MARCOS
ANDRÉ FERREIRA ESTÁCIO¹
Universidade
Federal do Amazonas – UFAM
Universidade
do Estado do Amazonas – UEA
No
Estado Democrático de Direito, o direito à educação é
estabelecido enquanto princípio de igualdade que, para ser
assegurado, necessita da indispensável atuação do Poder Público,
entidade que regula o sistema de defesa contra as interferências ou
ausências do poder estatal, representando assim, os interesses da
sociedade civil. Porém, no atual contexto brasileiro, as políticas
neoliberais adotadas, principalmente a partir da década de 1990,
trazem como centralidade a reforma do Estado e, na área da educação,
estes ideais apontam para a desresponsabilização do Estado em
relação à educação pública, e é neste período que se iniciam
os debates sobre as políticas de ações afirmativas no Brasil. A
presente pesquisa objetiva compreender as políticas de ações
afirmativas de ingresso e permanência no ensino superior, para os
povos indígenas, implementadas na Universidade do Estado do Amazonas
– UEA, a partir da Lei Estadual nº 2.894, de 31 de maio de 2004, a
qual dispõe sobre as vagas oferecidas em concursos vestibulares da
UEA, determinando a reserva de um percentual de vagas, por curso,
para serem preenchidas, exclusivamente, por candidatos pertencentes
às etnias indígenas localizadas no Estado do Amazonas. A
metodologia utilizada é de natureza qualitativa ilustrada por dados
quantitativos, do tipo documental, bibliográfica e a pesquisa de
campo foi realizada nos cursos de licenciatura da Escola Normal
Superior da UEA. Parte-se da compreensão de que as ações
afirmativas são um conjunto de políticas públicas e privadas de
caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com
vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por
deficiência física e de origem nacional, bem como para corrigir ou
mitigar os efeitos presentes da discriminação praticada no passado,
tendo por objetivo a concretização do ideal da efetiva igualdade de
acesso a bens fundamentais. Já a política pública é entendida
compreendida como um fenômeno social, integrante de um todo amplo e
complexo, denominado de realidade social, a qual é marcada por
condicionantes sócio-históricos em constante processo de
transformação. Logo, as ações afirmativas devem almejar não
apenas coibir a discriminação do presente, mas, sobretudo, eliminar
os efeitos persistentes da discriminação do passado, os quais
tendem a se perpetuar, e mais, no ensino superior devem se constituir
como práticas interdependentes e complementares, relativas às
experiências e vivências sociais, políticas culturais dos atores
sócio-educacionais, visando, tanto o acesso quanto a permanência
dos atendidos pelas respectivas políticas. E assim, o efeito mais
visível dessas ações, além do estabelecimento da diversidade e
representatividade propriamente ditas, é o de eliminar as barreiras
invisíveis que emperram o avanço de negros, mulheres, indígenas,
quilombolas, independentemente da existência ou não de política
oficial tendente a subalternizá-los.
PALAVRAS-CHAVE:
Educação Superior; Ação Afirmativa; Cotas para Indígenas;
Acesso-Permanência; Amazonas.
INTRODUÇÃO.
O direito à educação
no Estado Democrático de Direito, é estabelecido como princípio de
igualdade, que para haver e ser assegurado é indispensável à
atuação do Poder Público, entidade privada que regula o sistema de
defesa contra as interferências ou ausências do poder estatal,
representando os interesses da sociedade civil. A educação, na
Constituição Federal de 88, é um direito humano, o qual visa
superar as desigualdades do cenário social, promovendo a cidadania.
No entanto, é no
contexto histórico e político das últimas décadas, que as
instituições de ensino público, e de modo mais específico à
universidade pública brasileira, vêm sofrendo um processo de
destruição da sua função enquanto instituição social (CHAUÍ,
1999). É inegável o acelerado processo de privatização da
educação superior, inclusive de modo interno nas instituições
públicas, entendendo-o como a entrada de recursos privados para
manter as atividades de ensino, pesquisa e extensão, princípio
constitucional das universidades no Brasil (CONSTITUIÇÃO FEDERAL,
Art.
207).
