integralmente o ensino
médio em escolas públicas, respeitando o percentual de negros e
indígenas em cada Unidade da Federação. O projeto segue para
aprovação no Senado Federal.
Essas
medidas, sem dúvida, dão concretude às perspectivas anunciadas,
ainda em 2002, por Luciana Jacoud e Nathalie Beghin, que ao tratarem
das ações afirmativas admitem que
o reconhecimento de que a igualdade formal não garante aos que são socialmente desfavorecidos o acesso às mesmas oportunidades que têm aqueles que são socialmente privilegiados promoveu um esforço de ampliação não apenas do conteúdo jurídico e moral da idéia de igualdade, mas das próprias possibilidades jurídicas de concretizá-la.26
Com
isso, as políticas de ação afirmativa partem de uma crítica ao
princípio da igualdade formal diante da lei e reforçam a
perspectiva de igualdade de oportunidade.27
Segundo Marcelo Paixão:
As políticas de ação afirmativas estão fundamentadas em um princípio ético que, buscando a superação das desigualdades (sociais, raciais, éticas, de gênero, de outras minorias), defende a hipótese da concessão de tratamento desigual a pessoas socialmente desiguais.28
Dessa
maneira, compreende-se que, quando aplicadas, as ações afirmativas
restituem a igualdade de oportunidades entre os diferentes grupos
raciais, promovendo um tratamento diferenciado e preferencial àqueles
historicamente marginalizados.
Cientistas
sociais: pesquisa acadêmico-científica ou futurologia?
Como
dito, há fortes forças conservadoras contra as políticas de ações
afirmativas para estudantes negros. E há também entre alguns
cientistas sociais contrários às cotas para estudantes negros uma
desconsideração ou negação do conhecimento acadêmico já
produzido a respeito de ações afirmativas. Tal desconsideração
sobre o assunto põe no mínimo em suspeita as críticas às
políticas afirmativas, pois essas não nascem de estudos
sistematizados ou da revisão dos referenciais teóricos sobre ações
afirmativas para produzir novos conhecimentos ou mesmo confirmar ou
reformular conhecimentos anteriores e, conseqüentemente, criticar o
sistema de cotas.
Por exemplo, os
antropólogos e professores titulares do Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais - IFCS, da Universidade Federal do Rio de Janeiro "
UFRJ, Peter Fry29
e Yvonne Maggie,30
ou ainda Fry e Maggie31
e Maggie e Fry,32
dois dos mais contundentes críticos das políticas de cotas nas
universidades públicas brasileiras, ao escreverem artigos e até
mesmo livros sobre a questão racial e a implementação de ações
afirmativas para negros na educação superior brasileira, citam
várias vezes no mesmo artigo ou livro a expressão "ação
afirmativa" e jamais entram na discussão teórica sobre esse
tema, nem sequer apresentam um conceito ou uma definição explícita,
conforme se pode ver em Santos.33
Ao
desconsiderarem esses procedimentos metodológicos sobre a produção
do conhecimento acadêmico-científico, alguns cientistas sociais
contrários às cotas para negros fazem, em geral, apenas previsões
sem fundamento histórico para a sociedade; previsões que muito se
aproximam de futurologia e muito se afastam da construção de
conhecimento fundamentado em pesquisas e no rigor acadêmico.
Essa
fórmula permite a divulgação de afirmações esvaziadas de
concretude do tipo: "as cotas para negros nos vestibulares das
universidades públicas vão racializar a sociedade brasileira",
ou ainda "vai haver uma divisão racial do Brasil", ou
"divisões perigosas", entre outras insustentáveis
previsões catastróficas.
Cabem, desse modo, duas
breves considerações. A primeira diz respeito aos autores que são
contra as cotas para negros nos vestibulares e mesmo assim admitem
que a sociedade brasileira discrimina racialmente os negros.34
Ora, existe sociedade que discrimina racialmente os negros e que não
é racializada? Se uma sociedade é racista contra um determinado
grupo social é porque ela racializa, ou seja, usa a raça para
classificar e julgar previamente os seus cidadãos, alguns
positivamente e outros negativamente, não levando em consideração
somente o seu caráter para julgá-los. Portanto, não é à toa que
os dados estatísticos oficiais (do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística - IBGE e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
- Ipea) e não oficiais (do Departamento Intersindical de Estatística
e Estudos Socioeconômicos - DIEESE) mostram uma desigualdade racial
brutal entre negros e brancos no Brasil.35
A
segunda consideração discute por que esses cientistas começam a
trabalhar com cenários desanimadores sobre o futuro do Brasil no que
diz respeito às relações raciais. O receio de um futuro violento
passa a ser um dos argumentos desses autores contra as cotas, visto
que eles descortinam, com a implantação das políticas de ação
afirmativa para negros, cenários de conflito racial aberto no tempo
que há de vir. Por exemplo, Maggie e Fry já compartilharam a
escrita de artigos36
em que fazem previsões não otimistas sobre o futuro racial do
Brasil após o processo de implementação das ações afirmativas
para os negros. Segundo esses artigos, dentre outros, as cotas vão
aumentar o "acirramento das tensões raciais existentes" e
provocarão uma "cisão racial" no Brasil.
