quarta-feira, 28 de setembro de 2016

A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO TERMO CABOCLO - SOBRE ESTRUTURAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS NO MEIO RURAL AMAZÔNICO



Deborah de Magalhães Lima

O termo caboclo é amplamente utilizado na Amazônia brasileira como uma categoria de classificação social. É também usado na literatura acadêmica para fazer referência direta aos pequenos produtores rurais de ocupação histórica. No discurso coloquial, a definição da categoria social caboclo é complexa, ambígua e está associada a um estereótipo negativo. Na antropologia, a definição de caboclos como camponeses amazônicos é objetiva e distingue os habitantes tradicionais dos imigrantes recém-chegados de outras regiões do país. Ambas as acepções de caboclo, a coloquial e a acadêmica, constituem categorias de classificação social empregadas por pessoas que não se incluem na sua definição.
Este artigo discute como a construção histórica do termo e o uso da palavra caboclo refletem a história da formação da sociedade amazônica, com sua estrutura de classes e a representação social das categorias e grupos que a compõem. Este sentido do termo é abordado para questionar as implicações do uso acadêmico da palavra caboclo.

OS USOS DA PALAVRA CABOCLO


Na fala coloquial, o caboclo é uma categoria de classificação social complexa que inclui dimensões geográficas, raciais e de classe. Considerando a dimensão geográfica, o caboclo é reconhecido como um dos “tipos” regionais do Brasil (cf. IBGE, 1975). Entre esses tipos gerais estão os gaúchos do sul, as baianas da Bahia e os sertanejos do nordeste, para citar alguns. A distinção de cada tipo regional está relacionada com a geografia, a história da colonização e as origens étnicas da população. Nesse sentido, os caboclos são reconhecidos pelos brasileiros em geral como o tipo humano característico da população rural da Amazônia.
Enquanto outros tipos regionais constituem representações estereotipadas mais restritas (aparecendo em descrições gerais e no folclore, para exibir as identidades regionais), o caboclo é também uma categoria de “mistura racial” e refere-se ao filho do branco e do índio. A combinação de um “tipo racial” específico e uma região geográfica está relacionada à história da Amazônia. Em contraste com outras regiões do Brasil, a colonização da Amazônia incluiu políticas para integrar (ou seja, escravizar, estimular casamentos mistos e “civilizar”) a população indígena à sociedade colonial.
A influência do português também foi maior na Amazônia. Devido a condições climáticas, bem como a oportunidades econômicas, imigrantes de outros países europeus preferiram se estabelecer no sul do Brasil. Em comparação com o nordeste e o sudeste, o número de escravos negros na Amazônia também foi pequeno, e a economia colonial, voltada para a extração 3de produtos florestais, dependia principalmente de trabalho indígena.
Além do caboclo, existem no Brasil outras categorias populares de raça mista, tais como o mulato (o filho do branco e do negro) e o cafuzo (filho do índio e do negro). Mas, enquanto tais categorias raciais não se associam a uma região brasileira específica, os caboclos, sim. E, em contraste com outros tipos regionais, o nome caboclo também é usado como categoria de classificação social. Embora a associação entre os conceitos coloquiais de raça e de classe não seja sempre real ou precisa, ela é usada na construção de uma representação da classe superior amazônica como branca, enquanto se faz referência à classe baixa rural como cabocla.
Na região amazônica, o termo caboclo é também empregado como categoria relacional. Nessa utilização, o termo identifica uma categoria de pessoas que se encontra numa posição social inferior em relação àquela com que o locutor ou a locutora se identifica. Os parâmetros utilizados nessa classificação coloquial incluem as qualidades rurais, descendência indígena e “não civilizada” (ou seja, analfabeta e rústica), que contrastam com as qualidades urbana, branca e civilizada. Como categoria relacional, não há um grupo fixo identificado como caboclos. O termo pode ser aplicado a qualquer grupo social ou pessoa considerada mais rural, indígena ou rústica em relação ao locutor ou à locutora. Nesse sentido, a utilização do termo é também um meio de o locutor ou a locutora afirmar sua identidade? Não cabocla ou branca.
No entanto, nem a natureza conceitual nem a relacional do termo são explicita. Como resultado, o uso coloquial do termo leva à suposição de que existe uma população concreta que pode ser imediatamente identificada como cabocla e carrega a identidade de caboclos. Além disso, nas últimas décadas, a literatura antropológica tem feito uso do termo, mas sem considerar a diferença entre o seu significado e o uso coloquial. Daí a necessidade de distinguir cada uso do termo e se questionar sobre a possibilidade de se instaurar um significado neutro para um termo consagrado pelo uso popular.
Em contraste com o uso coloquial, o conceito de caboclos empregado na antropologia aponta uma categoria social fixa, ao invés de relacional: o campesinato histórico da Amazônia. A definição de camponeses, assim como a de caboclos, também é problemática e requer especificação. As politicas coloniais, implementadas durante o século XVIII, explicitamente objetivaram a constituição de um campesinato amazônico que viria a produzir bens para o mercado europeu. Nos seus trezentos anos de existência, o campesinato amazônico mostrou períodos de intensa participação no mercado, alternados com períodos de baixa participação, quando predominaram as atividades de subsistência.
O uso objetivo do termo caboclo pretende especificar uma categoria social à qual falta um termo próprio de autodenominação e aponta para o processo histórico de sua constituição. Embora o termo transmita um significado preciso aos leitores em potencial desses trabalhos acadêmicos, ele deixa uma pergunta a ser respondida: se é um termo de identificação do observador, qual é a identidade própria das pessoas às quais o termo se refere? Os chamados caboclos, isto é, os pequenos produtores rurais amazônicos, não têm uma identidade coletiva, nem um termo alternativo e abrangente de autodenominação. A única categoria de autodenominação comumente empregada por toda a população rural é a de “pobre”. Noções mais fortes de identidade baseiam-se no parentesco, na religião, na ecologia do assentamento e na ocupação econômica do grupo e do indivíduo, como será discutido abaixo. Esses parâmetros não constituem uma base de unificação, mas de diferenciação no interior da própria população rural. As famílias constituem a base da formação de pequenos grupos e estão diretamente relacionadas à organização das comunidades rurais. E, dentro de cada comunidade, grupos familiares diferentes freqüentemente disputam a liderança local. Portanto, como os camponeses em geral, a categoria social caboclo é caracterizada pela ausência de uma identidade coletiva forte. A população rural tem, ao contrário, identidades locais, do ponto de vista de uma observação externa que nela percebe traços comuns.
Tal evidência permite perceber melhor a natureza do conceito de caboclo. O caboclo é uma categoria de classificação social empregada por estranhos, com base no reconhecimento de que a população rural amazônica compartilha um conjunto de atributos comuns. Mas esta não é uma categoria social homogênea nem absolutamente distintiva. É importante frisar a natureza conceitual do termo pois existe o perigo de tomar se o termo caboclo como uma identidade e desse modo criar fronteiras absolutas para um grupo social que não é encontrado na vida real. Ao contrário, o termo caboclo deve ser entendido como uma categoria geral de referência e identificação.
A natureza do termo caboclo é portanto conceitual e consiste em uma categoria social de pensamento analítico. Sendo uma categoria social, o termo é uma abstração, uma unidade de um sistema de classificação social projetado para retratar as diferenças entre as pessoas na sociedade. Em contraste com um grupo social, uma categoria social consiste em uma agregação artificial de pessoas baseada na identificação de atributos comuns compartilhados por indivíduos que não se engajam necessariamente em um relacionamento social em razão dessa similaridade. Os atributos que definem uma categoria social podem ser biológicos, sociais ou culturais. Um grupo social, por outro lado, consiste em uma agregação humana real, que é definida por interações estreitas e relacionamentos pessoais (ver Keesing, 1975: 9-10).
Assim, habitantes da comunidade Nogueira, uma pequena localidade da região do médio Solimões, no Amazonas, formam um grupo social. Eles interagem regularmente e estão ligados por relações de parentesco. Os habitantes de Vila Alencar, localizada a apenas 4 horas de distância de Nogueira, formam um grupo social semelhante. Mas, enquanto os moradores da cidade de Tefé podem fazer referência a ambas as localidades como sendo “comunidades caboclas” (porque ambas apresentam os atributos que definem a categoria social caboclo), os moradores desses dois lugares não fazem parte de um mesmo grupo social, uma vez que não têm e provavelmente não terão no futuro próximo, qualquer tipo de relacionamento periódico.
Os atributos que definem a categoria social caboclos são econômicos, políticos e culturais. Nesse sentido, o termo refere-se aos pequenos produtores familiares da Amazônia que vivem da exploração dos recursos da floresta. Os principais atributos culturais que distinguem os caboclos dos pequenos produtores de imigração recente são o conhecimento da floresta, os hábitos alimentares e os padrões de moradia. Devido a seus atributos econômicos similares, no entanto, os dois, caboclos e imigrantes, podem ser alocados na categoria social mais ampla de camponeses.

