Claudilene Silva -
Brasil
Doutoranda em Educação
Universidade Federal de
Pernambuco – Recife
Bolsista FACEPE
Carlos Augusto
Sant’Anna Guimarães - Brasil
Doutorando em Ciência
Política
Universidade Estadual de
Campinas/Unicamp – Campinas
Pesquisador da Fundação
Joaquin Nabuco
Resumo
O presente artigo analisa
os acontecimentos e iniciativas que possibilitaram a transformação
das demandas dos movimentos negros em políticas de promoção da
igualdade racial, focalizando especialmente o campo da educação. O
trabalho configura-se como uma pesquisa exploratória, realizada a
partir da produção acadêmica já disponível e de documentos
públicos (legislação atinente ao tema, programas e projetos
elaborados por agentes públicos, documentos produzidos pelo
movimento negro sobre a política). Para melhor compreender a
trajetória da luta antirracista dos movimentos negros brasileiros,
dialogamos com a perspectiva epistêmica dos estudos pós-coloniais
latino-americanos. Analisamos o processo de construção (em
andamento) de uma política de educação para as relações
étnico-raciais no Brasil. Nesse contexto, buscamos evidenciar que
políticas focais para a população negra incidem diretamente na
oferta de políticas universais, uma vez que essa população
constitui a maioria da população brasileira.
Palavras-chaves:
políticas públicas, relações étnico-raciais, educação,
população negra.
1. Introdução
Em meados do século XIX,
a ideia de branqueamento tornou-se política de Estado no Brasil e
perdurou até os anos de 1930 (Seyferth, 2002). No início do século
XX, os eugenistas brasileiros acreditavam que a raça negra
desapareceria do país por meio da miscigenação com o elemento
branco, numa espécie de mestiçagem redentora (Schwarcz, 2011).
No final da década de
1930, inicialmente com Gilberto Freyre, posteriormente impulsionada
pelo projeto UNESCO nos anos de 1950, com Florestan Fernandes,
prosperou a crença sociológica de que a raça ou qualquer aspecto
racial perderia relevância na sociedade brasileira por conta do
processo de modernização, em função do desenvolvimento
capitalista em curso.
Hoje, podemos afirmar que
nenhuma das previsões efetivou-se. Pelo contrário, de acordo com os
dados do Censo de 2010, a maioria da população brasileira
declara-se negra (pretos e pardos) ou não-branca (pretos, pardos,
indígenas). Dos 191 milhões de brasileiros, 47,7% declararam-se
brancos. Entre os não-brancos, 7,6% informaram serem pretos e 43,1%,
pardos, perfazendo 50,7% (IBGE, 2010). Entretanto, os indicadores
sociais revelam elevadas desigualdades segundo grupos de raça/cor e
renda.
O presente trabalho
resulta do diálogo entre duas pesquisas de doutorado em andamento,
que possuem como eixo teórico-prático as políticas públicas
direcionadas para a população negra no Brasil. Ambos os estudos
concebem as políticas públicas de promoção da igualdade racial
como consequência da luta antirracista dos movimentos negros
brasileiros e debruçam-se sobre a trajetória de organização
desses movimentos para problematizar suas temáticas de investigação.
Neste artigo, analisamos
os acontecimentos e iniciativas recentes que possibilitaram a
transformação das demandas dos movimentos negros em políticas de
promoção da igualdade racial, focalizando especialmente o campo da
educação. Trata-se de uma pesquisa exploratória realizada a partir
da produção acadêmica já disponível e de documentos públicos
(legislação atinente ao tema, programas e projetos elaborados por
agentes públicos e documentos produzidos pelos movimentos negros
sobre a política).
O texto está organizado
em duas sessões: na primeira parte, discutimos os acontecimentos e
iniciativas que contextualizaram a adoção de políticas de promoção
da igualdade racial pelo governo brasileiro. No segundo momento,
abordamos a implementação dessas políticas no campo da educação,
enfatizando o processo de institucionalização do ensino de História
e Cultura Afro-Brasileira nos currículos escolares como construção
de uma política de educação para as relações étnico-raciais no
Brasil.