No contexto brasileiro,
as políticas neoliberais adotadas, principalmente, a partir da
década de 1990, tiveram como centralidade a reforma do Estado, e na
área da educação, estes ideais marcam a Lei de Diretrizes e Base
da Educação Nacional – LDB e o Plano Nacional de Educação –
PNE, ambos aprovados no governo de Fernando Henrique Cardoso – FHC.
Tais dispositivos legais apontam para a desresponsabilização do
Estado com relação à educação pública, ao lado da ampliação
do setor privado, com abertura para entrada de recursos privados para
manutenção e ampliação das instituições públicas, bem como a
transferência de recursos públicos para o setor privado.
É neste período que
durante o primeiro mandato de FHC, é iniciado o debate sobre as
políticas de ação afirmativa no Brasil. Em 1996, constituiu-se um
Grupo de Trabalho Interministerial – GTI, composto pelo governo e
por representantes dos movimentos sociais, que definiu as ações
afirmativas como medidas especiais e temporárias, tomadas ou
determinadas pelo Estado espontânea ou compulsoriamente, com o
objetivo de eliminar desigualdades historicamente acumuladas.
Diante deste cenário, e
considerando que a política pública expressa à possibilidade
concreta apresentada pelo Estado de colocar em ação, dentro de um
espaço social contraditório e complexo, uma visão de homem, um
projeto de sociedade, de relações de trabalho e de outras variáveis
que a compõem, o presente trabalho objetiva compreender as políticas
de ações afirmativas para indígenas do Estado do Amazonas,
enquanto modo de ingresso no ensino superior, a partir dos princípios
do Estado Democrático de Direito brasileiro, analisando-as enquanto
política pública.
1
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS.
A
construção e a organização política do Estado Democrático
ocorrem no início do Estado Liberal1,
passando ainda pelo Estado Social Democrático de Direito, até
chegar como hoje o conhecemos: Estado Democrático de Direito2.
Na transição da monarquia absolutista para um regime de poder
organizado e com uma Constituição, o interesse da burguesia
pautava-se no direito positivo e na divisão de poderes. A sociedade
guiada pela idéia de liberdade buscava no espaço público assegurar
que o Estado, não interventor, garantisse a liberdade, a
propriedade, as conquistas e os direitos.
Na
doutrina Liberal, Estado de direito significa não só subordinação
dos poderes públicos de qualquer grau às leis gerais do país,
limite que é puramente formal, mas também subordinação das leis
ao limite material do reconhecimento de alguns direitos fundamentais
considerados constitucionalmente, e, portanto, em linha de princípio
‘invioláveis’(BOBBIO, 1998, p. 18) [grifos do autor].
No Estado Liberal as
desigualdades políticas e sociais da classe burguesa, demandadas
pelo Estado capitalista privavam a classe proletária dos direito
sociais, logo se intensificaram as injustiças sociais e a ausência
de políticas acarretava em pressões sociais, sendo preciso um novo
redirecionamento quanto ao papel do Estado e com isso a apropriação
dos direitos que visassem ao bem estar e aos interesses das camadas
populares.
Essa política de bem
estar social, presente no Estado Social, tinha a intenção de
promover e proteger a sociedade com ações sociais e econômicas que
equilibrassem as estruturas organizacionais, a educação, o direito,
a saúde, o emprego, entre outros. O Estado Social legitimava e
reorganizava a política e a economia, mas as formas deste
intervencionismo variavam nos países capitalistas, que por sua vez
estava fundado em uma relação de classes. O declínio deste sistema
se dá em meio às instabilidades econômicas, que segundo a classe
dominante, ao investir em gastos públicos provocava déficit para o
Estado.
Um Estado de Direito está
sujeito ao direito, opera por meio do direito, tornando assim um
poder democrático, uma representação política e de soberania
popular. Na verdade, segundo Habermas (2003, p. 68), o Estado
Democrático de Direito visa buscar uma nova forma de legitimação,
ou seja,
É
que o Direito não somente exige aceitação; não apenas solicita
dos seus endereçados, reconhecimento de fato, mas também pleiteia
merecer reconhecimento. Para a legitimação de um ordenamento
estatal, constituído na forma da lei, requerem-se, por isso, todas
as fundamentações e construções públicas que resgatarão esse
pleito como digno de ser reconhecido.