O ESTEREÓTIPO DO CABOCLO: PARÂMETROS DE CLASSIFICAÇÃO SOCIAL

Existem pelo menos duas etimologias diferentes para a palavra caboclo. Costa Pereira (1975:12) cita Teodoro da Silva, que afirma que caboclo deriva do tupi caa-boc, que quer dizer “o que vem da floresta”. Parker (1985a: xix) sugere outra etimologia, encontrada no Dicionário de Aurélio B. Ferreira (Ferreira, 1971). Ferreira sugere que o nome vem da palavra tupi kari’boka, que significa “filho do homem branco”. Ambas as etimologias são especulativas, mas na minha opinião a primeira tem mais probabilidade de estar correta. Isso porque, na Amazônia, caboclo foi inicialmente usado como sinônimo de tapuio, termo genérico de desprezo que os povos indígenas usavam quando se referiam a indivíduos de outros grupos. Em tupi, de acordo com Veríssimo (1970 [1878]:14), a palavra tapuio significa o hostil, o inimigo, o escravo. Após a colonização, o termo foi usado para designar o ameríndio assentado e trazia as mesmas conotações de desprezo que tinha quando usado entre os índios.
Como tapuio, caboclo é também um termo de desprezo em relação ao outro, e um tal significado de alteridade é encontrado na primeira etimologia. Isso é expressão pela alusão a uma espécie de expatriação: um outro cuja origem é selvagem (“o que vem da floresta”). A referência a casamento misto, por outro lado, parece-me menos provável porque só subseqüentemente caboclo adquiriu o significado de um cruzamento entre branco e ameríndio, e isso foi por extensão. Veríssimo e outros autores criticaram essa evolução semântica, mantendo que o uso popular da palavra tapuio ou caboclo para designar a mistura de ameríndio e branco foi “errônea” (Veríssimo, 1970 [1878]: 13; Costa Pereira, 1975: 12).
A utilização recente do termo caboclo é caracterizada por uma referência similar ao outro e à exclusão. Em apenas algumas instâncias caboclo é usado como termo de auto-atribuição (ver abaixo). Na maior parte das vezes, o termo é rejeitado por aqueles que designam. Considerando-se a ampla região geográfica em que caboclo é usado como termo coloquial, pode-se observar que ele é aplicado a uma seqüência de grupos sociais menos abrangentes de uma maneira segmentada. Tanto Ribeiro (1970: 375) quanto Wagley (1976: 105) descrevem essa segmentação, e, na minha experiência no médio Solimões, também constatei a pertinência dessa interpretação.
Para a população urbana das cidades maiores da Amazônia, Belém e Manaus, a população do interior - incluindo a população urbana das cidades menores como Tefé - pode ser considerada cabocla. Assim, nessas cidades maiores, numa conversa, poder-se-ia discutir sobre “o caboclo de Tefé”. Entre a população urbana de Tefé, como nas cidades amazônicas menores, são principalmente os membros da classe superior que se referem freqüentemente aos habitantes rurais como caboclos. A classe superior urbana pode às vezes se referir também à camada pobre das cidades como caboclos. A população rural rejeita o rótulo caboclo e considera que ele não se refere a ela, mas aos índios .

“O termo tapuio foi também aplicado ao ameríndio tribal, quando se o distinguia do ameríndio assentado pelo acréscimo do adjetivo brabo (selvagem), em oposição a manso (domesticado) ou “civilizado”. A etimologia de tapuio também é controversa. Inglês de Souza (1973 [1876]: 144) diz que deriva das palavras tupi tapa e puir, o que quer dizer “o que foge de casa”. Essa etimologia é semelhante à primeira etimologia de caboclo mencionada acima.”

“Na pesquisa de Wagley, os habitantes da zona rural diferenciavam-se por ocupação. Os fazendeiros rurais designavam os seringueiros com o termo caboclo. Os seringueiros, por outro lado, usavam o termo caboclo para se referirem ao ameríndio (Wagley 1976: 105-5).”


Em Roraima, o termo caboclo (deformado para caboco) refere-se àqueles considerados índios civilizados. De acordo com Rivière (1972: 28-31), o termo também é rejeitado por aqueles a quem se refere e dirigir-se a uma pessoa chamando-a de caboclo “é altamente depreciativo e o termo carrega um sentido pejorativo definido” (Rivière; 1972: 29).
Wagley (1976: 105) conclui: “O ‘caboclo’ amazônico... só existe no conceito dos grupos de status mais elevado referindo-se aos de status inferiot”. Ribeiro (1970: 375) concorda com isso, afirmando que o caboclo é sempre o outro. O termo é transferido para a categoria social seguinte que se situa numa posição inferior à do orador, até que alcance o índio. Como o termo caboclo transmite o significado de que o outro é inferior ao locutor ou à locutora, sua utilização também constitui um meio de atribuir a identidade de branco a si próprio.
No entanto, Wagley (1985: viii) não está completamente certo em sua afirmação de que caboclo nunca é usado como termo de auto-designação (“Ninguém, nem mesmo o índio inocente, usa o termo para se identificar”). Há grupos indígenas que usam, eles próprios, o termo caboclo como autodenominação. Por exemplo, no médio rio Tocantins, os gavião falam de si mesmos como caboclos. O contexto para essa utilização é a oposição e o conflito em relação aos brancos, a quem os gavião se referem usando um termo específico: kupen (Laraia e Da Matta, 1967: 122-3). Cardoso de Oliveira (1972a) e Fígoli (1985) dão outros exemplos do uso de caboclo como termo de auto denominação. Até os anos oitenta, os ticuna do alto Solimões e as tribos do alto rio Negro em contato com os brancos, definiam-se como caboclos em oposição tanto aos índios isolados (“selvagens”), quanto aos brancos. Também no Acre e em outras regiões onde predominou a extração da borracha, como no sudoeste do Amazonas, o termo caboclo é ainda usado por grupos indígenas, e nessas áreas os brancos são chamados cariú. No médio Solimões, os descendentes dos grupos indígenas remanescentes (cambeba, ticuna, maioruna, uitoto, miranha e cocama) ocasionalmente usam o termo caboclo como um rótulo de auto- identificação, embora o façam apenas quando relembram o passado.
No contexto de eventos contemporâneos, esses grupos identificam-se como índios, uma vez que esta é uma categoria que adquiriu valorização política (ver Faulhaber, 1987a e 1987b).

