Neste livro o antropólogo Kabengele
Munanga analisa, através de pensamentos de autores de diversos
campos do conhecimento, os efeitos da mestiçagem e suas
consequências para a construção da identidade brasileira e a sua
relação com a formação da identidade negra. Ele demonstra como
inúmeros autores europeus considerados clássicos e inatacáveis em
nossos currículos advogam as mais ensandecidas teorias racistas.
Além disso, discute o conceito e a história da mestiçagem no
Brasil e nos Estados Unidos e analisa as ideologias defendidas por
intelectuais que marcaram a discussão sobre as relações raciais em
ambos os países.
Inicialmente, Munanga se propõe a
identificar o conceito e a história da mestiçagem. Ao tratar sobre
a mestiçagem na história do pensamento, o autor reflete como os
filósofos do iluminismo veem e definem o mestiço. Para Voltaire,
Julien Offray de la Mittrie, Maupertius, Buffon, Kant e Edward Long,
o mestiço era considerado uma anomalia, um ser incapaz e degenerado.
Segundo os doutrinários do racismo, o
desenvolvimento das culturas depende da pureza da raça. Nos escritos
de autores que partilham do pensamento da Ku-klux-kan, a tese
defendida é a de que a futura população americana resultante do
cruzamento com os elementos estrangeiros perderá o caráter
harmonioso e estável que possuía até então. Alguns desses autores
afirmaram que tal desarmonia daria origem a todos os tipos de males
sociais e de imoralidade, tais como os abusos do álcool e tabaco, a
falta de religião, a pressa descontrolada, a pornografia, a
irritabilidade excessiva, etc.
Ao abordar a questão da mestiçagem
do final do século XIX, os pensadores brasileiros tomaram o
pensamento dos cientistas ocidentais como referência, isto é,
europeus e americanos de sua época e da época anterior. O fim do
sistema escravista, conforme assinala o autor deste livro, em 1888,
coloca aos pensadores brasileiros uma questão até então crucial: a
construção de uma nação e de uma identidade nacional. Toda a
preocupação da elite ancorada nas teorias racistas da época, diz
respeito à influência negativa que poderia resultar da herança
“inferior” do negro nesse processo de formação da identidade
étnica brasileira.
Com relação aos intelectuais
brasileiros, Munanga destaca o pensamento de nove autores: Sílvio
Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Manuel Bonfim, Nina
Rodrigues, João Batista Lacerda, Edar Roquete Pinto, Oliveira Viana
e Gilberto Freyre. Todos estavam interessados na formulação de uma
teoria do tipo étnico brasileiro, ou seja, na questão da definição
do brasileiro enquanto povo e do Brasil como nação. O que estava em
jogo, neste debate intelectual nacional, era fundamentalmente a
questão de saber como transformar essa pluralidade de raças e
mesclas, de culturas e valores civilizatórios tão diferentes, de
identidades tão diversas, numa única coletividade de cidadãos,
numa só nação e num só povo.
Na década de 70 surgem vozes
discordantes, oriundas principalmente do mundo afro-brasileiro,
propondo a construção de uma democracia verdadeiramente
plurirracial e pluriétnica. O então militante e intelectual negro
Abdias do Nascimento se fez porta-voz desse mundo afro-brasileiro.
Abdias diz que o Brasil escravocrata
herdou de Portugal a sua estrutura patriarcal de família cujo preço
foi pago pela mulher negra. Ele considera que o desequilíbrio
demográfico entre os sexos durante a escravidão, na proporção de
uma mulher para cinco homens, conjugado com a relação assimétrica
entre escravos e senhores, levou os últimos a um monopólio sexual
de senhor branco. Neste contexto, as escravizadas negras, vítimas
fáceis, vulneráveis a qualquer agressão sexual do senhor branco,
foram em sua maioria transformadas em prostitutas como meios de renda
e impedidas de estabelecer qualquer estrutura familiar estável.
