terça-feira, 27 de setembro de 2016

ACESSO E PERMANÊNCIA DE INDÍGENAS NA EDUCAÇÃO SUPERIOR DO AMAZONAS- UM ESTUDO DA COTAS PARA ÍNDIOS DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS – UEA




MARCOS ANDRÉ FERREIRA ESTÁCIO¹
Universidade Federal do Amazonas – UFAM
Universidade do Estado do Amazonas – UEA


No Estado Democrático de Direito, o direito à educação é estabelecido enquanto princípio de igualdade que, para ser assegurado, necessita da indispensável atuação do Poder Público, entidade que regula o sistema de defesa contra as interferências ou ausências do poder estatal, representando assim, os interesses da sociedade civil. Porém, no atual contexto brasileiro, as políticas neoliberais adotadas, principalmente a partir da década de 1990, trazem como centralidade a reforma do Estado e, na área da educação, estes ideais apontam para a desresponsabilização do Estado em relação à educação pública, e é neste período que se iniciam os debates sobre as políticas de ações afirmativas no Brasil. A presente pesquisa objetiva compreender as políticas de ações afirmativas de ingresso e permanência no ensino superior, para os povos indígenas, implementadas na Universidade do Estado do Amazonas – UEA, a partir da Lei Estadual nº 2.894, de 31 de maio de 2004, a qual dispõe sobre as vagas oferecidas em concursos vestibulares da UEA, determinando a reserva de um percentual de vagas, por curso, para serem preenchidas, exclusivamente, por candidatos pertencentes às etnias indígenas localizadas no Estado do Amazonas. A metodologia utilizada é de natureza qualitativa ilustrada por dados quantitativos, do tipo documental, bibliográfica e a pesquisa de campo foi realizada nos cursos de licenciatura da Escola Normal Superior da UEA. Parte-se da compreensão de que as ações afirmativas são um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional, bem como para corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal da efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais. Já a política pública é entendida compreendida como um fenômeno social, integrante de um todo amplo e complexo, denominado de realidade social, a qual é marcada por condicionantes sócio-históricos em constante processo de transformação. Logo, as ações afirmativas devem almejar não apenas coibir a discriminação do presente, mas, sobretudo, eliminar os efeitos persistentes da discriminação do passado, os quais tendem a se perpetuar, e mais, no ensino superior devem se constituir como práticas interdependentes e complementares, relativas às experiências e vivências sociais, políticas culturais dos atores sócio-educacionais, visando, tanto o acesso quanto a permanência dos atendidos pelas respectivas políticas. E assim, o efeito mais visível dessas ações, além do estabelecimento da diversidade e representatividade propriamente ditas, é o de eliminar as barreiras invisíveis que emperram o avanço de negros, mulheres, indígenas, quilombolas, independentemente da existência ou não de política oficial tendente a subalternizá-los.
PALAVRAS-CHAVE: Educação Superior; Ação Afirmativa; Cotas para Indígenas; Acesso-Permanência; Amazonas.

INTRODUÇÃO.

O direito à educação no Estado Democrático de Direito, é estabelecido como princípio de igualdade, que para haver e ser assegurado é indispensável à atuação do Poder Público, entidade privada que regula o sistema de defesa contra as interferências ou ausências do poder estatal, representando os interesses da sociedade civil. A educação, na Constituição Federal de 88, é um direito humano, o qual visa superar as desigualdades do cenário social, promovendo a cidadania.
No entanto, é no contexto histórico e político das últimas décadas, que as instituições de ensino público, e de modo mais específico à universidade pública brasileira, vêm sofrendo um processo de destruição da sua função enquanto instituição social (CHAUÍ, 1999). É inegável o acelerado processo de privatização da educação superior, inclusive de modo interno nas instituições públicas, entendendo-o como a entrada de recursos privados para manter as atividades de ensino, pesquisa e extensão, princípio constitucional das universidades no Brasil (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, Art. 207).
No contexto brasileiro, as políticas neoliberais adotadas, principalmente, a partir da década de 1990, tiveram como centralidade a reforma do Estado, e na área da educação, estes ideais marcam a Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional – LDB e o Plano Nacional de Educação – PNE, ambos aprovados no governo de Fernando Henrique Cardoso – FHC. Tais dispositivos legais apontam para a desresponsabilização do Estado com relação à educação pública, ao lado da ampliação do setor privado, com abertura para entrada de recursos privados para manutenção e ampliação das instituições públicas, bem como a transferência de recursos públicos para o setor privado.
É neste período que durante o primeiro mandato de FHC, é iniciado o debate sobre as políticas de ação afirmativa no Brasil. Em 1996, constituiu-se um Grupo de Trabalho Interministerial – GTI, composto pelo governo e por representantes dos movimentos sociais, que definiu as ações afirmativas como medidas especiais e temporárias, tomadas ou determinadas pelo Estado espontânea ou compulsoriamente, com o objetivo de eliminar desigualdades historicamente acumuladas.
Diante deste cenário, e considerando que a política pública expressa à possibilidade concreta apresentada pelo Estado de colocar em ação, dentro de um espaço social contraditório e complexo, uma visão de homem, um projeto de sociedade, de relações de trabalho e de outras variáveis que a compõem, o presente trabalho objetiva compreender as políticas de ações afirmativas para indígenas do Estado do Amazonas, enquanto modo de ingresso no ensino superior, a partir dos princípios do Estado Democrático de Direito brasileiro, analisando-as enquanto política pública.

