quarta-feira, 28 de setembro de 2016

POLÍTICAS PÚBLICAS E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NO BRASIL - a luta da população negra por reconhecimento e educação



Claudilene Silva - Brasil
Doutoranda em Educação
Universidade Federal de Pernambuco – Recife
Bolsista FACEPE

Carlos Augusto Sant’Anna Guimarães - Brasil
Doutorando em Ciência Política
Universidade Estadual de Campinas/Unicamp – Campinas
Pesquisador da Fundação Joaquin Nabuco

Resumo

O presente artigo analisa os acontecimentos e iniciativas que possibilitaram a transformação das demandas dos movimentos negros em políticas de promoção da igualdade racial, focalizando especialmente o campo da educação. O trabalho configura-se como uma pesquisa exploratória, realizada a partir da produção acadêmica já disponível e de documentos públicos (legislação atinente ao tema, programas e projetos elaborados por agentes públicos, documentos produzidos pelo movimento negro sobre a política). Para melhor compreender a trajetória da luta antirracista dos movimentos negros brasileiros, dialogamos com a perspectiva epistêmica dos estudos pós-coloniais latino-americanos. Analisamos o processo de construção (em andamento) de uma política de educação para as relações étnico-raciais no Brasil. Nesse contexto, buscamos evidenciar que políticas focais para a população negra incidem diretamente na oferta de políticas universais, uma vez que essa população constitui a maioria da população brasileira.

Palavras-chaves: políticas públicas, relações étnico-raciais, educação, população negra.

1. Introdução

Em meados do século XIX, a ideia de branqueamento tornou-se política de Estado no Brasil e perdurou até os anos de 1930 (Seyferth, 2002). No início do século XX, os eugenistas brasileiros acreditavam que a raça negra desapareceria do país por meio da miscigenação com o elemento branco, numa espécie de mestiçagem redentora (Schwarcz, 2011).
No final da década de 1930, inicialmente com Gilberto Freyre, posteriormente impulsionada pelo projeto UNESCO nos anos de 1950, com Florestan Fernandes, prosperou a crença sociológica de que a raça ou qualquer aspecto racial perderia relevância na sociedade brasileira por conta do processo de modernização, em função do desenvolvimento capitalista em curso.
Hoje, podemos afirmar que nenhuma das previsões efetivou-se. Pelo contrário, de acordo com os dados do Censo de 2010, a maioria da população brasileira declara-se negra (pretos e pardos) ou não-branca (pretos, pardos, indígenas). Dos 191 milhões de brasileiros, 47,7% declararam-se brancos. Entre os não-brancos, 7,6% informaram serem pretos e 43,1%, pardos, perfazendo 50,7% (IBGE, 2010). Entretanto, os indicadores sociais revelam elevadas desigualdades segundo grupos de raça/cor e renda.
O presente trabalho resulta do diálogo entre duas pesquisas de doutorado em andamento, que possuem como eixo teórico-prático as políticas públicas direcionadas para a população negra no Brasil. Ambos os estudos concebem as políticas públicas de promoção da igualdade racial como consequência da luta antirracista dos movimentos negros brasileiros e debruçam-se sobre a trajetória de organização desses movimentos para problematizar suas temáticas de investigação.
Neste artigo, analisamos os acontecimentos e iniciativas recentes que possibilitaram a transformação das demandas dos movimentos negros em políticas de promoção da igualdade racial, focalizando especialmente o campo da educação. Trata-se de uma pesquisa exploratória realizada a partir da produção acadêmica já disponível e de documentos públicos (legislação atinente ao tema, programas e projetos elaborados por agentes públicos e documentos produzidos pelos movimentos negros sobre a política).
O texto está organizado em duas sessões: na primeira parte, discutimos os acontecimentos e iniciativas que contextualizaram a adoção de políticas de promoção da igualdade racial pelo governo brasileiro. No segundo momento, abordamos a implementação dessas políticas no campo da educação, enfatizando o processo de institucionalização do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nos currículos escolares como construção de uma política de educação para as relações étnico-raciais no Brasil.