Van Den Berghe (1979) apresenta uma análise da classificação coloquial de grupos étnicos na Colômbia como índios, mestiços ou cholos. Essa classificação, com três categorias étnicas, apresenta uma complexidade análoga à do termo caboclo.

Deve se acrescentar que o uso da palavra caboclo como termo de autodesignação por alguns grupos indígenas está sempre ligado ao contexto de sua oposição e conflito interétnico com os brancos. Entre si, eles empregam palavras nativas para “gente” ou os nomes indígenas pelos quais são conhecidos - como os gavião, ticuna, miranha, etc. É somente no contexto local de contato interétnico entre populações indígenas e brancas que o termo caboclo é reconhecido como um rótulo de identificação e/ou um termo de autodenominação para os grupos indígenas. Em outros contextos, o termo caboclo está associado à população amazônica rural não índia.
Caboclo e índio são termos equivalentes no sentido de que ambos são essencialmente rótulos de identificação que podem ou não ser usados para a auto-identificação. Embora uma identidade índia correntemente tenha significação política, até recentemente o termo (que se origina, como se sabe, de um erro histórico) foi apenas uma categoria genérica de identificação utilizada pelos brancos e não tinha relação com as identidades dos povos indígenas aos quais se referia . A analogia entre os conceitos de índio e caboclo é útil, pois a validade do termo índio há muito se estabeleceu e assim ajuda a compreender como um rótulo de identificação, semelhante ao de caboclo, ganhou significado concreto e foi aceito por quem o recebeu.
Atualmente, no médio Solimões, a população rural é ainda chamada de caboclos. Escutam-se ocasionalmente outros nomes genéricos, tais como trabalhadores rurais, ribeirinhos ou agricultores, mas estes não carregam a mesma conotação regional que caboclo. “O caboclo” é mencionado sempre que “o homem amazônico típico” está em discussão. Embora o termo seja às vezes aplicado aos pobres das cidades, a imagem desse “amazônida típico” é essencialmente rural e ribeirinha. Um calendário de 1988 de uma grande companhia multinacional foi preparado com material fotográfico sobre “tipos brasileiros” e ilustrou o caboclo com uma fotografia de um homem forte remando uma canoa, mostrando uma floresta tropical ao fundo. Essa imagem do caboclo é recorrente. O termo evoca a figura de um homem associado com o meio ambiente amazônico.
O simbolismo masculino do caboclo não é só conseqüência do artigo masculino (“O caboclo”). Enquanto outras categorias sociais, tais como camponês, poderiam evocar a imagem de uma família e atividades de subsistência, a conotação masculina do caboclo está relacionada com o papel econômico dos homens na execução das atividades de subsistência mais próximas da natureza: a caça e a pesca. Conforme se discute abaixo, o meio ambiente amazônico e o comportamento econômico do caboclo são componentes centrais do seu estereótipo. Embora a mulher cabocla desempenhe um papel econômico chave, ela só aparece em associações secundárias ao protótipo. Em relação ao papel do homem, o dela é menos exótico e mais próximo da cultura, isto é, a agricultura e as atividades domésticas. Ela é apresentada, entretanto, em outro contexto: como “a caboclinha”, simbolizando uma sensualidade mansas.
O arquétipo do caboclo também é composto de traços culturais que distinguem seu modo de vida de uma existência branca e urbana. As características de uma arquitetura distinta, os meios de transporte que usa seus instrumentos de trabalho, seu conhecimento e modo de manejar os recursos da floresta, seus hábitos alimentares, sua religiosidade, mitologia, sistema de parentesco e diversos maneirismos sociais expressam a existência de uma cultura cabocla que é básica para o conceito desse típico amazônida.

Ver discussão sobre o estereótipo índio em Cardoso de Oliveira (1972b). Ver também em Laraia e Da Mana (1967: 122) o estereótipo regional dos gavião.
De fato, a existência de uma população rural que tem um estilo de vida distinto, em estreito relacionamento com a floresta, justifica que ela seja agrupada como uma categoria social especifica. Além disso, as políticas coloniais iniciais induziram à criação de uma classe amazônica subalterna, com a qual a categoria social caboclo está intimamente associada. No entanto, o conceito regional do caboclo é mais que uma referência a essa população rural ou ao seu estilo de vida. Inclui um estereótipo que sugere que esse habitante da Amazônia é preguiçoso, indolente, passivo, criativo e desconfiado. E os mesmos traços culturais que distinguem os caboclos (a casa de paxiúba, a agricultura de rodízio, os métodos indígenas de pesca e caça, entre outros) são tomados como evidência de inferioridade, pois são vistos como “primitivos”. Além disso, as qualificações negativas também se relacionam ao fato de que caboclos são considerados pobres.
Como no caso do termo caboclo, pobreza também é um conceito cultural. O caboclo não é só pobre em relação a padrões de vida urbanos ou internacionais, mas também em relação a uma expectativa elevada para a performance econômica e social deste neobrasileiro na Amazônia.
Podem-se interpretar os estereótipos de gênero através da história da colonização. Os colonizadores portugueses foram principalmente homens, que tomaram as índias como esposas ou concubinas.

“A história da conquista masculina da Amazônia está simbolizada em ambos os estereótipos: o estereótipo masculino do exótico caboclo caçador e pescador, que enfrenta a natureza selvagem, e o estereótipo feminino, que representa a domesticação masculina da sexualidade indígena.”

Essa expectativa deriva da intenção colonial de se estabelecer um campesinato empresarial na Amazônia. Também se relaciona ao mito de que o meio ambiente amazônico é um reino de riquezas, que o campesinato ideal iria explorar materialmente. No entanto, a população rural era e ainda é confrontada com ambos: um meio ambiente duro, que só é abundante na aparência, e condições econômicas e políticas desfavoráveis instituídas desde o início do período colonial.
A idéia de que os caboclos devem levar a culpa por sua situação social baseia-se no estereótipo étnico do ameríndio9. Como os caboclos são os herdeiros de uma bagagem cultural indígena, acredita-se em que eles sigam a mesma indisposição que se atribui ao índio para desempenhar trabalhos árduos. Nessa extensão do preconceito, considera-se que os caboclos possuem a característica estereotipada da ociosidade indígena (em oposição ao ideal de produtividade). Comprova-se essa indolência fazendo referência à modéstia de sua moradia e às suas poucas conquistas econômicas. Suas condições de vida, por outro lado, não são levadas em conta. A exuberância da floresta e a magnitude do meio ambiente amazônico impõem um contraste em relação à pobreza e, junto com a questão da raça, essa comparação é responsável pelo fato de os caboclos serem julgados preguiçosos e, em muitos juízos, como fracassos.

O CABOCLO NA LITERATURA AMAZÔNICA

Na literatura amazônica, o tema do contraste entre o povo amazônico e seu meio ambiente é recorrente. Como Richard Preto-Rodas aponta em sua revisão da ficção amazônica, o tópico do “homem” em relação ao meio ambiente atravessa as principais fases estilísticas dessa literatura (Preto-Rodas, 1974). O material literário é uma fonte de dados especialmente relevante para a análise do estereótipo do caboclo, não só devido a seu potencial informativo, mas também porque, nesse caso, o espectro de interpretações apresentadas é dado por pessoas urbanas letradas que representam a essência do ponto de vista não caboclo. A questão da pobreza do caboclo é constantemente associada com a idéia coloquial de raça, isto é, como resultado de características inatas, herdadas do ameríndio. Como o tema da miséria social, a questão da composição racial da população pobre é tratada em termos extremamente ambivalentes.