1 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS.
A construção e a organização política do Estado Democrático ocorrem no início do Estado Liberal1, passando ainda pelo Estado Social Democrático de Direito, até chegar como hoje o conhecemos: Estado Democrático de Direito2. Na transição da monarquia absolutista para um regime de poder organizado e com uma Constituição, o interesse da burguesia pautava-se no direito positivo e na divisão de poderes. A sociedade guiada pela idéia de liberdade buscava no espaço público assegurar que o Estado, não interventor, garantisse a liberdade, a propriedade, as conquistas e os direitos.

Na doutrina Liberal, Estado de direito significa não só subordinação dos poderes públicos de qualquer grau às leis gerais do país, limite que é puramente formal, mas também subordinação das leis ao limite material do reconhecimento de alguns direitos fundamentais considerados constitucionalmente, e, portanto, em linha de princípio ‘invioláveis’(BOBBIO, 1998, p. 18) [grifos do autor].

No Estado Liberal as desigualdades políticas e sociais da classe burguesa, demandadas pelo Estado capitalista privavam a classe proletária dos direito sociais, logo se intensificaram as injustiças sociais e a ausência de políticas acarretava em pressões sociais, sendo preciso um novo redirecionamento quanto ao papel do Estado e com isso a apropriação dos direitos que visassem ao bem estar e aos interesses das camadas populares.
Essa política de bem estar social, presente no Estado Social, tinha a intenção de promover e proteger a sociedade com ações sociais e econômicas que equilibrassem as estruturas organizacionais, a educação, o direito, a saúde, o emprego, entre outros. O Estado Social legitimava e reorganizava a política e a economia, mas as formas deste intervencionismo variavam nos países capitalistas, que por sua vez estava fundado em uma relação de classes. O declínio deste sistema se dá em meio às instabilidades econômicas, que segundo a classe dominante, ao investir em gastos públicos provocava déficit para o Estado.
Um Estado de Direito está sujeito ao direito, opera por meio do direito, tornando assim um poder democrático, uma representação política e de soberania popular. Na verdade, segundo Habermas (2003, p. 68), o Estado Democrático de Direito visa buscar uma nova forma de legitimação, ou seja,

É que o Direito não somente exige aceitação; não apenas solicita dos seus endereçados, reconhecimento de fato, mas também pleiteia merecer reconhecimento. Para a legitimação de um ordenamento estatal, constituído na forma da lei, requerem-se, por isso, todas as fundamentações e construções públicas que resgatarão esse pleito como digno de ser reconhecido.