2. Políticas de Promoção da Igualdade Racial no Brasil

O Estado brasileiro nunca lidou de forma adequada com a problemática étnico-racial (Santos, 2000), quer seja no que se refere aos negros, quer aos indígenas. Historicamente, o Estado tem se mostrado refratário e hostil às demandas da população negra, rechaçando qualquer ação que pudesse desmistificar a ideologia da democracia racial brasileira (Jaccoud & Beghin, 2002). Entretanto, no final do século XX, impulsionado por mobilizações dos movimentos negros, o Brasil passou a vivenciar um novo momento no debate público acerca da questão racial no País.
Em 1995, ocorreu a Marcha “300 anos de Zumbi dos Palmares contra o racismo, pela cidadania e a vida”, em Brasília, que reuniu mais de 30 mil ativistas negros e antirracistas, além de militantes de partidos políticos e de sindicatos. Ao final da marcha, o presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, após receber uma comissão de ativistas negros, reconheceu solenemente a existência do racismo contra negros e indígenas e a necessidade de o Estado adotar políticas públicas para promover a igualdade racial. Naquele mesmo dia, o presidente assinou um decreto criando o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), cuja finalidade era estudar e propor soluções de enfrentamento do racismo e de valorização da população negra no Brasil.
O referido Grupo de Trabalho produziu um documento no qual apresenta propostas de inclusão dos negros na sociedade brasileira. Todavia, o governo não criou mecanismos para viabilizar a execução das ideias contidas no plano. Inclusive, alguns ministros eram contrários e boicotaram a implementação das recomendações do GTI (Telles, 2003). Um dos problemas enfrentados pelo GTI é que se pretendeu assumir a problemática das desigualdades raciais sem, no entanto, se desfazer da noção de democracia racial (Rios, 2012).
O segundo episódio de relevo nesse processo foi a realização da 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerância Correlata, organizada pela Organização das Nações Unidas (ONU), ocorrida na cidade de Durban, África do Sul, em 2001, que contou com expressiva participação brasileira (representantes do Estado e da sociedade). Essa conferência tornou-se um marco na luta contra o racismo e a discriminação racial no mundo, de um modo geral, e no Brasil, em particular, uma vez que incentivou a formulação de políticas de promoção da igualdade racial nas três esferas de governo, com destaque para ações afirmativas no ensino superior.
A Marcha e a 3ª Conferência Mundial contra o Racismo foram dois eventos fundamentais que, de um lado, deram um novo ânimo à luta do movimento negro brasileiro e, de outro, modificaram, em certa medida, a percepção da sociedade brasileira e de parte da burocracia federal acerca da problemática racial. Nas palavras de Telles (2003, p. 75), o "movimento negro fez da democracia racial um conceito não apropriado sem volta".
Após a Conferência de Durban, o debate público sobre relações raciais sofreu uma inflexão importante no mundo e no Brasil. Nas gestões do presidente FHC (1995-1998 e 1999-2002), formularam-se algumas propostas de Ações Afirmativas, tais como a criação de um fundo de reparação social para financiar políticas inclusivas e o Programa Nacional de Ações Afirmativas. Entretanto, apenas a adoção de cotas raciais na ocupação de cargos comissionados no Ministério do Desenvolvimento Agrário foi efetivamente executada. As demais proposições tiveram implementação pífia (Heringer, 2006; Telles, 2003). Destaque para o programa de ações afirmativas do Instituto Rio Branco, cujo objetivo é “ampliar as oportunidades de acesso aos quadros do Ministério das Relações Exteriores e incentivar e apoiar o ingresso de afrodescendentes na carreira de diplomata."1
A partir dos governos Lula (2003-2010), o tema ganha fôlego extraordinário. No primeiro ano desse governo, cria-se a Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial (SEPPIR), aprova-se a Lei nº 10.639/032, lança-se a Política Nacional de Promoção da Igualdade racial (CNPIR), institui-se o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR) e lança-se o Decreto nº 4.887, que trata da regularização das terras das comunidades quilombolas (Ribeiro, 2014).