“A utilização de material literário também é importante devido à escassez de pesquisa etnográfica sobre os caboclos. Criticando essa ausência, Salles e Isdeboki (1969: 258) dizem: “[até o final dos anos 60], a ficção literária foi a única fonte de conhecimento... sobre os caboclos”. Na discussãode Motta Maués (1989) da “identidade amazônica”, a literatura amazônica também é usada parailustrar construções regionais e representações negativas do caboclo e do meio ambiente amazônico.”


Como Preto-Rodas afirma, a literatura amazônica é caracterizada por uma tendência a retratar “o que é peculiar e exótico para o leitor brasileiro urbano médio” (Preto-Rodas, 1974: 182). Na caracterização da região, os elementos exóticos retratados são a exuberância da floresta e o folclore amazônico. Por outro lado, inclui-se a miséria social como tema de especulação. Comparadas às narrativas do século XIX e aos relatos dos viajantes estrangeiros do início do século XX, que preferiam descrever o ameríndio como o representante humano da Amazônia, as obras dos autores brasileiros só ocasionalmente se referem à população aborígene (Preto-Rodas, 1974: 195). Na literatura amazônica, o caboclo é o principal tipo humano descrito. Essa concentração provavelmente se relaciona ao fato de que o caboclo representa a desilusão de uma Amazônia civilizada. Enquanto o índio não é julgado pobre, o tema da pobreza está diretamente associado com o caboclo.
Embora o “fracasso humano” que o caboclo simboliza seja constantemente associado com o meio ambiente amazônico, essa associação não deixa de ser ambivalente. Na literatura amazônica, tanto o caboclo quanto o meio ambiente são representados de maneiras contraditórias. Além de ser retratada como paraíso tropical, a Amazônia também é representada como inferno verde (ver Preto-Rodas, 1974).
Um exemplo de tal desacordo encontra-se em Terra Imatura, de Alfredo Ladislau, originalmente publicado em 1923. O primeiro ensaio do livro apresenta algumas das opiniões contrastantes sobre a população e o meio ambiente amazônico na forma de um diálogo entre dois tipos regionais. Os dois interlocutores têm visões opostas sobre o potencial de desenvolvimento da região. Ambos, porém, concordam com o fato de que falta aos caboclos energia e vontade para levar a cabo essa tarefa por eles próprios.
Um dos interlocutores mantém que não só o meio ambiente, mas também as pessoas são inadequadas. A terra é julgada imatura, não preparada ainda para sustentar uma população civilizada e as pessoas são consideradas de uma cepa racial precária. A “raça mista frágil” é considerada “incapaz de empreender a dura tarefa de domesticar uma natureza resolutamente selvagem” (Ladislau, 1971 [1923]: 17). A única solução entrevista para desenvolver a Amazônia é através da introdução de uma “raça mais forte”.

“O ameríndio foi muitas vezes julgado preguiçoso ou “inapto para a civilização”, mas sua distinção étnica lhe conferia uma justificativa, como se assim fosse, para apresentar um comportamento econômico diferente do comportamento do branco. A diferença étnica, por sua vez, foi, e em muitos locais da Amazônia ainda é, vista em termos evolutivos, quando a tal “indolência” do ameríndio é considerada resultado do “primitivismo de sua raça”.”

O segundo tipo discorda disso. Acredita que a Amazônia é uma terra rica, capaz de sustentar um programa econômico bem-sucedido se os políticos parassem de negligenciar a região. Esse interlocutor diz: “[A Amazônia é] ainda terra estrangeira na consciência nacional” (Ladislau, 1971 [1923]: 18). Ao contrário do primeiro tipo, o segundo interlocutor mantém que a tarefa de desenvolver a Amazônia não deve ser entregue a migrantes de uma nação alienígena, mas aos brasileiros. No entanto, a idéia expressa mina o potencial do amazônico nativo de alcançar esse desenvolvimento sozinho. O caboclo não é considerado suficientemente forte nem determinado. A solução vislumbrada é organizar um “influxo de sangue forte”, e ele sugere que deveria vir da migração de colonos do nordeste do Brasil.
A associação ambivalente entre pessoas e seu ambiente continua em outras obras literárias amazônicas. Para simplificar a exposição, pode-se dizer que o espectro de opiniões invariavelmente adota, em diferentes combinações, as seguintes oposições binárias: população cabocla capaz/incapaz, com meio ambiente amazônico rico/adverso. A revisão de Preto-Rodas (1974) dá uma síntese simples da controvérsia na literatura. Aqui, eu gostaria de abordar um tema relacionado: a distinção entre caboclos e nordestinos na Amazônia.

CABOCLOS E MIGRANTES NORDESTINOS: CONTRASTES E COMPARAÇÕES

Até a primeira metade deste século, ocorreu uma migração em grande escala de colonos do nordeste do Brasil, principalmente em associação com a economia da borracha. O número exato de migrantes não é conhecido. Até 1910, as estimativas vão de 300.000 a 500.000 (ver Santos, 1980: 99). Seja como for, o número de nordestinos foi grande o suficiente para prover uma clara distinção entre o caboclo e as populações nordestinas durante a primeira metade deste século, e uma série de obras literárias daquela época se concentraram nessa distinção.
A separação entre caboclos e nordestinos é histórica e é importante considerá-la nesse sentido. Examinando-se o contexto literário em que a comparação entre as duas populações é feita, podemos observar como o estereótipo do caboclo se torna o tema do debate. Além disso, dando à análise dessa distinção uma dimensão temporal, é possível notar a evolução do significado do termo caboclo.
Um exemplo que pode ser tomado para analisar a distinção entre caboclos e nordestinos é encontrado nas obras de Alfredo Ladislau (1971 [1923]) e Vianna Moog (1975 [1936]). Esses dois autores mostram a mesma preocupação em classificar tipos de população amazônica em termos de suas origens, enfatizando assim a separação entre caboclos e nordestinos. Entretanto, esses dois autores diferem nas opiniões que têm de cada população. Mais especificamente em Moog encontramos uma tentativa de definir quem é o “genuíno” caboclo. Comparando sua definição com outras, anteriores e subseqüentes, observa-se a dimensão histórica do conceito de caboclo.
No ensaio Os Mongo-Malaios e os Sertanejos (1971 [1923]), Ladislau expressa insatisfação com a aplicação geral do estereótipo caboclo à população rural amazônica. Mas não tenta negar o preconceito geral de caboclos; sua crítica tem apenas a intenção de criar uma cláusula: a de que o estereótipo se aplica apenas a um subgrupo da população rural amazônica, pois não consegue distinguir entre o caboclo que descende da população amazônica aborígine e omigrante nordestino (Ladislau, 1971 [1923]: 73).
Para Ladislau, os dois constituem categorias sociais diferentes, classificadas por ele como os mongo-malaios (aludindo a uma teoria das origens raciais da população aborígine), e os sertanejos (os interioranos do nordeste). Ladislau prossegue explicitamente denegrindo o caboclo através do que ele chama de provas. O “caso real de um caboclo” é apresentado de tal modo que corrobora o estereótipo. “Infelizmente”, diz ele, “a representação convencional do caboclo preguiçoso e indolente é confirmada” (Ladislau, 1971 [1923]: 74). A cultura e o temperamento de um homem do nordeste (dado que também estaria apoiado em um caso real), por outro lado, diferem substancialmente dos 12 caboclo, e os dois homens são comparados do em termos antitéticos.
Entretanto, embora Ladislau seja de opinião de que os migrantes nordestinos tinham posição superior à dos caboclos, na verdade, entre eles, as posições eram inversas. Assim, o grande número de nordestinos que migrou para a Amazônia nas primeiras quatro décadas deste século era chamado pela população nativa por termos como arigós, nordestinos, colonos, cearenses e brabos. Em associação com esses termos, a população autóctone mantinha seus próprios estereótipos negativos dos migrantes. O nordestino era representado como um homem firme e violento, ignorante das formas de vida da floresta e não habituado à abundância de água.

