quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Resenha do livro Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil: Identidade Nacional versus Identidade Negra


 


Neste livro o antropólogo Kabengele Munanga analisa, através de pensamentos de autores de diversos campos do conhecimento, os efeitos da mestiçagem e suas consequências para a construção da identidade brasileira e a sua relação com a formação da identidade negra. Ele demonstra como inúmeros autores europeus considerados clássicos e inatacáveis em nossos currículos advogam as mais ensandecidas teorias racistas. Além disso, discute o conceito e a história da mestiçagem no Brasil e nos Estados Unidos e analisa as ideologias defendidas por intelectuais que marcaram a discussão sobre as relações raciais em ambos os países.
Inicialmente, Munanga se propõe a identificar o conceito e a história da mestiçagem. Ao tratar sobre a mestiçagem na história do pensamento, o autor reflete como os filósofos do iluminismo veem e definem o mestiço. Para Voltaire, Julien Offray de la Mittrie, Maupertius, Buffon, Kant e Edward Long, o mestiço era considerado uma anomalia, um ser incapaz e degenerado.

Segundo os doutrinários do racismo, o desenvolvimento das culturas depende da pureza da raça. Nos escritos de autores que partilham do pensamento da Ku-klux-kan, a tese defendida é a de que a futura população americana resultante do cruzamento com os elementos estrangeiros perderá o caráter harmonioso e estável que possuía até então. Alguns desses autores afirmaram que tal desarmonia daria origem a todos os tipos de males sociais e de imoralidade, tais como os abusos do álcool e tabaco, a falta de religião, a pressa descontrolada, a pornografia, a irritabilidade excessiva, etc.
Ao abordar a questão da mestiçagem do final do século XIX, os pensadores brasileiros tomaram o pensamento dos cientistas ocidentais como referência, isto é, europeus e americanos de sua época e da época anterior. O fim do sistema escravista, conforme assinala o autor deste livro, em 1888, coloca aos pensadores brasileiros uma questão até então crucial: a construção de uma nação e de uma identidade nacional. Toda a preocupação da elite ancorada nas teorias racistas da época, diz respeito à influência negativa que poderia resultar da herança “inferior” do negro nesse processo de formação da identidade étnica brasileira.
Com relação aos intelectuais brasileiros, Munanga destaca o pensamento de nove autores: Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Manuel Bonfim, Nina Rodrigues, João Batista Lacerda, Edar Roquete Pinto, Oliveira Viana e Gilberto Freyre. Todos estavam interessados na formulação de uma teoria do tipo étnico brasileiro, ou seja, na questão da definição do brasileiro enquanto povo e do Brasil como nação. O que estava em jogo, neste debate intelectual nacional, era fundamentalmente a questão de saber como transformar essa pluralidade de raças e mesclas, de culturas e valores civilizatórios tão diferentes, de identidades tão diversas, numa única coletividade de cidadãos, numa só nação e num só povo.
Na década de 70 surgem vozes discordantes, oriundas principalmente do mundo afro-brasileiro, propondo a construção de uma democracia verdadeiramente plurirracial e pluriétnica. O então militante e intelectual negro Abdias do Nascimento se fez porta-voz desse mundo afro-brasileiro.
Abdias diz que o Brasil escravocrata herdou de Portugal a sua estrutura patriarcal de família cujo preço foi pago pela mulher negra. Ele considera que o desequilíbrio demográfico entre os sexos durante a escravidão, na proporção de uma mulher para cinco homens, conjugado com a relação assimétrica entre escravos e senhores, levou os últimos a um monopólio sexual de senhor branco. Neste contexto, as escravizadas negras, vítimas fáceis, vulneráveis a qualquer agressão sexual do senhor branco, foram em sua maioria transformadas em prostitutas como meios de renda e impedidas de estabelecer qualquer estrutura familiar estável. Abdias considera absurdo apresentar o mulato que, na sua origem, é o fruto desse covarde cruzamento de sangue, como prova de abertura e saúde das relações raciais no Brasil.
Munanga conclui após a análise da produção discursiva da elite intelectual brasileira do fim do século XIX ao meado do XX, que se desenvolveu um modelo racista universalista. O levantamento de Clóvis Moura, após o censo de 1980, ilustra com eloquência a adesão popular ao mito da democracia racial brasileira e ao ideal do branqueamento sustentados pela mestiçagem. Munanga indaga: O que significa o total de 136 cores levantadas nessa pesquisa? Emprestando os argumentos do próprio autor citado, esse total de cores demonstra como o brasileiro foge de sua realidade étnica, de sua identidade, procurando, mediante simbolismo de fuga, situar-se o mais próximo possível do modelo tido como superior, isto é, o branco.
Todo esse estudo apresentado por Munanga serve de reflexão para as relações raciais neste século XXI. O que se percebe ao longo do livro é que os intelectuais das ideias racistas almejavam um Brasil homogêneo, uma identidade nacional que fosse representada por apenas uma etnia, a branca. A diversidade racial e cultural brasileira está longe de ser representada homogeneamente. A discussão colocada por Munanga refere-se ao conflito entre a identidade nacional e a identidade negra.
Com relação à manifestação dos movimentos sociais negros, considero que desde 1970 essas organizações vêm ganhando força e voz na sociedade brasileira. Um grande resultado das reinvindicações feitas pelo movimento negro foi a implementação da lei 10.639/03, que obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira nos currículos escolares de todos os níveis de ensino. Outro importante passo foi a política de cotas nas universidades públicas e nos concursos públicos de nível superior. Vejo as ações afirmativas como uma importante ferramenta para a afirmação da identidade negra dos indivíduos, pois para o ingresso no sistema de cotas é necessário que o indivíduo se identifique enquanto negro.
Contudo, não é só no campo da educação que a temática das relações raciais deve se tornar visível. Também nas mais diversas áreas da sociedade esse debate deve ser colocado. No jornalismo, por exemplo essa questão da negritude não passa do campo da invisibilidade. Prova disso é o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que, em 2000, constatou que o jornalismo é uma das profissões que tem menor proporção de negros no país – apenas 15,7%. Em 2013, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) realizou o estudo Características Demográficas e Políticas dos Jornalistas, verificando que o jornalismo continua sendo uma das profissões com pouca presença de afro-brasileiros, desta vez com apenas 5% de negros e 18% de pardos. Muniz Sodré (2004, p.173) explica que:
Quem trabalhou muito tempo na imprensa brasileira sabe que aos negros, quando um ou outro conseguia ser admitido, reservava-se sempre o lugar da “cozinha”, velha gíria jornalística para tarefas que não requeriam visibilidade pública - como diagramação, revisão, copidescagem etc.
Essa ausência de jornalistas negros bem como a presença de jornalistas sem formação antirracista contribui para uma produção pautada nas temáticas de cunho eurocêntrico. Por exemplo: um jornalista que cria uma pauta com visões estereotipadas sobre a pessoa negra, reproduz o racismo ao invés de confrontá-lo, além de, nesse sentido, influenciar na construção da subjetividade do receptor.
Considero a obra de Munanga um excelente levantamento sobre a construção da ideologia da mestiçagem no Brasil, e avalio que ainda temos muito o que debater para que a temática afro-brasileira saia do campo da invisibilidade. 
(Thais Vital)


Referências:
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: Identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
SODRÉ, Muniz. Mídia e Racismo: um pé fora da cozinha. In: CARRANÇA, Flávio; BORGES, Roseane da Silva. (Org). Espelho Infiel: O negro no jornalismo brasileiro. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004.

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