O fato é que a “questão racial”, tema proibido, interdito no Brasil por mais de um século, transformou-se, na primeira década do século XXI, em um dos assuntos nacionais mais polêmicos. Matérias jornalísticas, artigos de opinião, teses e dissertações acadêmicas foram produzidas. No período de 2001 a 2004, foram empreendidas 69 ações de promoção da igualdade racial, sendo: 23 de iniciativas do governo federal; 21 de governos municipais e estaduais; 12 do setor privado e 11 de organizações da sociedade (Heringer, 2006).
Entretanto, o debate público recente acerca da intervenção do Estado na correção de desigualdades raciais centralizou-se no tema das cotas raciais para ingresso no ensino superior, denominadas ações afirmativas. Isso aumentou a temperatura do debate e mobilizou opiniões apaixonadas.
Embora exista relação entre políticas de promoção da igualdade racial e políticas de ações afirmativas, uma não pode ser reduzida à outra. Elas não se confundem e não podem ser empregadas como sinônimos. As primeiras são mais amplas e complexas, cujo objetivo primordial é o combate ao racismo, à discriminação, ao preconceito racial e às desigualdades sociorraciais nas mais diversas esferas da vida social (Santos & Silveira, 2010). Tais políticas são formadas por três tipos básicos de ações: repressivas, valorativas e afirmativas. Por sua vez, as segundas são medidas cujo objetivo é criar oportunidades de acesso dos grupos discriminados historicamente, no sentido de ampliar sua participação nos diferentes segmentos da vida social, política, econômica e cultural de uma dada sociedade. Não se restringe, portanto, à política de cotas no ingresso ao ensino superior. Conforme observa Feres Jr. (2006), tais políticas, como querem seus críticos, não podem ser entendidas como mera influência americana, mas como uma consequência da evolução e ampliação do Estado de Bem-Estar Social.
As chamadas políticas de promoção da igualdade racial são tentativas do aparelho estatal de corrigir históricas desigualdades sociorraciais existentes entre brancos e não-brancos (negros e indígenas). Políticas dessa natureza têm como objetivo final produzir transformações no modus operandi das organizações públicas e privadas no que se refere ao combate ao racismo e à discriminação racial contra negros e indígenas, promovendo a equidade racial.
A criação da SEPPIR, em 2003, incentivou a constituição de órgãos semelhantes nos Estados e em alguns munícipios na Federação. Atualmente, há no Brasil 197 órgãos públicos de promoção da igualdade racial nos três níveis de governo. Além da SEPPIR no plano federal, existem 27 estruturas estaduais e 169 municipais. Foram criados ainda conselhos estaduais e municipais de promoção da igualdade racial para acompanhar a implementação das políticas, sendo 19 estaduais e 86 municipais (SEPPIR, 2015). Esses órgãos possuem a responsabilidade de propor, acompanhar, apoiar e monitorar as políticas a serem implementadas em cada área específica, como é o caso da educação.
Nessa área, as políticas de promoção da igualdade racial para a população negra têm se concentrado, de forma mais expressiva, em três campos, buscando atender demandas tanto da educação básica quanto do ensino superior: o acesso à universidade, as especificidades da educação quilombola e o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira.
Na próxima sessão, abordaremos o processo de institucionalização do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira como referencial na luta por uma educação antirracista no Brasil. A compreensão do protagonismo do Movimento Negro nessa luta é fundamental para o entendimento do processo de construção e implementação da política curricular que resulta dessa trajetória.
3. História e Cultura Afro-Brasileira: limites e desafios da política de educação para as relações étnico-raciais no Brasil