A representação e a participação da sociedade na consolidação dos direitos adquiridos na Constituição de 1988 se dão por meio da cidadania participativa e da mobilização política que se utiliza também dos poderes juridicamente. Assim, os direitos do homem variam conforme as condições históricas e os interesses sociais. Segundo Bobbio (2004, p. 18) “o que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e culturas”.
A evolução do Estado de Direito com o reconhecimento dos direitos individuais e dos direitos sociais, evidenciou a discussão do direito à educação amparada no princípio de igualdade, oportunizando assim, dignidade ao ser humano. Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, foram tomadas medidas para garantir a proteção dos mesmos internacionalmente, permitindo uma consolidação normativa que não seja vulnerável e restrita a esfera constitucional. Logo, os direitos humanos são reconhecidos universalmente, enquanto os direitos fundamentais são reconhecidos e normatizados constitucionalmente em cada Estado.
Os direitos fundamentais são caracterizados em três gerações, que são os direitos individuais, os direitos sociais e os direitos de fraternidade. A primeira geração, os direitos fundamentais3 e políticos, impõem limite à ação do Estado, logo podemos chamá-los de defesa. A segunda geração, os direitos sociais4, econômicos e culturais, tem relação direta com a participação estatal, procurando minimizar desigualdades e melhores condições de vida. E finalmente na terceira geração, os direitos difusos rompem com o indivíduo para atender a todos (o meio ambiente, a paz, entre outros).
A educação em nosso país é considerada subjetiva e sua garantia é concretizada nas condições de oferta, nas condições pedagógicas, na gestão das políticas públicas educacionais, em um currículo que respeite as diversidades e também por meio de um financiamento que invista satisfatoriamente nos diversos agentes e setores educacionais (professores, profissionais que atuam educação – porteiros, secretários, auxiliares administrativos, etc. – infra-estrutura das instituições educativas, material didático, transporte escolar, entre outros).
Apesar de toda legalidade existente, a efetivação do direito à educação mostra-se fragilizada, prova disso são os índices de evasão, repetência e analfabetismo, dívida esta que não conseguimos superar apesar de toda legislação vigente e também devido à ausência de uma estrutura organizacional e política do Estado e de políticas públicas capazes de efetivarem a oferta de uma educação digna e de qualidade.
No que concerne ao conceito de política pública, na literatura de forma geral, ele se apresenta com várias definições, desde as mais simples às mais complexas. Muller e Surel (2004) destacam que existe certa dificuldade para se definir o que seria política pública. Para eles, na literatura especializada de forma geral, as definições vão desde as qualificações mínimas, quando se confere ao Estado o papel de decidir ou não sobre as ações a serem realizadas, como também apresentam até as definições mais completas quando a política pública se apresenta como um programa de ação governamental em um setor da sociedade ou mesmo em um espaço geográfico.
Azevedo (2001, p. 5) nos chama atenção ao destacar que a política pública “implica considerar os recursos de poder que operam na sua definição e que tem nas instituições do Estado, sobretudo na máquina governamental, o seu principal referente”. Ou seja, é o Estado, enquanto possuidor do poder de definir as ações públicas que serão implementadas por meio de sua estrutura governamental, que coloca em prática o que foi elaborado para determinado fim.
A partir dos elementos citados anteriormente, levantamos o seguinte questionamento: Como surgem as políticas de ação afirmativa para o ensino superior? Inicialmente vamos buscar em Azevedo (2001), cujo referencial teórico tem sintonia com a proposta de Muller e Surel (2004), a compreensão de que o modelo das sociedades modernas e industrializadas se apresenta de forma setorizada. A partir dessa divisão por setores, percebemos como ocorre o processo em que se estabelecem as diretrizes de uma política e como o Estado, stricto sensu, exprime um modo específico de articulação e de normatização das diversas demandas.
Segundo a autora, “há um tipo de organização social que foi estabelecido a partir da divisão social do trabalho, das especializações das funções e das profissões, e dos diferentes tipos de atividades que caracterizam a vida moderna” (AZEVEDO, 2001, p. 61). Ela destaca que o surgimento de uma política setorial tem como ponto inicial a presença de determinado problema para o setor específico, que, se reconhecido pelo próprio Estado, deverá intervir para solucioná-lo.

Com efeito, pode-se afirmar que um setor ou uma política pública para um setor, constitui-se a partir de uma questão que se torna socialmente problematizada. A partir de um problema que passa a ser discutido amplamente pela sociedade, exigindo a atuação do Estado (Ibid.).

Outra possibilidade do surgimento da política pública está ligada diretamente aos grupos que atuam e integram cada setor específico, pois conforme Azevedo (2001, p. 62), os mesmos “vão lutar para que suas demandas sejam atendidas e inscritas na agenda dos governos. E estas lutas serão mais ou menos vitoriosas, de acordo com o poder de pressão daqueles que dominam o setor em cada momento”.
A autora enfatiza ainda que,

Na sociedade, portanto, a influência dos diversos setores, e dos grupos que predominam em cada setor, vai depender do grau de organização e articulação destes grupos com ele envolvidos. Este é um elemento chave para que se compreenda o padrão que assume uma determinada política e, portanto, porque é escolhida uma determinada solução e não outra, para a questão que estava sendo alvo do problematização (Ibid., p. 63).