2. Políticas de
Promoção da Igualdade Racial no Brasil
O Estado brasileiro nunca
lidou de forma adequada com a problemática étnico-racial (Santos,
2000), quer seja no que se refere aos negros, quer aos indígenas.
Historicamente, o Estado tem se mostrado refratário e hostil às
demandas da população negra, rechaçando qualquer ação que
pudesse desmistificar a ideologia da democracia racial brasileira
(Jaccoud & Beghin, 2002). Entretanto, no final do século XX,
impulsionado por mobilizações dos movimentos negros, o Brasil
passou a vivenciar um novo momento no debate público acerca da
questão racial no País.
Em 1995, ocorreu a Marcha
“300 anos de Zumbi dos Palmares contra o racismo, pela cidadania e
a vida”, em Brasília, que reuniu mais de 30 mil ativistas negros e
antirracistas, além de militantes de partidos políticos e de
sindicatos. Ao final da marcha, o presidente da República, Fernando
Henrique Cardoso, após receber uma comissão de ativistas negros,
reconheceu solenemente a existência do racismo contra negros e
indígenas e a necessidade de o Estado adotar políticas públicas
para promover a igualdade racial. Naquele mesmo dia, o presidente
assinou um decreto criando o Grupo de Trabalho Interministerial
(GTI), cuja finalidade era estudar e propor soluções de
enfrentamento do racismo e de valorização da população negra no
Brasil.
O referido Grupo de
Trabalho produziu um documento no qual apresenta propostas de
inclusão dos negros na sociedade brasileira. Todavia, o governo não
criou mecanismos para viabilizar a execução das ideias contidas no
plano. Inclusive, alguns ministros eram contrários e boicotaram a
implementação das recomendações do GTI (Telles, 2003). Um dos
problemas enfrentados pelo GTI é que se pretendeu assumir a
problemática das desigualdades raciais sem, no entanto, se desfazer
da noção de democracia racial (Rios, 2012).
O segundo episódio de
relevo nesse processo foi a realização da 3ª Conferência Mundial
contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e
Intolerância Correlata, organizada pela Organização das Nações
Unidas (ONU), ocorrida na cidade de Durban, África do Sul, em 2001,
que contou com expressiva participação brasileira (representantes
do Estado e da sociedade). Essa conferência tornou-se um marco na
luta contra o racismo e a discriminação racial no mundo, de um modo
geral, e no Brasil, em particular, uma vez que incentivou a
formulação de políticas de promoção da igualdade racial nas três
esferas de governo, com destaque para ações afirmativas no ensino
superior.
A Marcha e a 3ª
Conferência Mundial contra o Racismo foram dois eventos fundamentais
que, de um lado, deram um novo ânimo à luta do movimento negro
brasileiro e, de outro, modificaram, em certa medida, a percepção
da sociedade brasileira e de parte da burocracia federal acerca da
problemática racial. Nas palavras de Telles (2003, p. 75), o
"movimento negro fez da democracia racial um conceito não
apropriado sem volta".
Após a Conferência de
Durban, o debate público sobre relações raciais sofreu uma
inflexão importante no mundo e no Brasil. Nas gestões do presidente
FHC (1995-1998 e 1999-2002), formularam-se algumas propostas de Ações
Afirmativas, tais como a criação de um fundo de reparação social
para financiar políticas inclusivas e o Programa Nacional de Ações
Afirmativas. Entretanto, apenas a adoção de cotas raciais na
ocupação de cargos comissionados no Ministério do Desenvolvimento
Agrário foi efetivamente executada. As demais proposições tiveram
implementação pífia (Heringer, 2006; Telles, 2003). Destaque para
o programa de ações afirmativas do Instituto Rio Branco, cujo
objetivo é “ampliar as oportunidades de acesso aos quadros do
Ministério das Relações Exteriores e incentivar e apoiar o
ingresso de afrodescendentes na carreira de diplomata."1
A partir dos governos
Lula (2003-2010), o tema ganha fôlego extraordinário. No primeiro
ano desse governo, cria-se a Secretaria Especial de Promoção de
Políticas de Igualdade Racial (SEPPIR), aprova-se a Lei nº
10.639/032,
lança-se a Política Nacional de Promoção da Igualdade racial
(CNPIR), institui-se o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade
Racial (CNPIR) e lança-se o Decreto nº 4.887, que trata da
regularização das terras das comunidades quilombolas (Ribeiro,
2014).