As iniciativas educativas empreendidas pelo Movimento Negro no Brasil, ao longo da história do País, são indícios de que esse movimento social sempre considerou a educação escolar como um portal poderoso para ascensão social de seu povo. Além de promover os seus próprios processos de escolarização, reivindicou e continua a reivindicar a inclusão da população negra na escola pública em todos os níveis de ensino. Entretanto, o espaço escolar é marcadamente discriminatório para essa população, resultando num aproveitamento desigual e exigindo-lhes maior grau de empenho para que consigam atingir o sucesso escolar (Paixão, 2008).
Ao perceber que o tipo de política educacional adotado no Brasil desconsiderava a população negra, a atuação do Movimento Negro Brasileiro no século XX elegeu a educação como uma forte bandeira de luta. O VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste, realizado no Recife em julho de 1988 (ano do centenário da abolição da escravatura), teve como tema “O Negro e a Educação”. A preocupação central do encontro foi “questionar a negação da importância do negro na formação social brasileira, por meio dos órgãos oficiais de educação do País”.3 As proposições construídas apontam para a necessidade de introduzir o estudo da História da África nos currículos escolares; discutir o papel da professora e do professor na descolonização do ensino e considerar a aprendizagem pela prática cultural como elemento importante para o sucesso do processo de ensino/aprendizagem da população negra.
Nilma Gomes (1997), ao discutir a contribuição dos negros para o pensamento educacional brasileiro, conclui que o olhar do movimento negro para a educação trouxe, para além das reivindicações, problematizações teóricas e ênfases específicas, que dão materialidade a um pensar sobre a educação, construído a partir do ponto de vista do povo negro. A autora sistematiza essa contribuição do movimento negro por meio de cinco aspectos: 1) a denúncia de que a escola reproduz e repete o racismo presente na sociedade; 2) a ênfase na história de luta e resistência do povo negro; 3) a afirmação da existência de uma produção cultural realizada pelos negros, com uma história ancestral que nos remete à nossa origem africana; 4) a consideração de que existem diferentes identidades no espaço escolar; e 5) a denúncia de que a estrutura excludente da escola precisa ser reconstruída para garantir o acesso à educação, a permanência e o êxito dos alunos de diferentes pertencimentos étnico-raciais e níveis socioeconômicos.
A partir das reivindicações de acesso da população negra à instituição escolar e da inclusão da história e cultura afro-brasileira nos currículos escolares, os movimentos negros brasileiros problematizaram a existência de valores e práticas discriminatórias na escola, principalmente quando essa instituição nega a existência da diferença em seus domínios (Silva, 2013 p. 103).
O início do século XXI é marcado pela transformação, ainda que lenta, das antigas reivindicações das entidades negras em políticas públicas. No âmbito da educação, a promulgação da Lei nº 10.639, em 9 de janeiro de 2003, é uma conquista histórica do Movimento Negro Brasileiro. Altera a Lei nº 9.394/1996, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), ao introduzir o Art. 26º, determinando a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.4 A alteração da LDB foi bastante comemorada pelo Movimento Negro, uma vez que, além da inclusão nos currículos da história e cultura afro-brasileira e africana, pela primeira vez as relações raciais receberiam um tratamento explícito nos sistemas de ensino (Henriques & Cavalleiro, 2005).
Para Nilma Gomes (2009), um conjunto de acontecimentos contextualiza a promulgação da referida lei. Entre eles, ganham destaque: a realização da Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, que ocorreu em Brasília em 1995; A elaboração (pelo Ministério da Educação) dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), em 1996, que incluía a Pluralidade Cultural como um de seus temas transversais, ainda em uma perspectiva universalista de educação; e o processo de preparação e mobilização para a 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, organizada pelas Nações Unidas (ONU) e realizada em Durban, na África do Sul, em 2001.
Conforme aponta essa autora, da Conferência de Durban resultam dois movimentos importantes: a construção do consenso entre as entidades do Movimento Negro sobre a necessidade de se implantarem ações afirmativas no Brasil e os compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro de implementar políticas dessa natureza. Como signatário da Declaração e Programa de Ação de Durban, o Brasil assumiu a importância da educação no processo de desconstrução do racismo e no combate à xenofobia e formas correlatas de discriminação.
A alteração da LDB propõe transformar a inclusão da educação das relações étnico-raciais e da História e Cultura Afro-Brasileira nos currículos escolares em política pública de educação. De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, essa mudança exige que se repensem as bases das relações étnico-raciais, sociais e pedagógicas sobre as quais se assenta a política educacional no Brasil. Como lembra Gonçalves e Silva (2013 p. 2), “trata-se de uma política curricular de reconhecimento e de reparação de desigualdades”. Ela integra o conjunto de políticas de reconhecimento das desigualdades e discriminações raciais contra os negros no Brasil e objetiva enfrentar a injustiça nos sistemas educacionais do País. Por isso, para Gomes (2009) a alteração da referida lei vincula-se à garantia do direito à educação e requalifica esse direito ao acrescer-lhe o direito à diferença.
Entretanto, 12 anos após a institucionalização da política ainda são muitas as dificuldades elencadas pelos secretários de Educação, como anuncia Gomes (2012), para dar corpo à gestão da diversidade em seus sistemas de ensino. Tais dificuldades, embora sejam indicativas das disputas e negociações permanentes em torno da construção do texto e das vivências das práticas curriculares, também apontam para o desconhecimento dos documentos que regulamentam a lei – o Parecer nº 03/2004 e a Resolução nº 01/2004 –, ambos emitidos pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). Neles, encontramos orientações fundamentais para a implementação e consolidação da política curricular.
Ainda segundo Nilma Gomes (2009, p. 40):