Ladislau era ele próprio nordestino, e isso provavelmente influenciou sua avaliação dos dois povos. No entanto, sua opinião não era apenas pessoal: o favoritismo em relação aos migrantes nordestinos (considerados uma “raça melhor” que o caboclo) era generalizado.

Em contraste com Ladislau, Vianna Moog concorda com a classificação regional. Assim, em O Ciclo do Ouro Negro (1975 [1936]), o caboclo é comparado ao nordestino em termos favoráveis. A base da distinção de Moog entre os dois povos é sua origem diferente. Em contraste com a comparação de Ladislau, Moog não os diferencia com base em qualificações morais e intelectuais.
Na análise de Moog da constituição da população amazônica, o caboclo é apresentado junto com o ameríndio como um dos povos autóctones amazônicos. A apresentação do nordestino, por outro lado, enfoca sua experiência de vida contrastante: do nordeste árido para a região amazônica fluvial. Tendo assim descartado o nordestino da população autóctone, Moog critica o fato de os caboclos serem representados como grupo uniforme e propõe sua própria classificação de tipos de caboclos: o mameluco de Agassiz (uma referência à descrição feita pelo naturalista, cf. Agassiz, 1868), o mongomalaio definido por Ladislau e o caboclo genuíno que, para ele, só é representado pela raça mista. Volto a essa definição de caboclo depois de apresentar a comparação que faz Moog entre o que define como caboclo genuíno e o nordestino.
Criticando aqueles que seguem o favoritismo de Ladislau em relação ao nordestino, Moog (1975 [1936]: 74) afirma: “É tempo de fazermos justiça aos caboclos amazônicos genuínos, que até agora têm sido depreciados em comparações feitas com o cearense dos rios superiores”. A defesa de Moog da raça mista cabocla baseia-se nas teorias de raça que dominavam o pensamento intelectual de seu tempo (ver Schwarcz, 1993). Seguindo a linha otimista de interpretação da miscigenação, Moog considera o caboclo “um bom equilíbrio racial”. As qualidades das raças índia e branca são combinadas e produzem uma raça híbrida bem adaptada, capaz de conviver com o meio ambiente social e ecológico amazônico. E embora Moog confirme a falta de ambição do caboclo, é só para exaltar o fato de que essa qualidade lhe deu os meios para levar a vida no vale amazônico. Enquanto muitos migrantes nordestinos retornaram para casa depois do colapso da economia da borracha, o caboclo permaneceu, apesar das condições econômicas desfavoráveis. “Se não fosse pelo caboclo sem ambições, não teria sido difícil prever o futuro da população amazônica. Graças ao [caboclo]... a civilização amazônica continua sua marcha” (Moog, 1975 [1936]: 74).
Moog não está só em sua exaltação do caboclo. Tanto na literatura quanto no discurso regional, o que está representado como preguiça é considerado sabedoria. “O caboclo é um homem feliz”, ouvi freqüentemente dos negociantes urbanos em Tefé. Na idealização positiva, o caboclo é designado como alegre e sábio, como se diz, porque se satisfaz com a pura existência e é portanto capaz de aproveitar a vida com mínimo esforço. Preto-Rodas refere-se a Leão (1956: 207 e seguintes) como outra exaltação literária do caboclo.
Voltando à definição de Moog do caboclo genuíno, é importante considerar seu contexto temporal. Em 1878, Veríssimo afirmou que a população rural deveria ser considerada como formada por tapuios e caboclos. A preocupação acadêmica de Veríssimo era preservar o que era então o significado tradicional do termo, isto é, o “índio civilizado”. A inclusão da raça mista na mesma categoria, para ele, era errada. De acordo com Veríssimo, o termo certo para a raça mista era curiboca ou mameluco.
Em Moog, como em Ladislau, o esforço está em distinguir o nordestino dos caboclos. E especificamente em Moog, a preocupação é também definir quem são os caboclos genuínos. Em contraste com Veríssimo, Moog afirma que o termo se refere apenas à raça mista, enquanto o ameríndio civilizado é considerado o verdadeiro tapuio. Assim, em 1936, Moog expressa a visão de que tapuio e caboclo não são mais sinônimos.
Hoje a distinção entre o caboclo representante de uma “raça mista” e a segunda e a terceira gerações de imigrantes nordestinos é vaga. Só em umas poucas regiões amazônicas, onde o número de migrantes era grande e eles se concentraram em um assentamento (por exemplo, em Colônia, um assentamento perto da cidade de Santarém),ou não constituíram uma população miscigenada (como em regiões deantiga extração de seringa), as duas populações estão ainda separadas.Assim, em Santarém, os migrantes e seus descendentes foram até agoraconhecidos como nordestinos, colonos ou cearenses. Já no médio Solimões e em outras regiões amazônicas, essa distinção desapareceu.
Também se desfez a diferenciação entre caboclos e tapuios. Hoje em dia o termo tapuio é usado raramente. Os ameríndios que abandonaram a vida indígena tradicional e adotaram uma vida dita civilizada, já não são chamados de tapuios. Ironicamente, é mais provável que sejam eles os únicos a se referirem a si mesmos e a serem referidos como caboclos.

“Avaliações positivas do caboclo também se encontram na literatura acadêmica. Moran (1974: 136), por exemplo, vê o caboclo como “o sistema adaptado humano mais importante [da Amazônia brasileira]”. A visão negativa do caboclo corresponde à crítica mais geral contra o “nativo preguiçoso”. Sahlins (1988) fez a crítica antropológica mais influente da “síndrome do nativo preguiçoso”, substituindo-a pela idéia de “afluência da subsistência”. Ver também em Bauer (1979) uma revisão da explicação de historiadores da “indolência camponesa” que aponta a diferença entre o tempo de trabalho dos camponeses (trabalho sazonal) e dos trabalhadores industriais (trabalho orientado pelo tempo cronológico).”