Desta forma, fica evidente o papel dos diversos atores no processo de construção da política pública setorial, que de acordo com o nível de organização e articulação dos grupos, a política deverá ser realizada ou não.
Muller e Surel (2004), chamam a atenção para a importância do nível de organização social na construção da política pública, eles destacam também a importância dos segmentos envolvidos diretamente nos setores que serão contemplados com a política pública.

A construção das políticas públicas não é um processo abstrato. Ela é, ao contrário, indissociável da ação dos indivíduos ou dos grupos envolvidos, de sua capacidade de produzir discursos concorrentes, de seus modos de mobilização. Ela depende, também, da estrutura mais ou menos flutuante de suas relações e das estratégias elaboradas nos contextos de ação definidos em especial pelas estruturas institucionais, no interior das quais tomam lugar as políticas públicas. Analisar a ação pública conduz, portanto, necessariamente a uma reflexão sobre as características evolutivas do espaço público e das dinâmicas de ação coletiva (MULLHER; SUREL, 2004, p. 79).

A partir dos argumentos evidenciados, é possível pressupor que uma política pública de ação afirmativa para o ensino superior surge a partir de duas possibilidades. A primeira está relacionada com a própria problemática da inserção social de determinados grupos éticos, alunos de escolas públicas, afrodescendentes, pessoas com necessidades especiais, indígenas, índios-descendentes e quilombolas nas universidades públicas. A segunda segue o mesmo sentido, em que os diversos segmentos sociais organizados, que lutam pela inserção dos afrodescendentes, alunos de escolas públicas, pessoas com necessidades especiais, indígenas, índios-descendentes e quilombolas nas políticas públicas se organizam e lutam para que o próprio poder público possa construir políticas eficazes e que possibilitem a inserção social.

2 AÇÕES AFIRMATIVAS NA EDUCAÇÃO SUPERIOR.

A expressão ação afirmativa apareceu pela primeira vez, nos Estados Unidos, em um decreto presidencial. Segundo o texto, nos contratos com o Governo Federal,

o contratante não discriminará nenhum funcionário ou candidato a emprego devido a raça, credo, cor ou nacionalidade, e adotará uma ação afirmativa para assegurar que os candidatos sejam empregados, como também tratados durante o emprego, sem consideração a sua raça, credo, cor ou nacionalidade (MENEZES, 2001, p. 88).

No Brasil, embora a expressão ação afirmativa seja quase que invariavelmente associada à experiência norte-americana, vista como algo que se aplica exclusivamente aos negros e reduzida à política de cotas, a idéia de dispensar um tratamento positivamente diferenciado a determinados grupos, em função da discriminação de que são vítimas, já está presente na legislação brasileira há muito tempo (desde a Lei dos Dois Terços de 1930).
Uma leitura do princípio constitucional da igualdade significaria o fim de muitos programas sociais do Governo Federal, os quais discriminam negativamente quem ganha acima de determinada quantia. A esse propósito, é oportuno a posição do ministro Marco Aurélio Mello, para quem é necessário resgatar as dívidas históricas para com as minorias. Ele afirma que

é preciso buscar-se a ação afirmativa. A neutralidade estatal mostrou-se nesses anos um grande fracasso; é necessário fomentar-se o acesso à educação; urge contar-se com programa voltado aos menos favorecidos, a abranger horário integral, de modo a tirar o menor da rua, dando-se lhe condições que o levem a ombrear com as demais crianças. O Estado tem enorme responsabilidade nessa área e pode muito bem liberar verbas para os imprescindíveis financiamentos nesse setor; pode estimular, mediante tal liberação, as contratações. E o Poder Público deve, desde já, independentemente da vinda de qualquer diploma legal, dar à prestação de serviços por terceiros uma outra conotação, estabelecendo, em editais, quotas que visem a contemplar as minorias (MELLO, 2001, p. 5).

E nisto não há problema de inconstitucionalidade, já que

a Carta agasalha amostragem de ação afirmativa, por exemplo, no artigo 7º, inciso XX, ao cogitar da proteção de mercado quanto à mulher, e ao direcionar a introdução de incentivos; no artigo 37, inciso III, ao versar sobre a reserva de vagas – e, portanto, a existência de quotas – nos concursos públicos, para os deficientes; no artigo 170, ao dispor sobre as empresas de pequeno porte, prevendo que devem ter tratamento preferencial; no artigo 227, ao emprestar também tratamento preferencial à criança e ao adolescente (Ibid., p. 6).