Tal
previsão sem lastro sócio-histórico, ao que tudo indica, tende a
ser mais uma das muitas que já foram feitas (e não se realizaram)
na esfera das relações raciais, algumas vezes supondo: a) um
melhoramento ou um acirramento das relações raciais brasileiras no
futuro; e b) mudanças profundas na composição racial do Brasil
pela extinção dos negros e dos indígenas, entre outras previsões.
E
previsões sobre a composição racial brasileira e sobre as relações
raciais no Brasil não deixaram de existir ao longo de todo o século
XX, bem como também não se realizaram até a presente data. Por
exemplo, em 1982, segundo o historiador Clóvis Moura,37
assessor do antigo Banco do Estado de São Paulo " Banespa,
apresentou um trabalho no qual previa que a população negra
brasileira chegaria a 60% do total de brasileiros no ano 2000,
podendo inclusive tomar o controle político do País e dominar os
postos-chave. Nada disso aconteceu no ano 2000.
Durante
o regime militar no Brasil, mais precisamente no final da década de
1960, também houve medos e previsões de que poderia haver conflitos
raciais manifestados pública e abertamente no Brasil do futuro, ou
seja, do ano 2000. Nessa época, o jornalista Itamar de Freitas
organizou uma equipe de pesquisadores e intelectuais (sociólogos,
etnólogos, educadores, entre outros) para discutir como seria o
Brasil no ano 2000. O resultado desse trabalho prospectivo foi o
livro Brasil ano 2000: o futuro sem fantasia, publicado pela
editora Biblioteca do Exército Brasileiro, em 1969.
Apoiando-se
nas análises feitas pelo sociólogo Nelson Mello e Souza, da
Fundação Getúlio Vargas, logo na introdução do livro o seu
organizador, Itamar de Freitas, afirmava que não chegamos a ser
racistas segregadores, mas que também não podemos nos orgulhar da
chamada democracia racial brasileira. E na época já perguntava:
Como reagiremos - por exemplo - quando os negros vencerem as dificuldades sociais e econômicas que os segregam, deixarem de ser apenas 448 universitários em 5.600.000 indivíduos? Hoje, os negros não incomodam, mas o que acontecerá quando eles tiverem - ainda que uma minoria expressiva deles - poder econômico para comprar títulos de clubes fechados, ou forçar sua entrada nos colégios mais caros, ou forçar sua admissão nos escritórios ou postos importantes, ou morar nas zonas residenciais de "primeira classe"? Estaremos maduros, bastante para aceitá-los como irmãos em tudo, ou vamos partir para conflitos raciais?38
Nota-se
que o autor se posiciona como homem branco, assume que seria por
iniciativa dos brancos que provavelmente haveria ataques ou conflitos
raciais no Brasil do futuro. No referido livro, o tópico "Racismo
no país da classe média", cujo instigante título é a "Crise
racial no Brasil - ano 2000", Freitas, concordando com a análise
do sociólogo Mello e Souza, conclui que poderia haver lutas raciais
no Brasil do ano de 2000, embora o país não fosse se transformar
num novo Estados Unidos da América nem na África do Sul.
O
que é importante ressaltar aqui é que previsões sobre a composição
racial brasileira e sobre conflitos explicitamente raciais no Brasil
(do futuro) existiram ao longo do império e período republicano,
porém nunca se concretizaram. Aliás, o antropólogo Lívio
Sansone39
sustenta que, em outros contextos sociais diversos do brasileiro, a
idéia de "raça" e a etnicidade já deflagraram tumultos e
até mesmo guerras, mas, no Brasil, mesmo havendo racismo contra os
negros, não houve ações coletivas violentas desse tipo.