O fato é que a “questão
racial”, tema proibido, interdito no Brasil por mais de um século,
transformou-se, na primeira década do século XXI, em um dos
assuntos nacionais mais polêmicos. Matérias jornalísticas, artigos
de opinião, teses e dissertações acadêmicas foram produzidas. No
período de 2001 a 2004, foram empreendidas 69 ações de promoção
da igualdade racial, sendo: 23 de iniciativas do governo federal; 21
de governos municipais e estaduais; 12 do setor privado e 11 de
organizações da sociedade (Heringer, 2006).
Entretanto, o debate
público recente acerca da intervenção do Estado na correção de
desigualdades raciais centralizou-se no tema das cotas raciais para
ingresso no ensino superior, denominadas ações afirmativas. Isso
aumentou a temperatura do debate e mobilizou opiniões apaixonadas.
Embora exista relação
entre políticas de promoção da igualdade racial e políticas de
ações afirmativas, uma não pode ser reduzida à outra. Elas não
se confundem e não podem ser empregadas como sinônimos. As
primeiras são mais amplas e complexas, cujo objetivo primordial é o
combate ao racismo, à discriminação, ao preconceito racial e às
desigualdades sociorraciais nas mais diversas esferas da vida social
(Santos & Silveira, 2010). Tais políticas são formadas por três
tipos básicos de ações: repressivas, valorativas e afirmativas.
Por sua vez, as segundas são medidas cujo objetivo é criar
oportunidades de acesso dos grupos discriminados historicamente, no
sentido de ampliar sua participação nos diferentes segmentos da
vida social, política, econômica e cultural de uma dada sociedade.
Não se restringe, portanto, à política de cotas no ingresso ao
ensino superior. Conforme observa Feres Jr. (2006), tais políticas,
como querem seus críticos, não podem ser entendidas como mera
influência americana, mas como uma consequência da evolução e
ampliação do Estado de Bem-Estar Social.
As chamadas políticas de
promoção da igualdade racial são tentativas do aparelho estatal de
corrigir históricas desigualdades sociorraciais existentes entre
brancos e não-brancos (negros e indígenas). Políticas dessa
natureza têm como objetivo final produzir transformações no modus
operandi das organizações públicas e privadas no que se refere
ao combate ao racismo e à discriminação racial contra negros e
indígenas, promovendo a equidade racial.
A criação da SEPPIR, em
2003, incentivou a constituição de órgãos semelhantes nos Estados
e em alguns munícipios na Federação. Atualmente, há no Brasil 197
órgãos públicos de promoção da igualdade racial nos três níveis
de governo. Além da SEPPIR no plano federal, existem 27 estruturas
estaduais e 169 municipais. Foram criados ainda conselhos estaduais e
municipais de promoção da igualdade racial para acompanhar a
implementação das políticas, sendo 19 estaduais e 86 municipais
(SEPPIR, 2015). Esses órgãos possuem a responsabilidade de propor,
acompanhar, apoiar e monitorar as políticas a serem implementadas em
cada área específica, como é o caso da educação.
Nessa área, as políticas
de promoção da igualdade racial para a população negra têm se
concentrado, de forma mais expressiva, em três campos, buscando
atender demandas tanto da educação básica quanto do ensino
superior: o acesso à universidade, as especificidades da educação
quilombola e o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira.
Na próxima sessão,
abordaremos o processo de institucionalização do ensino da História
e Cultura Afro-Brasileira como referencial na luta por uma educação
antirracista no Brasil. A compreensão do protagonismo do Movimento
Negro nessa luta é fundamental para o entendimento do processo de
construção e implementação da política curricular que resulta
dessa trajetória.