A representação e a
participação da sociedade na consolidação dos direitos adquiridos
na Constituição de 1988 se dão por meio da cidadania participativa
e da mobilização política que se utiliza também dos poderes
juridicamente. Assim, os direitos do homem variam conforme as
condições históricas e os interesses sociais. Segundo Bobbio
(2004, p. 18) “o que parece fundamental numa época histórica e
numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas
e culturas”.
A evolução do Estado de
Direito com o reconhecimento dos direitos individuais e dos direitos
sociais, evidenciou a discussão do direito à educação amparada no
princípio de igualdade, oportunizando assim, dignidade ao ser
humano. Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948,
foram tomadas medidas para garantir a proteção dos mesmos
internacionalmente, permitindo uma consolidação normativa que não
seja vulnerável e restrita a esfera constitucional. Logo, os
direitos humanos são reconhecidos universalmente, enquanto os
direitos fundamentais são reconhecidos e normatizados
constitucionalmente em cada Estado.
Os
direitos fundamentais são caracterizados em três gerações, que
são os direitos individuais, os direitos sociais e os direitos de
fraternidade. A primeira geração, os direitos fundamentais3
e políticos, impõem limite à ação do Estado, logo podemos
chamá-los de defesa. A segunda geração, os direitos sociais4,
econômicos e culturais, tem relação direta com a participação
estatal, procurando minimizar desigualdades e melhores condições de
vida. E finalmente na terceira geração, os direitos difusos rompem
com o indivíduo para atender a todos (o meio ambiente, a paz, entre
outros).
A educação em nosso
país é considerada subjetiva e sua garantia é concretizada nas
condições de oferta, nas condições pedagógicas, na gestão das
políticas públicas educacionais, em um currículo que respeite as
diversidades e também por meio de um financiamento que invista
satisfatoriamente nos diversos agentes e setores educacionais
(professores, profissionais que atuam educação – porteiros,
secretários, auxiliares administrativos, etc. – infra-estrutura
das instituições educativas, material didático, transporte
escolar, entre outros).
Apesar de toda legalidade
existente, a efetivação do direito à educação mostra-se
fragilizada, prova disso são os índices de evasão, repetência e
analfabetismo, dívida esta que não conseguimos superar apesar de
toda legislação vigente e também devido à ausência de uma
estrutura organizacional e política do Estado e de políticas
públicas capazes de efetivarem a oferta de uma educação digna e de
qualidade.
No que concerne ao
conceito de política pública, na literatura de forma geral, ele se
apresenta com várias definições, desde as mais simples às mais
complexas. Muller e Surel (2004) destacam que existe certa
dificuldade para se definir o que seria política pública. Para
eles, na literatura especializada de forma geral, as definições vão
desde as qualificações mínimas, quando se confere ao Estado o
papel de decidir ou não sobre as ações a serem realizadas, como
também apresentam até as definições mais completas quando a
política pública se apresenta como um programa de ação
governamental em um setor da sociedade ou mesmo em um espaço
geográfico.
Azevedo (2001, p. 5) nos
chama atenção ao destacar que a política pública “implica
considerar os recursos de poder que operam na sua definição e que
tem nas instituições do Estado, sobretudo na máquina
governamental, o seu principal referente”. Ou seja, é o Estado,
enquanto possuidor do poder de definir as ações públicas que serão
implementadas por meio de sua estrutura governamental, que coloca em
prática o que foi elaborado para determinado fim.
A partir dos elementos
citados anteriormente, levantamos o seguinte questionamento: Como
surgem as políticas de ação afirmativa para o ensino superior?
Inicialmente vamos buscar em Azevedo (2001), cujo referencial teórico
tem sintonia com a proposta de Muller e Surel (2004), a compreensão
de que o modelo das sociedades modernas e industrializadas se
apresenta de forma setorizada. A partir dessa divisão por setores,
percebemos como ocorre o processo em que se estabelecem as diretrizes
de uma política e como o Estado, stricto sensu, exprime um
modo específico de articulação e de normatização das diversas
demandas.