Portanto, não há
antecedentes históricos que demonstrem a possibilidade de haver
ampliação dos conflitos raciais no Brasil, até mesmo porque todas
as previsões na área das relações raciais brasileiras feitas
anteriormente por políticos e cientistas sociais não se
concretizaram.40
Lamentavelmente, essas previsões ou afirmações geralmente são
feitas sem nenhum suporte ou evidência histórica, nem mesmo
calcadas em pesquisas. Aliás, dos autores contrários às cotas que
pesquisam e estudam a questão racial citados neste artigo, raros são
os que realizam pesquisas (tanto quantitativas quanto qualitativas)
nas quais buscam incluir o tema das ações afirmativas, conforme se
pode ver em Santos.41
Uma
revisão da literatura evidencia que Maggie,42
dentre renomados cientistas sociais contrários a cotas, foi a única
que buscou fundamentar alguns de seus argumentos contra o sistema de
cotas por meio de pesquisas. Em publicação contendo parte dos
resultados da "pesquisa sobre o impacto de políticas públicas
em escolas de ensino médio do Rio de Janeiro", a autora
argumenta:
a pesquisa realizada em escolas do Rio de Janeiro se insere em um projeto maior - "Acompanhando as ações Afirmativas no Ensino Superior" - e mobilizou 20 estudantes de graduação e pós-graduação que empreenderam 16 estudos de caso em escolas da rede estadual e escolhidas entre as que foram classificadas com os piores indicadores a partir da avaliação do Programa Nova Escola.43
Maggie,44
tentando confirmar a sua tese de que o Brasil é um país altamente
misturado, onde há uma classificação racial ambígua ante a
mestiçagem cultural e biológica brasileira45
e, conseqüentemente, o gradiente de cor da sociedade brasileira,
afirmou que a pergunta que suscitou mais dúvidas dos alunos foi
sobre a identificação de cor/raça deles. Ela chegou a essa
conclusão após fazer um pré-teste, por meio de questionários, com
alunos das escolas públicas do Estado do Rio de Janeiro onde estava
realizando a pesquisa:
Aplicamos um questionário para estudantes do primeiro ano do ensino médio. Era ainda um pré-teste. Entre as perguntas, havia uma que pedia aos estudantes que se autoclassificassem em uma das categorias do Censo Demográfico. A pergunta, igual à formulada pelo IBGE, era a seguinte: Qual é sua cor/raça: ( ) branca ( ) preta ( ) parda ( ) amarela ( ) indígena. Essa pergunta foi a que suscitou mais dúvidas e mais reação de todo o extenso questionário. A maioria dos estudantes não queria identificar-se em nenhuma das categorias. Alguns falaram e outros escreveram à margem da resposta fechada, raça humana. Outros riam e perguntavam aos colegas, qual a minha cor? Outros ainda falaram revoltados que essa pergunta estava errada porque não existem "raças" humanas.46
Os resultados desse
pré-teste aparentemente indicavam o que alguns intelectuais e
pesquisadores que estudam as relações raciais brasileiras47
já afirmavam: que as cinco categorias raciais utilizadas pelo IBGE
para coletar informações sobre a cor/raça são limitadas ou,
ainda, de fato não fazem sentido para os brasileiros, ou seja, o
pré-teste da professora Yvonne Maggie,48
ao que tudo indicava, corroborava a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios " PNAD, realizada em 1976 pelo IBGE, que deixou o
quesito cor/raça em aberto, isto é, espontâneo, o que permitiu
verificar que naquela época os brasileiros autoclassificaram-se em
135 cores/raças.49
Por
outro lado, no artigo "Racismo e anti-racismo: preconceito,
discriminação e os jovens estudantes nas escolas cariocas",
Maggie divulgou os primeiros resultados da pesquisa. Contudo, por
paradoxal que pareça, não registra nenhuma das dificuldades
comentadas em termos de classificação racial por parte dos alunos
entrevistados:
Em novembro de 2005, como um desdobramento da pesquisa realizada desde 2004, fizemos um survey nas 21 escolas cariocas que eram objeto de estudos de caso intensivo, sendo 19 delas da rede estadual, uma da rede federal e uma da rede particular. [...] Fizemos a pergunta sobre "cor/raça" do censo demográfico aos entrevistados e tivemos a seguinte distribuição: 35,5% se autodeclararam brancos, 39,5% se autodeclararam pardos e 25% se autodeclararam pretos. Verificamos que estes dados revelam uma população estudantil mais escura que a população do estado do Rio de Janeiro que, segundo o censo de 2000, compõe-se de 53,9% brancos, 33,7% de pardos, 10,9% pretos e menos de 1% amarelos e indígenas.50
Considerando
a ênfase que Maggie51
deu às dificuldades de os alunos se autoclassificarem de acordo com
as categorias raciais utilizadas pelo IBGE no pré-teste de sua
pesquisa, feito em dezembro de 2004, pensamos que ela deveria pelo
menos ter comentado ou explicado por que no resultado final da
pesquisa os mesmos estudantes não tiveram problemas em se
autoclassificarem, visto que a totalidade (100%) dos entrevistados se
classificou como preto, branco ou pardo. Nenhum dos entrevistados se
recusou a autoclassificar-se racialmente, não disse e nem insistiu
que pertencia à raça humana, como fizera antes; nem mesmo deixou a
resposta em branco, ou seja, não aparece nenhum resquício da recusa
da maioria dos alunos manifestada anteriormente. A totalidade dos
estudantes se autoclassificou em alguma das categorias raciais desse
instituto.