Essa definição contemporânea do caboclo é adotada na literatura acadêmica. Na primeira publicação acadêmica que adotou o caboclo amazônico como título e tema central, The Amazon Caboclo: Historical and Contemporary Perspectives, editada por Eugene Parker (1985), os caboclos são definidos como “um grupo de sangue misto resultante do casamento entre os ameríndios e os primeiros colonos portugueses e, mais tarde, nordestinos” (parker, 1985b: 6). Em contraste com as primeiras décadas deste século, nos anos 80, os nordestinos já não estão separados dos caboclos. De fato, nesse mesmo volume, Barbara Weinstein apresenta um relato histórico do que chama a “caboclização” dos nordestinos. Uma classificação de tipos contemporâneos de populações amazônicas também é apresentada. De acordo com Parker: “no interior da Amazônia há três populações distintas: os ameríndios, os caboclos amazônicos e os Pioneiros/ migrantes camponese” (parker, 1985a: xxxvii).
Comparando as definições apresentadas em Verissimo (1878) e Moog (1975, [1936]) (uma que Parker (1985) também adota), vemos a dimensão histórica de termo caboclo. O caboclo é uma construção de quem é nativo num dado momento da história. O amazônida típico da época é sempre definido em contraste com aqueles que são migrantes recentes e os povos indígenas, de um lado, e o grupo social identificado como branco, urbano e rico, de outro. O termo constitui uma categoria intermediária no sistema de classificação social, situada entre categonas socias opostas. Inicialmente, a oposiçao era designada exclusivamente em termos de raça. Agora, a definição de caboclo implica uma série de oposições: pobre versus rico, selvagem versus civilizado, floresta versus cidade e, na avaliação moral, indolente versus empreendedor.
Vimos que no discurso coloquial amazônico o termo caboclo tem dois usos - um objetivo e um relacional. O uso objetivo é mais restrito, aparecendo na mídia, na ficção literária e nos discursos políticos, quando designa a população rural indígena amazônica. Apesar de se referir a uma população concreta, esse uso está associado a uma avaliação subjetiva e ambivalente da população rural. Tanto na literatura quanto no discurso regional, o retrato do caboclo vai de um fracasso humano, um tipo preguiçoso e atrasado, a um indivíduo sábio e racional, perfeitamente adaptado ao meio ambiente social e ecológico da Amazônia. O meio ambiente amazônico em si é outra fonte de desacordo e é definido ora como abundante, ora como agressivo. Um fator comum a essas visões opostas é a questão da pobreza do caboclo. O estereótipo caboclo e as opiniões que se têm sobre as qualidades do meio ambiente são usados para explicar a pobreza humana e o subdesenvolvimento da Amazônia.
A forma relacional de utilização é a mais comum. Nessa modalidade, caboclo poderia designar um índio, um habitante da zona rural ou uma pessoa pobre do meio urbano, dependendo do status relativo entre o orador e o indivíduo ou a população a que se refere. Assim, a utilização mais comum do termo caboclo é caracterizada por uma definição ambígua da população a que se refere. Como resultado, o sistema de classificação regional de indivíduos ou enquanto caboclos ou brancos (as principais categorias de classificação social na região do médio Solimões) não é coerente. Para ilustrar esse ponto, em sua pesquisa, Wagley pediu aos habitantes de um assentamento no baixo Amazonas para classificar vinte bem conhecidos membros da comunidade de acordo com as categorias étnicas usadas pelo povo local (branco, moreno, caboclo e negro). Não houve consenso nas respostas recebidas (Wagley, 1976: 134).

A QUESTÃO DA IDENTIDADE CABOCLA

O termo caboclo usado no discurso coloquial não se refere exclusivamente a um grupo social, nem corresponde a um grupo étnico. De acordo com Barth (1969: 13), os traços críticos para a definição de um grupo étnico são autodenominação e denominação pelos outros. Seguindo a definição de Barth, nem mesmo a população dos ameríndios assentados a que se chamou de caboclos durante os tempos coloniais poderia ser considerada um grupo étnico. Embora esses primeiros caboclos fossem claramente distintos dos europeus a partir de uma base étnica, eles não constituíram um grupo político nem possuíram uma identidade coletiva.
O fato do caboclo não ser um termo de autodesignação está relacionado, em primeiro lugar, com a conotação pejorativa do termo e o significado de “índio domesticado” (e não o de uma raça cruzada entre branco e índio), que ele transmite entre a população rural.
Quando caboclo é usado por certos grupos ameríndios como termo de autodesignação, a conotação pejorativa está subentendida. Como afirma Cardoso de Oliveira (1972a), o uso de caboclo como termo de auto-identifIcação é uma maneira de os índios assumirem uma posição social inferior em relação aos brancos. Discutindo o uso do termo entre os ticuna, Cardoso de Oliveira afirma que é uma identidade negativa (ou seja, a do índio que se vê do ponto de vista do branco). Por essa razão, os índios que individualmente migram do alto rio Negro para a cidade de Manaus não reproduzem sua identidade cabocla através das gerações, mas apenas a usam para si (ver Fígoli, 1985).
Uma segunda razão por que caboclo não é utilizado como termo de autodesignação deriva do fato de nunca ter sido associado a um movimento politico. Há outros casos de termos utilizados para a identificação de grupos sociais que ou ganharam ou desenvolveram um valor politico positivo e por esse motivo foram aceitos enquanto termos de autodesignação. A classificação social índio é um exemplo bem conhecido .
Enquanto a população rural vê sua relação com grupos sociais de status mais elevado com base em concepções coletivas vagas, como a de pobre, encontram-se entre eles mesmo noções mais afirmativas de identidade.
A ecologia dos assentamentos constitui um importante atributo de identidade, e esta é uma das bases sobre as quais a população rural se distingue entre si. As duas principais paisagens regionais são a várzea, a planície inundada sazonalmente, e a terra firme, as terras mais altas, livres de inundação. Esses dois cenários ecológicos impõem condições de vida contrastantes. Eles apresentam ciclos sazonais diferentes e permitem a ocorrência de um conjunto de atividades econômicas diversas. Dadas essas diferenças, os moradores locais se distinguem entre si como vargeiros, ou pessoas da várzea, e terra firmeiros, ou pessoas da terra firme.
A atividade econômica constitui outro nível de auto-identificação e distinção. A maioria dos habitantes da zona rural se define como agricultor. Os moradores afirmam que a agricultura é a sua profissão, apesar de empreenderem outras atividades econômicas, como a extração de madeira, a coleta de castanha-do-pará e a pesca, e apesar de, em muitos casos, essas atividades constituírem sua principal fonte de renda. No contexto de sua dependência de um patrão ou negociante, as pessoas também falam de seu status de fregueses e discutem as deficiências dessa posição econômica desfavorável.
A noção de identidade mais intrínseca ao habitante da zona rural é encontrada no nível da comunidade. Nesse nível, os principais parâmetros de sua definição de qualidade de si mesmo e qualidade de outro são: residência comum, relação de parentesco, lugar de nascimento, devoção religiosa e nomes pessoais. A combinação entre esses atributos individuais constitui a base sobre a qual as pessoas interagem entre si.
Os assentamentos rurais são chamados comunidades, seguindo um programa de organização politica dos assentamentos rurais introduzido pela igreja católica. Antes da introdução do termo comunidade, eram empregadas as palavras povoado, localidade ou sítio. Os habitantes locais usam a palavra comunidade (freqüentemente dita “nossa comunidade”) para transmitir a noção de direitos comuns de residência e uso comunal dos recursos – terra e água – relacionados ao território de sua localidade.

Dois outros casos são os termos posseiro, discutido por Esterci (1987), e camponês, analisado por Sigaud (1978).

Na região do médio Solimões, parentesco e residência estão fortemente relacionados. Todas as comunidades rurais são identificadas por referência a um ou mais grupos de parentesco dominantes. Nas comunidades, embora nem todos os indivíduos tenham relações de parentesco locais, a afirmação “somos todo, parentes aqui” é lugar-comum. A distinção entre “os de dentro” e “os de fora” é feita em dois níveis: considerando o indivíduo isoladamente e levando em conta a unidade doméstica. Assim, a afirmação acima é freqüentemente complementada por “só x lares não são de parentes”.
Os indivíduos entram na comunidade principalmente através do casamento, mas mantêm seu status individual de forasteiros. O lar em que vivem, entretanto, é reconhecido como casa de parentes. Só é totalmente considerada de forasteiros a casa onde nenhum dos cônjuges possui relações de consangüinidade com alguma das famílias dominantes ou em que nenhum deles é oriundo do local. Os indivíduos não nascidos na localidade, mas que têm uma ligação de parentesco reconhecida com uma família local têm garantidos os direitos aos recursos da comunidade.
A maioria dos povoados rurais na região do médio Solimões é católica. Há um número crescente de comunidades protestantes na região, assim como casos de uma minoria de protestantes que vivem em comunidades predominantemente católicas. Embora haja uma série de igrejas protestantes na região (Pentecostal, Testemunhas de Jeová, Adventista do Sétimo Dia, Batista e outras), os protestantes são conhecidos em termos coloquiais pelo nome genérico crente. A construção da identidade crente depende de seu contraste com o catolicismo (em termos de reivindicações recorrentes de superioridade), enquanto a identidade do católico é comparativamente mais autocentrada .
O catolicismo praticado pela população rural é essencialmente popular, com ênfase na devoção aos santos e em poucos sacramentos e rituais ortodoxos. A maior parte das comunidades celebra um ou mais santos padroeiros, considerados guardiões da comunidade. Festas anuais celebram seus santos padroeiros com um ritual tradicional. Por constituir um foco comum de devoção, o santo padroeiro confere à comunidade sua identidade metafisica.
Para o indivíduo, a identificação social e a identidade pessoal estão associadas ao nome pessoal. No médio Solimões, a maioria dos indivíduos tem dois nomes: um nome cristão e um apelido. A diferença entre o nome cristão da pessoa e o seu apelido é bem marcada e o uso (ou a atribuição) de um ou de outro constitui um sinal importante de proximidade ou distância interpessoal.
O nome cristão é o nome da pessoa, distinto do apelido, que é como a pessoa é chamada ou, como eles dizem, “como nós o (a) chamamos”. Enquanto o nome cristão é exclusivamente uma atribuição de parentes e guardiões da criança, o apelido é a identidade conferida pela sua comunidade.
Vizinhos, parentes e conhecidos ao mesmo tempo se referem e se dirigem à pessoa por seu apelido, ao ponto de mal se conhecer o nome cristão de alguns indivíduos. Os apelidos em geral derivam da natureza (nomes de animais, peixes, frutas ou plantas). Geralmente, o apelido é explicado através de uma história pessoal, freqüentemente um evento engraçado ou satírico envolvendo a pessoa. Disseram-me que somente os homens têm apelidos e, de fato, a maioria deles tem. No entanto, embora comparativamente com menor freqüência, algumas mulheres também têm apelidos.