Segundo a autora, “há
um tipo de organização social que foi estabelecido a partir da
divisão social do trabalho, das especializações das funções e
das profissões, e dos diferentes tipos de atividades que
caracterizam a vida moderna” (AZEVEDO, 2001, p. 61). Ela destaca
que o surgimento de uma política setorial tem como ponto inicial a
presença de determinado problema para o setor específico, que, se
reconhecido pelo próprio Estado, deverá intervir para solucioná-lo.
Com
efeito, pode-se afirmar que um setor ou uma política pública para
um setor, constitui-se a partir de uma questão que se torna
socialmente problematizada. A partir de um problema que passa a ser
discutido amplamente pela sociedade, exigindo a atuação do Estado
(Ibid.).
Outra possibilidade do
surgimento da política pública está ligada diretamente aos grupos
que atuam e integram cada setor específico, pois conforme Azevedo
(2001, p. 62), os mesmos “vão lutar para que suas demandas sejam
atendidas e inscritas na agenda dos governos. E estas lutas serão
mais ou menos vitoriosas, de acordo com o poder de pressão daqueles
que dominam o setor em cada momento”.
A autora enfatiza ainda
que,
Na
sociedade, portanto, a influência dos diversos setores, e dos grupos
que predominam em cada setor, vai depender do grau de organização e
articulação destes grupos com ele envolvidos. Este é um elemento
chave para que se compreenda o padrão que assume uma determinada
política e, portanto, porque é escolhida uma determinada solução
e não outra, para a questão que estava sendo alvo do
problematização (Ibid., p. 63).
Desta
forma, fica evidente o papel dos diversos atores no processo de
construção da política pública setorial, que de acordo com o
nível de organização e articulação dos grupos, a política
deverá ser realizada ou não.
Muller e Surel (2004),
chamam a atenção para a importância do nível de organização
social na construção da política pública, eles destacam também a
importância dos segmentos envolvidos diretamente nos setores que
serão contemplados com a política pública.
A
construção das políticas públicas não é um processo abstrato.
Ela é, ao contrário, indissociável da ação dos indivíduos ou
dos grupos envolvidos, de sua capacidade de produzir discursos
concorrentes, de seus modos de mobilização. Ela depende, também,
da estrutura mais ou menos flutuante de suas relações e das
estratégias elaboradas nos contextos de ação definidos em especial
pelas estruturas institucionais, no interior das quais tomam lugar as
políticas públicas. Analisar a ação pública conduz, portanto,
necessariamente a uma reflexão sobre as características evolutivas
do espaço público e das dinâmicas de ação coletiva (MULLHER;
SUREL, 2004, p. 79).
A partir dos argumentos
evidenciados, é possível pressupor que uma política pública de
ação afirmativa para o ensino superior surge a partir de duas
possibilidades. A primeira está relacionada com a própria
problemática da inserção social de determinados grupos éticos,
alunos de escolas públicas, afrodescendentes, pessoas com
necessidades especiais, indígenas, índios-descendentes e
quilombolas nas universidades públicas. A segunda segue o mesmo
sentido, em que os diversos segmentos sociais organizados, que lutam
pela inserção dos afrodescendentes, alunos de escolas públicas,
pessoas com necessidades especiais, indígenas, índios-descendentes
e quilombolas nas políticas públicas se organizam e lutam para que
o próprio poder público possa construir políticas eficazes e que
possibilitem a inserção social.
2 AÇÕES AFIRMATIVAS NA EDUCAÇÃO SUPERIOR.
A expressão ação
afirmativa apareceu pela primeira vez, nos Estados Unidos, em um
decreto presidencial. Segundo o texto, nos contratos com o Governo
Federal,
o
contratante não discriminará nenhum funcionário ou candidato a
emprego devido a raça, credo, cor ou nacionalidade, e adotará uma
ação afirmativa para assegurar que os candidatos sejam empregados,
como também tratados durante o emprego, sem consideração a sua
raça, credo, cor ou nacionalidade (MENEZES, 2001, p. 88).
No Brasil, embora a
expressão ação afirmativa seja quase que invariavelmente associada
à experiência norte-americana, vista como algo que se aplica
exclusivamente aos negros e reduzida à política de cotas, a idéia
de dispensar um tratamento positivamente diferenciado a determinados
grupos, em função da discriminação de que são vítimas, já está
presente na legislação brasileira há muito tempo (desde a Lei dos
Dois Terços de 1930).