3. História e Cultura
Afro-Brasileira: limites e desafios da política de educação para
as relações étnico-raciais no Brasil
As iniciativas educativas
empreendidas pelo Movimento Negro no Brasil, ao longo da história do
País, são indícios de que esse movimento social sempre considerou
a educação escolar como um portal poderoso para ascensão social de
seu povo. Além de promover os seus próprios processos de
escolarização, reivindicou e continua a reivindicar a inclusão da
população negra na escola pública em todos os níveis de ensino.
Entretanto, o espaço escolar é marcadamente discriminatório para
essa população, resultando num aproveitamento desigual e
exigindo-lhes maior grau de empenho para que consigam atingir o
sucesso escolar (Paixão, 2008).
Ao perceber que o tipo de
política educacional adotado no Brasil desconsiderava a população
negra, a atuação do Movimento Negro Brasileiro no século XX elegeu
a educação como uma forte bandeira de luta. O VIII Encontro de
Negros do Norte e Nordeste, realizado no Recife em julho de 1988 (ano
do centenário da abolição da escravatura), teve como tema “O
Negro e a Educação”. A preocupação central do encontro foi
“questionar a negação da importância do negro na formação
social brasileira, por meio dos órgãos oficiais de educação do
País”.3
As proposições construídas apontam para a necessidade de
introduzir o estudo da História da África nos currículos
escolares; discutir o papel da professora e do professor na
descolonização do ensino e considerar a aprendizagem pela prática
cultural como elemento importante para o sucesso do processo de
ensino/aprendizagem da população negra.
Nilma Gomes (1997), ao
discutir a contribuição dos negros para o pensamento educacional
brasileiro, conclui que o olhar do movimento negro para a educação
trouxe, para além das reivindicações, problematizações teóricas
e ênfases específicas, que dão materialidade a um pensar sobre a
educação, construído a partir do ponto de vista do povo negro. A
autora sistematiza essa contribuição do movimento negro por meio de
cinco aspectos: 1) a denúncia de que a escola reproduz e repete o
racismo presente na sociedade; 2) a ênfase na história de luta e
resistência do povo negro; 3) a afirmação da existência de uma
produção cultural realizada pelos negros, com uma história
ancestral que nos remete à nossa origem africana; 4) a consideração
de que existem diferentes identidades no espaço escolar; e 5) a
denúncia de que a estrutura excludente da escola precisa ser
reconstruída para garantir o acesso à educação, a permanência e
o êxito dos alunos de diferentes pertencimentos étnico-raciais e
níveis socioeconômicos.
A partir das
reivindicações de acesso da população negra à instituição
escolar e da inclusão da história e cultura afro-brasileira nos
currículos escolares, os movimentos negros brasileiros
problematizaram a existência de valores e práticas discriminatórias
na escola, principalmente quando essa instituição nega a existência
da diferença em seus domínios (Silva, 2013 p. 103).
O início do século XXI
é marcado pela transformação, ainda que lenta, das antigas
reivindicações das entidades negras em políticas públicas. No
âmbito da educação, a promulgação da Lei nº 10.639, em 9 de
janeiro de 2003, é uma conquista histórica do Movimento Negro
Brasileiro. Altera a Lei nº 9.394/1996, de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB), ao introduzir o Art. 26º, determinando a
obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana.4
A alteração da LDB foi bastante comemorada pelo Movimento Negro,
uma vez que, além da inclusão nos currículos da história e
cultura afro-brasileira e africana, pela primeira vez as relações
raciais receberiam um tratamento explícito nos sistemas de ensino
(Henriques & Cavalleiro, 2005).
Para Nilma Gomes (2009),
um conjunto de acontecimentos contextualiza a promulgação da
referida lei. Entre eles, ganham destaque: a realização da Marcha
Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, que
ocorreu em Brasília em 1995; A elaboração (pelo Ministério da
Educação) dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), em 1996,
que incluía a Pluralidade Cultural como um de seus temas
transversais, ainda em uma perspectiva universalista de educação; e
o processo de preparação e mobilização para a 3ª Conferência
Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e
Formas Correlatas de Intolerância, organizada pelas Nações Unidas
(ONU) e realizada em Durban, na África do Sul, em 2001.