Assim, a introdução das políticas públicas de ação afirmativa, de criação pioneira nos EUA, representou, em essência, a mudança de postura do Estado, que em nome de uma suposta neutralidade, aplicava suas políticas governamentais indistintamente, ignorando a importância de fatores como sexo, raça, cor e origem nacional. Nessa nova postura, passa o Estado a levar em conta tais fatores no momento de contratar seus funcionários ou de regular a contratação por outrem, ou ainda no momento de regular o acesso aos estabelecimentos educacionais.
Logo, ao invés de conceber políticas públicas de que todos seriam beneficiários, independentemente da sua raça, cor ou sexo, o Estado passa a considerar esses fatores na implementação das suas decisões, não para prejudicar quem quer que seja, mas para evitar que a discriminação, a qual inegavelmente tem um fundo histórico e cultural, e não raro se subtrai ao enquadramento nas categorias jurídicas clássicas, termine por perpetuar as iniqüidades sociais.
Atualmente, as ações afirmativas podem ser definidas como

um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional, bem como para corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego (GOMES, 2005, p. 53).

A noção mais completa acerca do enquadramento jurídico e doutrinário das ações afirmativas, coube, no Direito Público do Brasil, a professora Carmen Lúcia Antunes Rocha, classificando-as como a mais avançada tentativa de concretização do princípio jurídico da igualdade, ao afirmar que

a definição jurídica objetiva e racional da desigualdade dos desiguais, histórica e culturalmente discriminados, é concebida como uma forma para se promover a igualdade daqueles que foram e são marginalizados por preconceitos encravados na cultura dominante na sociedade. Por esta desigualação positiva promove-se a igualação jurídica efetiva; por ela afirma-se uma fórmula jurídica para se provocar uma efetiva igualação social, política, econômica no e segundo o Direito, tal como assegurado formal e materialmente no sistema constitucional democrático. A ação afirmativa é, então, uma forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição social a que se acham sujeitas as minorias (ROCHA, 1996 apud GOMES, 2005, p. 54) [grifos do autor].

Esta criação jurídico-político-social refletiria ainda, segundo a autora, em uma mudança comportamental dos juízes constitucionais de todo o mundo democrático do pós-guerra, os quais teriam se conscientizado da necessidade de uma transformação na forma de se conceber e aplicar os direitos, especialmente aqueles listados entre os fundamentais. Não bastavam as letras formalizadoras das garantias prometidas; era imprescindível instrumentalizarem-se as promessas garantidas por uma atuação exigível do Estado e da sociedade.
Nesse sentido, a ação afirmativa emergiu como a face construtiva e construtora do novo conteúdo a ser buscado no princípio da igualdade jurídica. O Direito Constitucional, posto em aberto, mutante e mutável para se fazer permanentemente adequado às demandas sociais, não podia persistir no conceito estático de um direito de igualdade pronta, realizado segundo parâmetros históricos eventualmente ultrapassados (ROCHA, 1996). Pois o conteúdo, de origem bíblica, de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam, sempre lembrado como sendo a essência do princípio da igualdade jurídica, encontrou uma nova interpretação no acolhimento jurisprudencial concernente à ação afirmativa.
Segundo essa nova interpretação, a desigualdade que se pretende e se necessita impedir para se realizar a igualdade no Direito não pode ser extraída apenas no momento em que se tomam as pessoas postas em dada situação submetida ao Direito, mas que se deve atentar para a igualdade jurídica a partir da consideração de toda a dinâmica histórica da sociedade, para se focalizar e retratar não apenas um instante da vida social, desvinculada da realidade histórica de determinado grupo social. Há que se ampliar o foco da vida política em sua dinâmica, cobrindo o espaço histórico que se reflete ainda no presente, propiciando no agora, desigualdades que nascem de preconceitos passados, e não de todo extintos. A discriminação de ontem pode ainda tingir a pele que se vê de cor diversa da que predomina entre os que detêm direitos e poderes hoje (Ibid.).
Na área da educação, as ações afirmativas aparecem como uma das principais iniciativas, que ganhou o centro do debate com a reserva de vagas/cotas para estudantes da escola pública, afrodescendentes, pessoas com necessidades especiais, indígenas, índios-descendentes e quilombolas nas universidades públicas. Em consonância com o governo de FHC, o governo atual vem aprofundando uma série de reformas, inclusive educacionais, entre elas a reforma universitária, na qual se encontram inseridas as ações afirmativas (reserva de vagas/cotas), que são definidas pelo Ministério da Educação – MEC (BRASIL, 2009) como sendo medidas especiais e temporárias tomadas pelo Estado, com o objetivo de eliminar desigualdades raciais, étnicas, religiosas, de gênero e outras, historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidade e tratamento, bem como compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização.
Assim, nos últimos anos, os debates sobre a educação têm colocado um desafio crucial relativo à possibilidade de compreensão dos cenários referentes às políticas públicas e às práticas que definem a sociedade brasileira, em seu processo civilizatório, como democrática, inclusiva e plural. Nesse contexto, a adoção das políticas afirmativas, vem ocupando uma posição significativa e crescente no cenário educacional brasileiro. Pois no