Sobre a expansão do pentecostalismo na Amazônia, ver Boyer, 1999a.


O nome cristão só é dado depois do batismo. Antes disso, os bebês não têm nomes (pode-se referir a eles como anjinhos). É comum encontrar irmãos com nomes semelhantes, todos começando com a mesma letra ou sendo combinações dos nomes do pai e da mãe. Em comparação com o apelido, o nome cristão é formal. Disseram-me que é dado a estrangeiros e autoridades, como o padre, o serviço de extensão, o MEB, etc.
Em resumo, contrastando com a objetividade postulada no uso do termo caboclo, às pessoas a que se faz referência através do termo falta uma identidade coletiva que lhes daria uma noção abrangente e imediata da diferença entre elas próprias e outras categorias sociais pertencentes à sociedade amazônica. Em relação à sua posição na sociedade em geral, a população rural do médio Solimões vê-se como pobre. Essa identidade é a base de seu relacionamento com a liderança política do médio Solimões. Em níveis sociais menos abrangentes, a identidade do grupo local e as identidades pessoais baseiam-se nos atributos da ecologia do povoado, na profissão, na residência comum, no status de parentesco dentro da comunidade, na localidade do nascimento, na religião e no nome. Esses parâmetros são mais relevantes para o relacionamento interno da população rural do que para o seu relacionamento com “gente de fora” (moradores das cidades e das classes mais altas), para quem o uso do rótulo caboclo em si estabelece a principál fronteira para se traçar diferenças sociais e culturais.

UMA ANTROPOLOGIA DO CABOCLO?

Dada a complexidade do conceito coloquial, pode-se perguntar como a antropologia do caboclo define seu objeto. Na literatura acadêmica, o termo caboclo é essencialmente uma categoria teórica, um tipo ideal, no sentido weberiano. Essa literatura não é extensa. As principais obras foram escritas nos anos 50 por Charles Wagley (1976 [1953]) e Eduardo Galvão (1955). Ambos adotaram o termo caboclo para referir-se à população rural. Trabalhos subseqüentes que trataram do campesinato da Amazônia (tais como Moran, 1974; Parker, 1981; 1985; Parker et al., 1983; Nugent, 1981) seguiram com o uso do termo. Nos anos oitenta, a literatura geral sobre a Amazônia, cobrindo tópicos como ecologia, desenvolvimento e história econômica (por exemplo, Forewaker, 1981; Weinstein, 1983; Sioli, 1984; Bunker, 1985), também fez referência aos caboclos, traduzindo o termo como o campesinato amazônico nativo. Em 1993, Nugent publicou o livro Amazonian Caboclo Sociery - an essay on invisibiliry and Peasant Economy, que foi seguido de três artigos tratando especificamente da identidade do caboclo: um do próprio Nugent (1997), um de Harris (1998) e o outro de Saillant e Forline (2000).
Comentando a complexidade do significado do termo, Wagley (1985) explicou que o termo fora “imposto” a ele e a Galvão, por seus colegas, autoridades governamentais e pessoas da cidade de Belém. Sempre que os dois pesquisadores esboçavam seu programa de pesquisa, uviam a resposta: “Então o senhor vai estudar os caboclos” (Wagley, 1985: vii). Durante minha própria pesquisa sobre a população rural do médio Solimões, ouvi os mesmos comentários (incluindo formulações mais duras como “o que você vai fazer no meio dos caboclos?”) e, acompanhando os trabalhos de Wagley e Galvão, adotei o termo caboclos para definir o sujeito da minha tese, mesmo tendo tido o cuidado de analisar a complexidade de significados e apesar de, na conclusão do trabalho, apresentar nota sobre o caráter provisional do termo - dado que não havia termo genérico de autodenominação.
Hoje abandono essa opinião, mesmo a de que é possível tomá-lo como termo provisório. Como mencionei, não creio que possa existir um uso neutro para uma palavra que tem na memória coletiva um conjunto tão denso de significados.

Cf. Lima Ayres, 1992; ver também Harris, 1996, para uma etnografia sobre uma comunidade “cabocla” do Pará.