Conforme aponta essa
autora, da Conferência de Durban resultam dois movimentos
importantes: a construção do consenso entre as entidades do
Movimento Negro sobre a necessidade de se implantarem ações
afirmativas no Brasil e os compromissos internacionais assumidos pelo
Estado brasileiro de implementar políticas dessa natureza. Como
signatário da Declaração e Programa de Ação de Durban, o Brasil
assumiu a importância da educação no processo de desconstrução
do racismo e no combate à xenofobia e formas correlatas de
discriminação.
A alteração da LDB
propõe transformar a inclusão da educação das relações
étnico-raciais e da História e Cultura Afro-Brasileira nos
currículos escolares em política pública de educação. De acordo
com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana, essa mudança exige que se repensem as
bases das relações étnico-raciais, sociais e pedagógicas sobre as
quais se assenta a política educacional no Brasil. Como lembra
Gonçalves e Silva (2013 p. 2), “trata-se de uma política
curricular de reconhecimento e de reparação de desigualdades”.
Ela integra o conjunto de políticas de reconhecimento das
desigualdades e discriminações raciais contra os negros no Brasil e
objetiva enfrentar a injustiça nos sistemas educacionais do País.
Por isso, para Gomes (2009) a alteração da referida lei vincula-se
à garantia do direito à educação e requalifica esse direito ao
acrescer-lhe o direito à diferença.
Entretanto, 12 anos após
a institucionalização da política ainda são muitas as
dificuldades elencadas pelos secretários de Educação, como anuncia
Gomes (2012), para dar corpo à gestão da diversidade em seus
sistemas de ensino. Tais dificuldades, embora sejam indicativas das
disputas e negociações permanentes em torno da construção do
texto e das vivências das práticas curriculares, também apontam
para o desconhecimento dos documentos que regulamentam a lei – o
Parecer nº 03/2004 e a Resolução nº 01/2004 –, ambos emitidos
pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). Neles, encontramos
orientações fundamentais para a implementação e consolidação da
política curricular.
Ainda segundo Nilma Gomes
(2009, p. 40):
Com avanços e limites, a
Lei 10.639/03 e suas diretrizes curriculares possibilitaram uma
inflexão na educação brasileira. Elas fazem parte de uma
modalidade de política até então pouco adotada pelo Estado
brasileiro e pelo próprio MEC. São políticas de ação afirmativa
voltadas para a valorização da identidade, da memória e da cultura
negras.
Como é possível notar,
a política curricular propõe-se modificar a escola mexendo na
estrutura da instituição, uma vez que exige mudança de atitude dos
membros da comunidade escolar em seus mais diversos níveis de
atuação. Ao considerarmos que o racismo antinegro constitui
elemento estruturador das relações sociais e institucionais
estabelecidas no Brasil, podemos concluir que a política curricular
do ensino de história e cultura afro-brasileira propõe modificações
para a estrutura da própria sociedade brasileira. Partindo desse
princípio, não será difícil compreender o nascedouro das
dificuldades vivenciadas e enfrentadas no exercício de sua
implementação. Como assinala Gonçalves e Silva (2013, p. 2):
Uma sociedade cuja
herança da colonização europeia é valorizada não como um dos
componentes da cultura nacional, mas como aquele em que todos
deveriam privilegiadamente se pautar, os descendentes de europeus
estão convencidos de que os valores, conhecimentos, tradições que
herdaram de seus avós migrantes são universais.
Nesse sentido, a política
põe em evidência o questionamento ao modelo único de escola e,
dentro dele, a seleção e hierarquização dos conhecimentos
curriculares, bem como as “dificuldades frequentes de pessoas de
diferentes pertencimentos étnico-raciais, notadamente brancos e
negros, indígenas e não-indígenas conviverem em relações de
igualdade e respeito” (Gonçalves e Silva, 2013, p. 2).
Considerando a grande
quantidade de atividades, programas, projetos e ações desencadeadas
pela legislação e pela política curricular para o ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira, parece-nos que a disputa
curricular está instalada na sociedade brasileira e no interior das
escolas. Entretanto, a perspectiva epistêmica dessas ações
educativas nem sempre apresentam distanciamentos significativos das
práticas eurocêntricas que produziram a suposta inferioridade da
população negra no Brasil.