plano da adoção de políticas públicas, o importante não é procurar fixar-se no terreno escorregadio da discussão se determinado indivíduo é ou não é branco, negro, indígena, mestiço, etc. com base em um critério ou em outro. Em vez disso, talvez seja mais proveitoso e democrático desestabilizador dos preceitos normativos preconceituosos, promover a valorização e as potencialidades da diversidade étnico-racial presente no complexo da sociedade brasileira, reconhecendo a enorme gama de meios e alternativas mediante as quais seus diferentes, polifônicos e caleidoscópios contingentes humanos podem (re)definir a si mesmos e aos demais, continuamente (JUNQUEIRA, 2007, p. 23).

Essa compreensão evidencia um posicionamento político, ético e epistemológico, na medida em que educação, multiculturalismo e inclusão social são tomados como referenciais constitutivos do pensar e agir da universidade, são tidos como pautas político-pedagógicas, sobretudo, pela possibilidade de contribuir para a superação das formas conservadoras e discriminatórias, no que tange às questões raciais, e outras práticas excludentes, como, por exemplo, de gênero, de orientação sexual e classe social.
Logo, justifica-se a adoção das medidas de ação afirmativa com o argumento de que esse tipo de política pública seria apta a atingir uma série de objetivos que restariam normalmente inalcançados caso a estratégia de combate à discriminação se limitasse à adoção, no campo normativo, de regras meramente proibitivas de discriminação. Ou seja, não basta proibir, é preciso também promover, tornando rotineira a observância dos princípios da diversidade e do pluralismo, de tal sorte que se opere uma transformação no comportamento e na mentalidade coletiva, que são, como se sabe, moldados pela tradição, pelos costumes, em suma, pela história.