Abdias considera absurdo apresentar o mulato que, na sua origem, é o
fruto desse covarde cruzamento de sangue, como prova de abertura e
saúde das relações raciais no Brasil.
Munanga conclui após a análise da
produção discursiva da elite intelectual brasileira do fim do
século XIX ao meado do XX, que se desenvolveu um modelo racista
universalista. O levantamento de Clóvis Moura, após o censo de
1980, ilustra com eloquência a adesão popular ao mito da democracia
racial brasileira e ao ideal do branqueamento sustentados pela
mestiçagem. Munanga indaga: O que significa o total de 136 cores
levantadas nessa pesquisa? Emprestando os argumentos do próprio
autor citado, esse total de cores demonstra como o brasileiro foge de
sua realidade étnica, de sua identidade, procurando, mediante
simbolismo de fuga, situar-se o mais próximo possível do modelo
tido como superior, isto é, o branco.
Todo esse estudo apresentado por
Munanga serve de reflexão para as relações raciais neste século
XXI. O que se percebe ao longo do livro é que os intelectuais das
ideias racistas almejavam um Brasil homogêneo, uma identidade
nacional que fosse representada por apenas uma etnia, a branca. A
diversidade racial e cultural brasileira está longe de ser
representada homogeneamente. A discussão colocada por Munanga
refere-se ao conflito entre a identidade nacional e a identidade
negra.
Com relação à manifestação dos
movimentos sociais negros, considero que desde 1970 essas
organizações vêm ganhando força e voz na sociedade brasileira. Um
grande resultado das reinvindicações feitas pelo movimento negro
foi a implementação da lei 10.639/03, que obriga o ensino da
história e cultura afro-brasileira nos currículos escolares de
todos os níveis de ensino. Outro importante passo foi a política de
cotas nas universidades públicas e nos concursos públicos de nível
superior. Vejo as ações afirmativas como uma importante ferramenta
para a afirmação da identidade negra dos indivíduos, pois para o
ingresso no sistema de cotas é necessário que o indivíduo se
identifique enquanto negro.
Contudo, não é só no campo da
educação que a temática das relações raciais deve se tornar
visível. Também nas mais diversas áreas da sociedade esse debate
deve ser colocado. No jornalismo, por exemplo essa questão da
negritude não passa do campo da invisibilidade. Prova disso é o
censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
que, em 2000, constatou que o jornalismo é uma das profissões que
tem menor proporção de negros no país – apenas 15,7%. Em 2013, a
Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) realizou o estudo
Características Demográficas e Políticas dos Jornalistas,
verificando que o jornalismo continua sendo uma das profissões com
pouca presença de afro-brasileiros, desta vez com apenas 5% de
negros e 18% de pardos. Muniz Sodré (2004, p.173) explica que:
Quem trabalhou muito tempo na imprensa
brasileira sabe que aos negros, quando um ou outro conseguia ser
admitido, reservava-se sempre o lugar da “cozinha”, velha gíria
jornalística para tarefas que não requeriam visibilidade pública -
como diagramação, revisão, copidescagem etc.
Essa ausência de jornalistas negros
bem como a presença de jornalistas sem formação antirracista
contribui para uma produção pautada nas temáticas de cunho
eurocêntrico. Por exemplo: um jornalista que cria uma pauta com
visões estereotipadas sobre a pessoa negra, reproduz o racismo ao
invés de confrontá-lo, além de, nesse sentido, influenciar na
construção da subjetividade do receptor.
Considero a obra de Munanga um
excelente levantamento sobre a construção da ideologia da
mestiçagem no Brasil, e avalio que ainda temos muito o que debater
para que a temática afro-brasileira saia do campo da
invisibilidade.
(Thais Vital)
Referências:
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a
mestiçagem no Brasil: Identidade nacional versus identidade
negra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
SODRÉ, Muniz. Mídia e Racismo: um pé
fora da cozinha. In: CARRANÇA, Flávio; BORGES, Roseane da Silva.
(Org). Espelho Infiel: O negro no jornalismo brasileiro. São
Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004.
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