Caso
a nossa consideração seja procedente, e pensamos que ela é
plausível, entendemos que os dados coletados e, conseqüentemente,
as análises da pesquisa de Maggie52
podem estar comprometidos, ou seja, os seus argumentos contrários ao
sistema de cotas fundamentados nessa pesquisa perdem credibilidade.
Como, por exemplo, o argumento nas entrelinhas de que não se sabe
quem é negro na sociedade brasileira ante a classificação racial
ambígua ou, ainda, de que a maioria dos entrevistados se recusa a se
autoclassificar racialmente ou não encontra na taxonomia do IBGE
categorias que expressem a sua autoclassificação racial infere daí
que não se pode ter um público-alvo para as políticas de ação
afirmativa, especialmente para o sistema de cotas. Vale registrar que
essa foi a única pesquisadora da área de ciências sociais que
demonstrou ter realizado pesquisa sobre o sistema de cotas para se
contrapor a ele. Contudo, como se observou, seu principal argumento
contra o sistema de cotas, fundamentado na idéia de que os
estudantes de ensino médio não se identificam em nenhuma das
categorias raciais ou de cor utilizadas pelo IBGE, foi negado pela
sua própria pesquisa.
Conclusão
Na
virada do século XIX para o século XX as mulheres brasileiras
iniciaram uma campanha pelo direito ao voto, ou seja, o direito
eleitoral; foi o chamado movimento sufragista.53
Elas lutavam para serem respeitadas como ser humano, não serem
inferiorizadas, tratadas como objeto e incapazes de pensar por si.
Lutavam por manifestar opinião própria. Como os negros em suas
lutas antigas e contemporâneas por igualdade racial e contra o
racismo, as mulheres também sofreram fortíssimas resistências dos
seus oponentes, neste caso, os homens. Portanto, enfrentaram enormes
obstáculos que eram frutos do machismo.
Como
acontece hoje com as propostas de ações afirmativas para negros,
naquela época o debate sobre o sufrágio feminino chegou ao
Congresso Nacional e à imprensa. Prevaleceu nesse debate o tom
conservador no sentido de impedir que as mulheres tivessem direito ao
voto. Vários argumentos foram sustentados contra o sufrágio
feminino, especialmente porque se previa que ele levaria à
"dissolução da família" brasileira.