Uma leitura do princípio
constitucional da igualdade significaria o fim de muitos programas
sociais do Governo Federal, os quais discriminam negativamente quem
ganha acima de determinada quantia. A esse propósito, é oportuno a
posição do ministro Marco Aurélio Mello, para quem é necessário
resgatar as dívidas históricas para com as minorias. Ele afirma que
é
preciso buscar-se a ação afirmativa. A neutralidade estatal
mostrou-se nesses anos um grande fracasso; é necessário fomentar-se
o acesso à educação; urge contar-se com programa voltado aos menos
favorecidos, a abranger horário integral, de modo a tirar o menor da
rua, dando-se lhe condições que o levem a ombrear com as demais
crianças. O Estado tem enorme responsabilidade nessa área e pode
muito bem liberar verbas para os imprescindíveis financiamentos
nesse setor; pode estimular, mediante tal liberação, as
contratações. E o Poder Público deve, desde já, independentemente
da vinda de qualquer diploma legal, dar à prestação de serviços
por terceiros uma outra conotação, estabelecendo, em editais,
quotas que visem a contemplar as minorias (MELLO, 2001, p. 5).
E
nisto não há problema de inconstitucionalidade, já que
a
Carta agasalha amostragem de ação afirmativa, por exemplo, no
artigo 7º, inciso XX, ao cogitar da proteção de mercado quanto à
mulher, e ao direcionar a introdução de incentivos; no artigo 37,
inciso III, ao versar sobre a reserva de vagas – e, portanto, a
existência de quotas – nos concursos públicos, para os
deficientes; no artigo 170, ao dispor sobre as empresas de pequeno
porte, prevendo que devem ter tratamento preferencial; no artigo 227,
ao emprestar também tratamento preferencial à criança e ao
adolescente (Ibid., p. 6).
Assim, a introdução das
políticas públicas de ação afirmativa, de criação pioneira nos
EUA, representou, em essência, a mudança de postura do Estado, que
em nome de uma suposta neutralidade, aplicava suas políticas
governamentais indistintamente, ignorando a importância de fatores
como sexo, raça, cor e origem nacional. Nessa nova postura, passa o
Estado a levar em conta tais fatores no momento de contratar seus
funcionários ou de regular a contratação por outrem, ou ainda no
momento de regular o acesso aos estabelecimentos educacionais.
Logo, ao invés de
conceber políticas públicas de que todos seriam beneficiários,
independentemente da sua raça, cor ou sexo, o Estado passa a
considerar esses fatores na implementação das suas decisões, não
para prejudicar quem quer que seja, mas para evitar que a
discriminação, a qual inegavelmente tem um fundo histórico e
cultural, e não raro se subtrai ao enquadramento nas categorias
jurídicas clássicas, termine por perpetuar as iniqüidades sociais.
Atualmente, as ações
afirmativas podem ser definidas como
um
conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório,
facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à
discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de
origem nacional, bem como para corrigir ou mitigar os efeitos
presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo
a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens
fundamentais como a educação e o emprego (GOMES, 2005, p. 53).
A noção mais completa
acerca do enquadramento jurídico e doutrinário das ações
afirmativas, coube, no Direito Público do Brasil, a professora
Carmen Lúcia Antunes Rocha, classificando-as como a mais avançada
tentativa de concretização do princípio jurídico da igualdade, ao
afirmar que
a
definição jurídica objetiva e racional da desigualdade dos
desiguais, histórica e culturalmente discriminados, é concebida
como uma forma para se promover a igualdade daqueles que foram e são
marginalizados por preconceitos encravados na cultura dominante na
sociedade. Por esta desigualação positiva promove-se a
igualação jurídica efetiva; por ela afirma-se uma fórmula
jurídica para se provocar uma efetiva igualação social, política,
econômica no e segundo o Direito, tal como assegurado formal e
materialmente no sistema constitucional democrático. A ação
afirmativa é, então, uma forma jurídica para se superar o
isolamento ou a diminuição social a que se acham sujeitas as
minorias (ROCHA, 1996 apud GOMES, 2005, p. 54) [grifos do autor].