Como se viu acima, uma referência ao termo caboclo evoca vários significados, sendo os príncipais relacionados a noções de geografia (Amazônia, interior, rural), de descendência e “raça” (indígena, mestiça), das hierarquias e relações sociais (conquista ibérica, submissão, a relação de dívida e de crédito no aviamento, o par patrão & freguês) – todas ligadas à história da ocupação européia da Amazônia. Entre esses significados, predomina o sentido pejorativo do termo, decorrente da representação negativa do indivíduo ou grupo que ocupa uma posição social inferior. Embora haja também uma valoração positiva – no folclore, que retrata o caboclo como “o homem da terra”, e em cultos de possessão, em que aparece como “espírito forte” (Boyer, 1999b) – o estereótipo predominante é negativo. Corresponde a figuras como o “matuto” e o “caipira” do interior sulista. Por esse motivo, qualquer referência ao termo não pode ser inteiramente inocente, pois sempre remete à conotação pejorativa – de domínio público, apreendido pelo senso comum –, ao ponto do nome mesmo não ser senão excepcionalmente usado como autodenominação. A forma singela e humilde de pôr a mão no peito e anunciar, como reconhecimento de inferioridade, “eu sou apenas um caboclo” dirigi-se especificamente a um interlocutor branco, rico ou de outra região que não a Amazônia.
Não há uma identidade clara, forte e socialmente valorizada relacionada ao termo, e mesmo a forma acima mencionada não é senão uma encenação pré-fabricada, uma aceitação dissimulada da nomeação que é imputada ao locutor e que este só adota para uma platéia específica: uma que lhe seja (ou que ele considere) superior. Internamente, o indivíduo constrói sua noção de pessoa com outros referenciais, citados acima, como sendo ligados à sua condição social (pobre), à principal atividade econômica (pesca artesanal, agricultura de pequeno porte, coleta de castanha), ao ambiente que ocupa (várzea ou terra firme), aos laços de parentesco locais (as “comunidades” de parentes), à cosmologia e à religião que professa (o mundo dos encantados, o catolicismo popular ou as seitas pentecostais de várias denominações). Essas noções de identidade estão presentes no seu discurso direto, quando falam de si e por si.
De maneira geral, entretanto, a palavra caboclo é usada em discursos indiretos, quando se fala de alguém ou de algum grupo. O nome caboclo carrega uma história particular: surgiu ao longo do processo em que se formou o segmento camponês amazônico, no contexto de uma estrutura social altamente hierarquizada, como foi a sociedade amazônica colonial. E surgiu não só para referir a essa classe inferior como para definir suas qualidades e seu valor. Vimos como a palavra inicialmente denotava o índio genérico, destribalizado, passando posteriormente a significar o híbrido, o miscigenado. Que o termo tem a função de classificar categorias e definir posições sociais é comprovado pelo fato de a palavra ter sido mantida, apesar da evolução da composição étnica da população que nomeia. A manutenção do nome implica que, embora seu significado pareça ter mudado (se considerarmos que teve fundamentalmente a conotação de atributos “raciais”), ele é na verdade uma categoria de referência para a posição inferior na estrutura social do meio rural principalmente.
Uma forma de expressar a dominação de uma classe sobre outra é o exercício do poder de dar nomes. E a própria nominação não é destituída de poder, pois passa a influir no curso da formação do grupo nomeado, como argumentou Bourdieu (1990). Sobre o poder das palavras de efetivamente construir espaços sociais, Bourdieu (1990: 167) sintetiza em uma frase: “é possível fazer coisas com palavras”.
As palavras criadas para servir como categorias de classificação social não apenas descrevem como criam a estrutura social. A definição dos nomes das classes, privilégio dos grupos que ocupam posições superiores, reflete e configura a estrutura social. O caso do caboclo é um exemplo entre outros. Na própria Amazônia pós-colonial há outros casos. Grande número dos nomes pelos quais muitos povos indígenas ficaram conhecidos é fruto de tais processos de nominação, como é o nome macu, derrogatório e pejorativo, que engloba os hupda, dow e outros subgrupos afins, situados em posição inferior no sistema hierárquico dos povos do rio Negro. Já entre povos indígenas politizados, os nomes de atribuição foram abolidos e ao lado de seu processo de autodeterminação figura em destaque sua ênfase na autodenominação, como é o caso dos ashaninka (ex-campa), no Acre, entre outros. E, como mencionado acima, o próprio termo caboclo tem na sua etimologia o significado de alteridade (“aquele que vem do mato”).
A nominação, como a nomeação, é um ato de definição de identidades e atributos sociais. No caso de uma palavra com sentido de exclusão como caboclo (em muitos aspectos o pária da sociedade colonial amazônica), o nome atribui uma identidade que prende o grupo e os sujeitos a uma imobilidade social. A permanência do nome restringe as possibilidades de emancipação. Não é à toa que nos movimentos políticos atuais, notadamente os ligados à problemática ambiental, apresentam-se com novas identidades sociais, seja como Povos da Floresta, Populações Tradicionais, Pescadores Artesanais, ou Mulheres da Floresta, mas não como caboclos. Como mostrou Lygia Sigaud (1978), no artigo “A Morte do Caboclo”, os moradores das grandes fazendas de Pernambuco que eram conhecidos (mas também não se autodenominavam) como caboclos até os anos 60, quando se organizaram politicamente, passaram a ser chamados e a se chamar de “camponeses”.
É nesse sentido que me refiro à responsabilidade presente no uso dos nomes, pois as palavras não apenas criam, mas conservam as coisas que criam, como as estruturas e as representações sociais. Porque carrega a história colonial de subordinação, a palavra caboclo compromete o destino de uma população. O efeito do nome sobre a identidade é inegável – o nome condensa a própria essência da identidade. Aceitar o nome caboclo é aceitar a derrogação. É como o caboclismo que Cardoso de Oliveira descreveu para os ticuna, quando o fato de referirem-se a si mesmos como caboclos significava “olhar a si mesmos com os olhos do branco”. É, portanto, essa história da palavra caboclo que me faz refletir sobre a pretensão antropológica de subtrair sua carga simbólica consagrada pelo uso popular e supor que pode empregá-la com um novo sentido. Podemos falar em caboclo impunemente, atribuindo à palavra um significado neutro (e no caso pretender também o exercício da nominação)?
Por certo precisamos de uma palavra para falar sobre os sujeitos da realidade social e referir a eles – e, para nos fazer inteligíveis, nada mais direto do que tomar emprestadas palavras com significado estabelecido no vocabulário popular. Também reconhecemos serem os tempos atuais, momentos de correção, em que as palavras estão sendo submetidas a uma revisão excepcional, medidas e pesadas com cuidado antes de serem empregadas. O excesso de rigor faz-nos correr risco de paralisar a fala. Só neste campo temático, reunimos uma série de conceitos submetidos a uma severa revisão crítica: camponês, cultura e a própria etnografia. No vocabulário cotidiano, são as palavras no masculino, as maneiras de fazer referência a um indivíduo que apresente algum estigma social, que nos fazem diminuir a velocidade da fala e sair em busca de outras palavras para empregar. Mas, no caso do nome caboclo, não há razão para não adotar novos nomes em seu lugar, mesmo porque cabe a nós um papel importante de legitimá-los. A nova identidade ecológica surge não como em Pernambuco dos anos sessenta, com a morte do caboclo, mas com a morte do patrão. Com a transformação das relações sociais de produção no meio rural, abriu-se um novo espaço político para as populações rurais. Nesse contexto, criaram seus próprios movimentos políticos, como o das populações tradicionais. Embora tenhamos que reconhecer algumas incongruências nessas novas denominações - alguns autores chegam ao ponto de caracterizar esses povos como “neo-tradicionais” devido ao caráter inovador de suas propostas para uma ecologia política amazônica -, é nossa responsabilidade conhecer o significado político do uso das palavras17.
É nesse sentido que se justifica a necessidade de desistir de fazer uso da palavra caboclo, especialmente se pretendemos falar de identidades rurais na Amazônia contemporânea. Como mostrou Baktin (1979), a palavra é o primeiro meio da consciência individual. A realidade da palavra, como a de qualquer signo, resulta do consenso entre indivíduos. Constitui o material semiótico da vida interior, da consciência, do discurso interno. Nesse sentido, a palavra caboclo é uma representação, e, também segundo Baktin (1979), a representação é o modo pelo qual vemos as coisas. Mas as representações não são necessariamente identidades, nem devem ser confundidas com elas. A identidade é uma forma de representação dirigida a si próprio. É a visão de si, que em um contexto social diferenciado é relacionada a uma identidade coletiva. O grupo informa seus membros sobre o significado da pertença, e sua particularidade é construída a partir da comunicação entre os indivíduos que formam o grupo de modo a constituir sua identidade comum. A identidade de um grupo não está fora da existência de seus membros, não é algo metafísico ou exterior aos indivíduos, mas sim uma produção coletiva da somatória das contribuições individuais, no contexto de uma formação social particular.
O que fazer então se nossa representação do outro entra em conflito com a sua própria representação de si, sua própria identidade ? E como falar de uma identidade cabocla, se essa palavra, cujo sentido aponta para uma representação alegórica, impõe. uma distância social muito grande entre o locutor e o personagem a que faz referência? Manter o uso da palavra caboclo demonstra que desconhecemos as formas com que “eles” próprios se apresentam/representam. Nesse sentido, o nome caboclo vive hoje apenas no discurso que nós fazemos sobre uma outra categoria social.
Para uma análise do significado da categoria social “populações tradicionais” e sobre seu processo político de auto-constituição, ver Carneiro da Cunha e Barbosa, 2000.


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