Com avanços e limites, a Lei 10.639/03 e suas diretrizes curriculares possibilitaram uma inflexão na educação brasileira. Elas fazem parte de uma modalidade de política até então pouco adotada pelo Estado brasileiro e pelo próprio MEC. São políticas de ação afirmativa voltadas para a valorização da identidade, da memória e da cultura negras.

Como é possível notar, a política curricular propõe-se modificar a escola mexendo na estrutura da instituição, uma vez que exige mudança de atitude dos membros da comunidade escolar em seus mais diversos níveis de atuação. Ao considerarmos que o racismo antinegro constitui elemento estruturador das relações sociais e institucionais estabelecidas no Brasil, podemos concluir que a política curricular do ensino de história e cultura afro-brasileira propõe modificações para a estrutura da própria sociedade brasileira. Partindo desse princípio, não será difícil compreender o nascedouro das dificuldades vivenciadas e enfrentadas no exercício de sua implementação. Como assinala Gonçalves e Silva (2013, p. 2):

Uma sociedade cuja herança da colonização europeia é valorizada não como um dos componentes da cultura nacional, mas como aquele em que todos deveriam privilegiadamente se pautar, os descendentes de europeus estão convencidos de que os valores, conhecimentos, tradições que herdaram de seus avós migrantes são universais.

Nesse sentido, a política põe em evidência o questionamento ao modelo único de escola e, dentro dele, a seleção e hierarquização dos conhecimentos curriculares, bem como as “dificuldades frequentes de pessoas de diferentes pertencimentos étnico-raciais, notadamente brancos e negros, indígenas e não-indígenas conviverem em relações de igualdade e respeito” (Gonçalves e Silva, 2013, p. 2).
Considerando a grande quantidade de atividades, programas, projetos e ações desencadeadas pela legislação e pela política curricular para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, parece-nos que a disputa curricular está instalada na sociedade brasileira e no interior das escolas. Entretanto, a perspectiva epistêmica dessas ações educativas nem sempre apresentam distanciamentos significativos das práticas eurocêntricas que produziram a suposta inferioridade da população negra no Brasil.