3 COTAS PARA ÍNDIOS NA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS – UEA.

A população indígena do Amazonas é de 113.391, dos quais 18.783 índios residem em áreas urbanas, e destes, 7.8935 indígenas residem em Manaus. As estimativas feitas pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB e Fundação Estadual de Populações Indígenas do Amazonas – FEPI, variam de 15.000 a 25.000 indígenas vivendo em Manaus, mas tais estimativas são as mesmas há vários anos.
O certo é que a população indígena de Manaus está dispersa pela cidade e são provenientes de vários municípios do Amazonas e até de outros Estados. As principais etnias desses povos, segundo o CIMI (2008), são: Tikuna, Kokama, Cambeba (Região do Alto e Médio Solimões), Tukano, Dessano, Tariano, Baniwa, Baré, Piratapuia Wanana, (Região do Alto Rio Negro), Deni (Região do Juruá), Sateré-Mawé, Munduruku, Mura (Região do Baixo Amazonas) e Apurinã (Região do Purus). Estes povos indígenas estão reunidos em comunidade e organizações: CIOAB, Associação de Mulheres Indígenas – AMISM, União dos Povos Indígenas de Manaus – UPIM, Comunidade Apurinã, Comunidade Deni, Comunidade Kokama, Movimento dos Estudantes Indígenas do Amazonas – MEIAM, dentre outros.
Esta constatação de índios vivendo em zonas urbanas não é apenas uma realidade brasileira, mas também latino-americana. E muitos destes grupos indígenas que vivem em cidades, metrópoles, ou meio urbano, portanto, fora de seus locais de origem, não são reconhecidos enquanto indígenas, seja por entidades indigenistas ou pelo próprio poder público. No entanto, para Laraia (1980), certas vozes do poder público que insistem em não aceitar a legitimidade de alguns líderes sob a alegação de que não são mais índios uma vez que já freqüentaram uma escola e conhecem a sociedade dos não-índios, não tem sustentação, pois o sentimento de lealdade e a identidade tribal não podem ser destruídos por um período efêmero de escolaridade ou de vida urbana.
Na terra manauara, esses índios vivem em bairros de periferia, sem acesso a direitos e serviços públicos básicos, principalmente de saúde e educação. Isto é comprovado nos dados do Educacenso (2007) do Ministério da Educação, onde Manaus registra o número de 781 escolas, sendo que apenas uma destas, é escola indígena. É imprescindível a ampliação do acesso escolar diferenciado para as comunidades indígenas, possibilitando-lhes uma educação diferenciada e o respeito às características étnicas e sócio-culturais. Nesse contexto, a formação de professores indígenas emerge como um dos elementos importantes para os rumos da educação escolar indígena no Amazonas.
Uma das instituições de educação superior no Estado do Amazonas é a Universidade do Estado do Amazonas – UEA, instituição de ensino vinculada ao Governo do Estado, a qual teve sua criação autorizada pela Lei Estadual nº 2.637, de 12 de janeiro de 2001 e instituída pelo Decreto Estadual nº 21.666, de 01 de fevereiro de 2001. Atualmente a UEA possui na capital do Estado do Amazonas as seguintes unidades acadêmicas: Escola Normal Superior – ENS, Escola Superior de Tecnologia – EST, Escola Superior de Ciências da Saúde – ESA, Escola Superior de Artes e Turismo – EAT e Escola Superior de Ciências Sociais – ESO.
No interior do Estado estão os Centros de Estudos Superiores, localizados na cidade de Itacoatiara, Parintins, Tabatinga e Tefé; e também os Núcleos de Estudos Superiores, nos municípios de Boca do Acre, Carauari, Coari, Eirunepé, Humaitá, Lábrea, Manacapuru, Manicoré, Maués, Presidente Figueiredo e São Gabriel da Cachoeira.
As matrículas efetivas em curso de graduação na Universidade do Estado do Amazonas totalizaram, no ano de 2008, 21.129 alunos; sendo que deste valor, 48,62% dos discentes estão matriculados em cursos da capital. A Escola Normal Superior – ENS oferece, em Manaus, cursos de licenciatura plena em Biologia, Geografia, Letras, Matemática, Normal Superior e Pedagogia; atendendo a 1.489 alunos.
Em 31 de maio de 2004, o então governador do Estado do Amazonas, sancionou a Lei Estadual nº 2.894, a qual dispõe sobre as vagas oferecidas em concursos vestibulares pela UEA, determinando, dentre outras ações, a reserva

a partir do vestibular de 2005, de um percentual de vagas, por curso, no mínimo igual ao percentual da população indígena na composição da população amazonense, para serem preenchidas, exclusivamente, por candidatos pertencentes às etnias indígenas localizadas no Estado do Amazonas (Art. 5º).