Como
hoje, contra os negros, os opositores de ontem, contra as mulheres,
faziam previsões aterrorizantes e sem fundamentos históricos ou
concretos para a sociedade brasileira caso fosse aprovado o direito
de as mulheres votarem. Segundo alguns opositores ao voto feminino
que participaram da Assembléia Constituinte de 1891:
Estender
o voto às mulheres é uma idéia imoral e anárquica, porque, no dia
em que for convertida em lei, ficará decretada a dissolução da
família brasileira.54
Precisamos opor tenaz resistência, levantar um grande dique de encontro à onda devastadora que aí vem e que quer tragar, ameaçando derruir o gigantesco trabalho construtor dos nossos antepassados, na constituição da nossa nacionalidade, para o que precisamos da mulher no seu posto de honra, onde os nossos maiores a colocaram, como sentinela e guarda do santuário da família, fundamento do organismo social.55
Embora a mulher seja capaz dos mais arrojados cometimentos, embora possa abordar a mais alta questão de transcendência matemática [...] não deve ter o direito de sufrágio, porque a sua missão é a de educar os filhos.56
As
previsões feitas pelos homens contra o voto feminino não passavam
de terrorismo masculino contra as mulheres. O mesmo se pode dizer
contemporaneamente quando renomados cientistas sociais da área de
estudos e pesquisas sobre as relações raciais brasileiras, entre
outros, afirmam sem nenhum indício concreto, ou seja, apenas fazendo
previsões aterrorizadoras, que a política afirmativa de sistema
de cotas para negros implica "divisões perigosas", bem
como levará a conflitos raciais no Brasil do futuro. Contudo, o
presente nos indica outras possibilidades mais promissoras e
fundamentadas em fatos concretos. Não houve a dissolução da
família brasileira com a ampliação dos direitos das mulheres, pelo
contrário, houve o seu fortalecimento à medida que a sociedade
brasileira foi se democratizando. E não temos dúvida de que a
sociedade será mais pacífica racialmente à medida que os negros e
outros grupos étnico-raciais tiverem as mesmas oportunidades e os
mesmos tratamentos e direitos que a população branca tem no Brasil.
As
universidades ao aplicarem as ações afirmativas, destacando-se as
políticas de cotas, demonstram isso, e agora com a votação do PL
73/99 na Câmara Federal avança-se para a concretização por lei do
caminho de geração de oportunidades para todos. As ações
afirmativas devem ser aplicadas quando necessárias, sob avaliação
dos representantes de órgãos públicos e de toda a sociedade,
fortalecendo a relação dos movimentos sociais com os governos e
também as entidades representativas dos interesses sociais por
justiça e igualdade social e racial.
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[Recebido
em novembro de 2008
e aceito para publicação em dezembro de 2008]
e aceito para publicação em dezembro de 2008]
1
Gênero e raça são construções sociais que resultam
invariavelmente em transformação de diferenças em desigualdades.
Vale reafirmar que raça não é uma categoria natural ou biológica,
enquanto sexo, sim, traduz o ser homem ou mulher com suas diferenças
biológicas. 2
Kimberlé CRENSHAW, 2002, p. 173. 3
Eliane CAVALLEIRO, 2003, 1998. 4
Flávia PIOVESAN, 2007. 5
Maria Inês da Silva BARBOSA, 1998. 6
Matilde RIBEIRO, 1995, 1999, 2006, 2008. 7
Sales Augusto dos SANTOS, 2006, 2007. 8
CRENSHAW, 2002. 9
Edward Eric TELLES, 2003. 10
Joaquim B. Barbosa GOMES, 2001, p. 6-7. 11
Mary Garcia CASTRO, 2004. 12
Marlise M. M. ALMEIDA, 2007. 13
Marco Aurélio de MELLO, 2001, p. 5. 14
Neste artigo daremos destaque à Conferência Mundial sobre os
Direitos Humanos (Áustria - Viena, 1993), Conferência Mundial sobre
a Mulher (China - Beijing, 1995) e III Conferência Mundial contra o
Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de
Intolerância (África do Sul - Durban, 2001), mas é importante
considerar também a realização da Conferência Mundial sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento (Brasil - Rio de Janeiro, 1992), da
Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Egito
- Cairo, 1994), da Cúpula Mundial de Desenvolvimento Social
(Dinamarca - Copenhague, 1995), da Conferência Mundial sobre os
Assentamentos Humanos - Habitat II (Turquia - Istambul, 1996) e da
Cúpula Mundial sobre Alimentação (Itália - Roma, 1996). 15