Esta criação
jurídico-político-social refletiria ainda, segundo a autora, em uma
mudança comportamental dos juízes constitucionais de todo o mundo
democrático do pós-guerra, os quais teriam se conscientizado
da necessidade de uma transformação na forma de se conceber e
aplicar os direitos, especialmente aqueles listados entre os
fundamentais. Não bastavam as letras formalizadoras das garantias
prometidas; era imprescindível instrumentalizarem-se as promessas
garantidas por uma atuação exigível do Estado e da sociedade.
Nesse sentido, a ação
afirmativa emergiu como a face construtiva e construtora do novo
conteúdo a ser buscado no princípio da igualdade jurídica. O
Direito Constitucional, posto em aberto, mutante e mutável para se
fazer permanentemente adequado às demandas sociais, não podia
persistir no conceito estático de um direito de igualdade pronta,
realizado segundo parâmetros históricos eventualmente ultrapassados
(ROCHA, 1996). Pois o conteúdo, de origem bíblica, de tratar
igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que se
desigualam, sempre lembrado como sendo a essência do princípio da
igualdade jurídica, encontrou uma nova interpretação no
acolhimento jurisprudencial concernente à ação afirmativa.
Segundo essa nova
interpretação, a desigualdade que se pretende e se necessita
impedir para se realizar a igualdade no Direito não pode ser
extraída apenas no momento em que se tomam as pessoas postas em dada
situação submetida ao Direito, mas que se deve atentar para a
igualdade jurídica a partir da consideração de toda a dinâmica
histórica da sociedade, para se focalizar e retratar não apenas um
instante da vida social, desvinculada da realidade histórica de
determinado grupo social. Há que se ampliar o foco da vida política
em sua dinâmica, cobrindo o espaço histórico que se reflete ainda
no presente, propiciando no agora, desigualdades que nascem de
preconceitos passados, e não de todo extintos. A discriminação de
ontem pode ainda tingir a pele que se vê de cor diversa da que
predomina entre os que detêm direitos e poderes hoje (Ibid.).
Na área da educação,
as ações afirmativas aparecem como uma das principais iniciativas,
que ganhou o centro do debate com a reserva de vagas/cotas para
estudantes da escola pública, afrodescendentes, pessoas com
necessidades especiais, indígenas, índios-descendentes e
quilombolas nas universidades públicas. Em consonância com o
governo de FHC, o governo atual vem aprofundando uma série de
reformas, inclusive educacionais, entre elas a reforma universitária,
na qual se encontram inseridas as ações afirmativas (reserva de
vagas/cotas), que são definidas pelo Ministério da Educação –
MEC (BRASIL, 2009) como sendo medidas especiais e temporárias
tomadas pelo Estado, com o objetivo de eliminar desigualdades
raciais, étnicas, religiosas, de gênero e outras, historicamente
acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidade e tratamento, bem
como compensar perdas provocadas pela discriminação e
marginalização.
Assim, nos últimos anos,
os debates sobre a educação têm colocado um desafio crucial
relativo à possibilidade de compreensão dos cenários referentes às
políticas públicas e às práticas que definem a sociedade
brasileira, em seu processo civilizatório, como democrática,
inclusiva e plural. Nesse contexto, a adoção das políticas
afirmativas, vem ocupando uma posição significativa e crescente no
cenário educacional brasileiro. Pois no
plano
da adoção de políticas públicas, o importante não é procurar
fixar-se no terreno escorregadio da discussão se determinado
indivíduo é ou não é branco, negro, indígena, mestiço, etc. com
base em um critério ou em outro. Em vez disso, talvez seja mais
proveitoso e democrático desestabilizador dos preceitos normativos
preconceituosos, promover a valorização e as potencialidades da
diversidade étnico-racial presente no complexo da sociedade
brasileira, reconhecendo a enorme gama de meios e alternativas
mediante as quais seus diferentes, polifônicos e caleidoscópios
contingentes humanos podem (re)definir a si mesmos e aos demais,
continuamente (JUNQUEIRA, 2007, p. 23).