4. Considerações
Finais
Embora a sociedade
brasileira seja caracterizada pela pluralidade étnico-racial, a
ideia de subalternização do negro tem estruturado as relações
sociais que aqui foram estabelecidas, de forma que a diferença foi
transformada em desigualdade e opressão. O desejo de que o país se
tornasse um país branco fez com que a população negra fosse negada
e invisibilizada de diversas formas ao longo da história. A
sociedade brasileira e suas instituições, inclusive a escola,
constituíram-se em sintonia com esse projeto colonial que instituiu
o racismo antinegro e as práticas racistas em suas instituições.
A elaboração de
políticas de promoção da igualdade racial no Brasil resulta de
anos de luta do movimento negro brasileiro, que somente no final do
século passado conseguiu desmitificar a imagem de que o Brasil
seria uma espécie de idílio racial expresso na noção de
democracia racial. A "Marcha 300 anos de Zumbi dos Palmares",
em 1995, e os desdobramentos da 3ª Conferência Mundial contra o
Racismo são episódios marcantes nesse processo.
A partir dos anos 1990,
embalado pelo avanço do neoliberalismo, o debate acerca das
políticas públicas contrapunha políticas universais às políticas
focais. Quando da formulação das primeiras proposições em torno
de políticas de promoção da igualdade racial, uma das críticas
era de que se tratava de políticas focalizadas, destinadas a grupos
específicos, com forte inspiração neoliberal. É importante
ressaltar que, para se alcançar uma efetiva equidade racial na
sociedade brasileira, faz-se necessário repensar o paradigma das
políticas públicas centrado na dicotomia políticas universais
versus focalizadas. No caso brasileiro, a combinação dessas
políticas e a tentativa de desenvolvê-las de forma simultânea tem
se mostrado um desafio promissor.
No que se refere à
educação, ao contextualizar as questões sobre políticas
curriculares da diversidade e políticas da igualdade, no conjunto
das políticas de formação docente do governo federal, Gatti,
Barreto, & André (2011) põem em evidência
a tensão existente entre esses dois campos e a predisposição do
Ministério da Educação (MEC) em romper com o dualismo e ofertá-las
de forma articulada, em que pese ao fracasso dessa articulação
identificado na análise dessas autoras.
Considerando que a
população negra constitui a maioria da população brasileira, a
formulação de políticas focais para esse grupo específico incide
diretamente na oferta de políticas universais. Desse modo, o
argumento de que políticas de equidade racial feririam o princípio
de um universalismo abstrato, assentado em uma noção igualmente
abstrata de cidadão, não se sustenta frente aos dados empíricos.
Por outro lado, a literatura pertinente ao tema revela que as
práticas racistas na escola constituem obstáculos à aprendizagem
de estudantes negros/as, quando não os afastam desse espaço.
Na realidade brasileira,
as políticas específicas não se destinam apenas às populações
específicas que tencionam beneficiar diretamente. No campo da
educação, as proposições visam, em última instância, educar as
pessoas, enfatizando crianças e jovens, para o convívio com a
diferença e o respeito à história e cultura dos diversos povos que
formaram o Brasil. Sejam elas direcionadas para as relações de
raça, de etnia, de gênero, de sexualidade, de geração, de
inclusão ou qualquer outra subjetividade humana, destinam-se ao
benefício de toda a população brasileira. O que se busca é se
repensar as bases das relações étnico-raciais, sociais e
pedagógicas sobre as quais se assenta a política educacional no
Brasil.
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Janeiro: Relume Dumará: Fundação Ford.
1
A denominação formal é “Programa de Ação Afirmativa do
Instituto Rio Branco – Bolsa-Prêmio de Vocação para a
Diplomacia”, instituído em 2002 e vigente desde então.
2
Institui o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
3
Dados
disponíveis In: NEGRO E EDUCAÇÃO. Relatório
do VIII Encontro dos Negros do Norte e Nordeste do Brasil.
Recife:
Movimento Negro Unificado, 1988.
4
Em 2008, a promulgação da Lei nº 11.645
altera o mesmo Art. 26A, estendendo a obrigatoriedade para o ensino
de histórias e culturas dos povos indígenas.
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