ONU, 1993. 16
PIOVESAN, 2007, p. 27. 17
ONU, 1995. 18
ONU, 2002. 19
PROGRAMA... apud C. A. MOURA e Jônatas Nunes BARRETO, 2002, p. 131,
grifo nosso. 20
Sueli CARNEIRO, 2002. 21
Aqui utilizaremos o termo "movimentos negros e feministas",
conforme decisão coletiva entre os quatro autores. Embora em outros
textos deste dossiê Matilde Ribeiro utilize o termo "MOVIMENTO
NEGRO e feminista" (no singular), sendo essa a sua posição
pessoal. 22
RIBEIRO, 1995, 2006. 23
A Seppir foi criada em 21 de março de 2003 após intensas
negociações entre o Governo Federal, depois da posse do Presidente
Luiz Inácio LULA da Silva, e representações de entidades nacionais
do MOVIMENTO NEGRO. 24
Os dados do Programa Políticas da Cor - PPCOR/UERJ-2008 contém na
lista 78 instituições de ensino com algum tipo de ação
afirmativa. Outros dados (seis novas universidades) foram agregados
pelos autores. 25
IPEA, 2008. 26
Luciana JACOUD e Nathalie BEGHIN, 2002, p. 45-46. 27
Esta é uma formulação presente no "Programa para Superação
do Racismo e da Desigualdade Racial" - Marcha Zumbi dos Palmares
contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida. 28
Marcelo PAIXÃO, 2006, p. 132. 29
Peter FRY, 2000, 2002, 2003, 2005a, 2005b, 2005-2006. 30
Yvonne MAGGIE, 2001, 2004, 2005a, 2005b, 2005-2006, 2006. 31
FRY e MAGGIE, 2004. 32
MAGGIE e FRY, 2002, 2004. 33
SANTOS, 2007. 34
Por exemplo, segundo Peter Fry, "todos nós sabemos das grandes
e pequenas discriminações e humilhações que os cariocas mais
escuros e mais pobres vivem cotidianamente. Todos nós gostaríamos
de ver as universidades públicas cada vez mais multicoloridas (as
privadas já são). Também acredito que a maioria quer que o Brasil
elimine o racismo de tal jeito que a discriminação racial e o medo
dela deixem de ferir tanto. Mas a 'solução' das cotas vai aumentar
os problemas, não diminuí-los" (2003). 35
Sales Augusto dos SANTOS e Nelson Inocêncio Olokafá da SILVA, 2006.
36
FRY e MAGGIE, 2004. Eles escreveram também separadamente, cujo
título foi "Em breve, um país dividido". 37
Clóvis MOURA, 1988. 38
José Itamar de FREITAS, 1969, p. 7. 39
Lívio SANSONE, 2004. 40
Por exemplo, Joseph Arthur de Gobineau, o Conde de Gobineau, um dos
teóricos do "racismo científico", que defendia
abertamente a superioridade da raça ariana (GOBINEAU apud Georges
RAEDERS, 1988), também fez previsões sobre o futuro racial do
Brasil. Após viver 14 meses no Brasil, de abril de 1869 a maio de
1870, como chefe da delegação diplomática da França, Gobineau
construiu uma visão sobre a população brasileira que é
sabidamente pessimista. Segundo ele, "em menos de 200 anos,
[...] veremos o fim da posteridade dos companheiros de Costa Cabral e
dos imigrantes que o sucederam", pois o "sangue mulato"
produz "rebentos que não sobrevivem" (p. 241). Gobineau
considerava os brasileiros "preguiçosos", "malandros",
"feios", "degradáveis", "raquíticos"
e, conseqüentemente, sem futuro, porque a miscigenação extremada
os conduziria a uma decadência irremediável. Com relação aos
negros que habitavam o Brasil, Gobineau foi tão ou mais taxativo
quanto sobre os mestiços: eram uma "depravação primitiva"
(p. 121). Segundo Gobineau, "Uma população toda mulata, com
sangue viciado, espírito viciado e feia de meter medo [...]. Nenhum
brasileiro é de sangue puro; as combinações dos casamentos entre
brancos, indígenas e negros multiplicaram-se a tal ponto que os
matizes da carnação são inúmeros, e tudo isso produziu, nas
classes baixas e nas altas, uma degenerescência do mais triste
aspecto [...] o resultado são compleições raquíticas que, se nem
sempre repugnantes, são sempre desagradáveis aos olhos" (p.
90). 41
SANTOS, 2007. 42
MAGGIE, 2005, 2005-2006, 2006. 43
MAGGIE, 2005-2006, p. 113. 44
MAGGIE, 2005, 2005-2006. 45
Ver também FRY, 2005, p. 163. 46
MAGGIE, 2005, p. 289. 47
Célia Maria Marinho de AZEVEDO, 2004; FRY, 1995-1996; MAGGIE, 2005;
e Marcos Chor MAIO e Ricardo Ventura SANTOS, 2004. 48
MAGGIE, 2005, 2005-2006. 49
SANTOS, 2006. 50
MAGGIE, 2006, p. 743-744. 51
MAGGIE, 2005, 2005-2006. 52
MAGGIE, 2005, 2005-2006, 2006. 53
Branca Moreira ALVES, 1980. 54
Muniz FREIRE apud ALVES, 1980. 55
Esaú de MORAES apud ALVES, 1980. 56
Barbosa LIMA apud ALVES, 1980.
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