Esta legislação é entendida enquanto política social de ação afirmativa voltada para alcançar a igualdade de oportunidades entre as pessoas, distinguindo e beneficiando grupos afetados por mecanismos historicamente discriminatórios, objetivando alterar, positivamente, a situação de desvantagem desses grupos. Logo, o ingresso de alunos indígenas pelo sistema específico de quotas iniciado em 2005, terá vigência até que a Lei Estadual nº 2.894 seja revogada.
O número de vagas oferecidas para os candidatos pertencentes às etnias indígenas, no período de 2005 a 2008, totalizaram 660, porém apenas 321 foram efetivamente preenchidas, e deste total, 55,76% dos alunos indígenas matriculados estão realizando cursos na capital. Os discentes indígenas, os quais ingressaram pela quota específica, e que cursam licenciatura plena na ENS somam 25 alunos, representando assim, 7,79% de todos os alunos indígenas da Universidade do Estado do Amazonas que ingressaram pelo regime de cota e 13,97% dos discentes da UEA matriculados na capital pelas quotas indígenas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Os direitos sociais passaram a ser paulatinamente garantidos por meio das normas internacionais e constitucionais. Ser sujeito de direitos é indissociável de sua condição social, de sua existência humana configurada nas relações históricas. Contudo a não apropriação do mesmo pela sociedade possibilita que as segregações sociais permaneçam. A violação dos direitos, inclusive o direito à educação, inviabiliza a aquisição de outros direitos, comprometendo a condição de ser do homem.
Do contrário quando o homem compreende e tem consciência civil, política e social ao lutar pelos seus direitos, busca sua emancipação social. Para Jacobi (1990) a relação entre demandas sociais e políticas públicas não é meramente casual, sendo que diversos fatores atuam como determinantes na emergência destas demandas, assim como na formulação das políticas.
No entanto é diante da crise do capitalismo e com os desdobramentos na intervenção do Estado, para garantir o processo de produção e reprodução do capital, que se desencadearam uma série de ações no âmbito da educação. Entre estas ações se destaca as políticas de ações afirmativas, em particular a reserva de vagas/cotas nas universidades públicas brasileiras que aparecem no bojo das políticas de democratização da educação superior brasileira.
Neste sentido as políticas públicas de ação afirmativa, em particular a reserva de vagas/cotas nas universidades públicas, estão fundamentadas na compreensão da “inclusão excludente”, e encontram-se articuladas as políticas para adaptação ao processo de mundialização do capital e da educação, contribuindo, por meio da integração das reivindicações, para a colaboração entre as classes sociais e não mais para o confronto.
Assim, as ações afirmativas devem se constituir em um conjunto de políticas públicas e práticas interdependentes e complementares, relativas a experiências e vivências sócio-políticas e culturais dos/as atores sócio-educacionais, na contemporaneidade. Esse enfoque se coloca avesso às simplificações, ao tempo em que sublinha a possibilidade de compreendermos ações afirmativas, enquanto uma construção histórica, sócio-cultural em movimento, conforme sugere a perspectiva crítica da complexidade.
Por conseguinte, ao se abordar as ações afirmativas e a democratização do ensino superior, enfoca-se, diretamente, a problemática do acesso e permanência de estudantes oriundos das escolas públicas, de afro-descendentes, de índios e índio-descendentes, o sistema de reserva de vaga, que ora ocupa o debate dos movimentos sociais, das políticas institucionais e das políticas públicas, constituindo como uma questão importante no que tange à criação do espaço necessário para a formulação e implementação de políticas de promoção da igualdade racial, uma vez que, no Brasil os preconceitos e a discriminação racial não foram zerados, persistindo em superposição a exclusão étnico-racial e social.
Assim, as ações afirmativas têm como objetivo não apenas coibir a discriminação do presente, mas, sobretudo, eliminar os efeitos persistentes (psicológicos, culturais e comportamentais) da discriminação do passado, que tendem a se perpetuar. Esses efeitos se revelam na chamada discriminação estrutural, presentes nas desigualdades sociais entre grupos dominantes e grupos marginalizados.
Nesse sentido, o efeito mais visível dessas políticas, além do estabelecimento da diversidade e representatividade propriamente ditas, é o de eliminar as barreiras invisíveis que emperram o avanço de negros, mulheres, indígenas, quilombolas, independentemente da existência ou não de política oficial tendente a subalternizá-los. Argumenta-se igualmente que o pluralismo que se instaura em decorrência das ações afirmativas trará inegáveis benefícios para os próprios países que se definem como multirraciais e que assistem, a cada dia, ao incremento do fenômeno do multiculturalismo, pois agir afirmativamente é também uma forma de zelar pela pujança de qualquer país.

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1 O Estado Liberal é um desdobramento do Estado Moderno, tendo fases e interesses distintos que dependerão do desenvolvimento econômico de cada lugar.
2 Segundo Dallari (1998) determinados movimentos político-sociais foram responsáveis pela construção do Estado Democrático, entre eles a Revolução Inglesa, influenciada pelo pensamento de Locke; a Revolução Americana com a Independência das treze colônias e a Revolução Francesa, com influência de Rousseau, expressas na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.

3 Tais direitos foram consagrados no Bill of rights of Virginia, 1776, fruto da Revolução Americana, na Declaração Francesa dos direitos do homem e do cidadão e na Constituição Americana de 1791.
4 Marcos desta geração são a Constituição do México em 1917 e a Constituição Alemã de Weimar de 1919.
5 Censo Populacional de 2000 do IBGE.

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