Essa compreensão
evidencia um posicionamento político, ético e epistemológico, na
medida em que educação, multiculturalismo e inclusão social são
tomados como referenciais constitutivos do pensar e agir da
universidade, são tidos como pautas político-pedagógicas,
sobretudo, pela possibilidade de contribuir para a superação das
formas conservadoras e discriminatórias, no que tange às questões
raciais, e outras práticas excludentes, como, por exemplo, de
gênero, de orientação sexual e classe social.
Logo, justifica-se a
adoção das medidas de ação afirmativa com o argumento de que esse
tipo de política pública seria apta a atingir uma série de
objetivos que restariam normalmente inalcançados caso a estratégia
de combate à discriminação se limitasse à adoção, no campo
normativo, de regras meramente proibitivas de discriminação. Ou
seja, não basta proibir, é preciso também promover, tornando
rotineira a observância dos princípios da diversidade e do
pluralismo, de tal sorte que se opere uma transformação no
comportamento e na mentalidade coletiva, que são, como se sabe,
moldados pela tradição, pelos costumes, em suma, pela história.
3 COTAS PARA ÍNDIOS NA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS – UEA.
A
população indígena do Amazonas é de 113.391, dos quais 18.783
índios residem em áreas urbanas, e destes, 7.8935
indígenas residem em Manaus. As estimativas feitas pela Coordenação
das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB e
Fundação Estadual de Populações Indígenas do Amazonas – FEPI,
variam de 15.000 a 25.000 indígenas vivendo em Manaus, mas tais
estimativas são as mesmas há vários anos.
O certo é que a
população indígena de Manaus está dispersa pela cidade e são
provenientes de vários municípios do Amazonas e até de outros
Estados. As principais etnias desses povos, segundo o CIMI (2008),
são: Tikuna, Kokama, Cambeba (Região do Alto e Médio Solimões),
Tukano, Dessano, Tariano, Baniwa, Baré, Piratapuia Wanana, (Região
do Alto Rio Negro), Deni (Região do Juruá), Sateré-Mawé,
Munduruku, Mura (Região do Baixo Amazonas) e Apurinã (Região do
Purus). Estes povos indígenas estão reunidos em comunidade e
organizações: CIOAB, Associação de Mulheres Indígenas – AMISM,
União dos Povos Indígenas de Manaus – UPIM, Comunidade Apurinã,
Comunidade Deni, Comunidade Kokama, Movimento dos Estudantes
Indígenas do Amazonas – MEIAM, dentre outros.
Esta constatação de
índios vivendo em zonas urbanas não é apenas uma realidade
brasileira, mas também latino-americana. E muitos destes grupos
indígenas que vivem em cidades, metrópoles, ou meio urbano,
portanto, fora de seus locais de origem, não são reconhecidos
enquanto indígenas, seja por entidades indigenistas ou pelo próprio
poder público. No entanto, para Laraia (1980), certas vozes do poder
público que insistem em não aceitar a legitimidade de alguns
líderes sob a alegação de que não são mais índios uma vez que
já freqüentaram uma escola e conhecem a sociedade dos não-índios,
não tem sustentação, pois o sentimento de lealdade e a identidade
tribal não podem ser destruídos por um período efêmero de
escolaridade ou de vida urbana.
Na terra manauara, esses
índios vivem em bairros de periferia, sem acesso a direitos e
serviços públicos básicos, principalmente de saúde e educação.
Isto é comprovado nos dados do Educacenso (2007) do Ministério da
Educação, onde Manaus registra o número de 781 escolas, sendo que
apenas uma destas, é escola indígena. É imprescindível a
ampliação do acesso escolar diferenciado para as comunidades
indígenas, possibilitando-lhes uma educação diferenciada e o
respeito às características étnicas e sócio-culturais. Nesse
contexto, a formação de professores indígenas emerge como um dos
elementos importantes para os rumos da educação escolar indígena
no Amazonas.
Uma
das instituições de educação superior no Estado do Amazonas é a
Universidade do Estado do Amazonas – UEA, instituição de ensino
vinculada ao Governo do Estado, a qual teve sua criação autorizada
pela Lei Estadual nº 2.637, de 12
de janeiro
de 2001
e instituída pelo Decreto Estadual nº 21.666, de 01 de fevereiro de
2001. Atualmente a UEA possui na capital do Estado do Amazonas as
seguintes unidades acadêmicas: Escola Normal Superior – ENS,
Escola Superior de Tecnologia – EST, Escola Superior de Ciências
da Saúde – ESA, Escola Superior de Artes e Turismo – EAT e
Escola Superior de Ciências Sociais – ESO.