4. Considerações Finais

Embora a sociedade brasileira seja caracterizada pela pluralidade étnico-racial, a ideia de subalternização do negro tem estruturado as relações sociais que aqui foram estabelecidas, de forma que a diferença foi transformada em desigualdade e opressão. O desejo de que o país se tornasse um país branco fez com que a população negra fosse negada e invisibilizada de diversas formas ao longo da história. A sociedade brasileira e suas instituições, inclusive a escola, constituíram-se em sintonia com esse projeto colonial que instituiu o racismo antinegro e as práticas racistas em suas instituições.
A elaboração de políticas de promoção da igualdade racial no Brasil resulta de anos de luta do movimento negro brasileiro, que somente no final do século passado conseguiu desmitificar a imagem de que o Brasil seria uma espécie de idílio racial expresso na noção de democracia racial. A "Marcha 300 anos de Zumbi dos Palmares", em 1995, e os desdobramentos da 3ª Conferência Mundial contra o Racismo são episódios marcantes nesse processo.
A partir dos anos 1990, embalado pelo avanço do neoliberalismo, o debate acerca das políticas públicas contrapunha políticas universais às políticas focais. Quando da formulação das primeiras proposições em torno de políticas de promoção da igualdade racial, uma das críticas era de que se tratava de políticas focalizadas, destinadas a grupos específicos, com forte inspiração neoliberal. É importante ressaltar que, para se alcançar uma efetiva equidade racial na sociedade brasileira, faz-se necessário repensar o paradigma das políticas públicas centrado na dicotomia políticas universais versus focalizadas. No caso brasileiro, a combinação dessas políticas e a tentativa de desenvolvê-las de forma simultânea tem se mostrado um desafio promissor.
No que se refere à educação, ao contextualizar as questões sobre políticas curriculares da diversidade e políticas da igualdade, no conjunto das políticas de formação docente do governo federal, Gatti, Barreto, & André (2011) põem em evidência a tensão existente entre esses dois campos e a predisposição do Ministério da Educação (MEC) em romper com o dualismo e ofertá-las de forma articulada, em que pese ao fracasso dessa articulação identificado na análise dessas autoras.
Considerando que a população negra constitui a maioria da população brasileira, a formulação de políticas focais para esse grupo específico incide diretamente na oferta de políticas universais. Desse modo, o argumento de que políticas de equidade racial feririam o princípio de um universalismo abstrato, assentado em uma noção igualmente abstrata de cidadão, não se sustenta frente aos dados empíricos. Por outro lado, a literatura pertinente ao tema revela que as práticas racistas na escola constituem obstáculos à aprendizagem de estudantes negros/as, quando não os afastam desse espaço.
Na realidade brasileira, as políticas específicas não se destinam apenas às populações específicas que tencionam beneficiar diretamente. No campo da educação, as proposições visam, em última instância, educar as pessoas, enfatizando crianças e jovens, para o convívio com a diferença e o respeito à história e cultura dos diversos povos que formaram o Brasil. Sejam elas direcionadas para as relações de raça, de etnia, de gênero, de sexualidade, de geração, de inclusão ou qualquer outra subjetividade humana, destinam-se ao benefício de toda a população brasileira. O que se busca é se repensar as bases das relações étnico-raciais, sociais e pedagógicas sobre as quais se assenta a política educacional no Brasil.
Referências
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1 A denominação formal é “Programa de Ação Afirmativa do Instituto Rio Branco – Bolsa-Prêmio de Vocação para a Diplomacia”, instituído em 2002 e vigente desde então.
2 Institui o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
3 Dados disponíveis In: NEGRO E EDUCAÇÃO. Relatório do VIII Encontro dos Negros do Norte e Nordeste do Brasil. Recife: Movimento Negro Unificado, 1988.
4 Em 2008, a promulgação da Lei nº 11.645 altera o mesmo Art. 26A, estendendo a obrigatoriedade para o ensino de histórias e culturas dos povos indígenas.

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