No
interior do Estado estão os Centros de Estudos Superiores,
localizados na cidade de Itacoatiara, Parintins, Tabatinga e Tefé; e
também os Núcleos de Estudos Superiores, nos municípios de Boca do
Acre, Carauari, Coari, Eirunepé, Humaitá, Lábrea, Manacapuru,
Manicoré, Maués, Presidente Figueiredo e São Gabriel da Cachoeira.
As
matrículas efetivas em curso de graduação na Universidade do
Estado do Amazonas totalizaram, no ano de 2008, 21.129 alunos; sendo
que deste valor, 48,62% dos discentes estão matriculados em cursos
da capital. A Escola Normal Superior – ENS oferece, em Manaus,
cursos de licenciatura plena em Biologia, Geografia, Letras,
Matemática, Normal Superior e Pedagogia; atendendo a 1.489 alunos.
Em
31 de maio de 2004, o então governador do Estado do Amazonas,
sancionou a Lei Estadual nº 2.894, a qual dispõe sobre as vagas
oferecidas em concursos vestibulares pela UEA, determinando, dentre
outras ações, a reserva
a
partir do vestibular de 2005, de um percentual de vagas, por curso,
no mínimo igual ao percentual da população indígena na composição
da população amazonense, para serem preenchidas, exclusivamente,
por candidatos pertencentes às etnias indígenas localizadas no
Estado do Amazonas (Art. 5º).
Esta
legislação é entendida enquanto política social de ação
afirmativa voltada para alcançar a igualdade de
oportunidades entre as pessoas, distinguindo e beneficiando grupos
afetados por mecanismos historicamente discriminatórios, objetivando
alterar, positivamente, a situação de
desvantagem desses grupos. Logo, o ingresso de alunos indígenas pelo
sistema específico de quotas iniciado em 2005, terá vigência até
que a Lei Estadual nº 2.894 seja revogada.
O
número de vagas oferecidas para os candidatos pertencentes às
etnias indígenas, no período de 2005 a 2008, totalizaram 660, porém
apenas 321 foram efetivamente preenchidas, e deste total, 55,76% dos
alunos indígenas matriculados estão realizando cursos na capital.
Os discentes indígenas, os quais ingressaram pela quota específica,
e que cursam licenciatura plena na ENS somam 25 alunos, representando
assim, 7,79% de todos os alunos indígenas da Universidade do Estado
do Amazonas que ingressaram pelo regime de cota e 13,97% dos
discentes da UEA matriculados na capital pelas quotas indígenas.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS.
Os direitos sociais
passaram a ser paulatinamente garantidos por meio das normas
internacionais e constitucionais. Ser sujeito de direitos é
indissociável de sua condição social, de sua existência humana
configurada nas relações históricas. Contudo a não apropriação
do mesmo pela sociedade possibilita que as segregações sociais
permaneçam. A violação dos direitos, inclusive o direito à
educação, inviabiliza a aquisição de outros direitos,
comprometendo a condição de ser do homem.
Do contrário quando o
homem compreende e tem consciência civil, política e social ao
lutar pelos seus direitos, busca sua emancipação social. Para
Jacobi (1990) a relação entre demandas sociais e políticas
públicas não é meramente casual, sendo que diversos fatores atuam
como determinantes na emergência destas demandas, assim como na
formulação das políticas.
No entanto é diante da
crise do capitalismo e com os desdobramentos na intervenção do
Estado, para garantir o processo de produção e reprodução do
capital, que se desencadearam uma série de ações no âmbito da
educação. Entre estas ações se destaca as políticas de ações
afirmativas, em particular a reserva de vagas/cotas nas universidades
públicas brasileiras que aparecem no bojo das políticas de
democratização da educação superior brasileira.
Neste sentido as
políticas públicas de ação afirmativa, em particular a reserva de
vagas/cotas nas universidades públicas, estão fundamentadas na
compreensão da “inclusão excludente”, e encontram-se
articuladas as políticas para adaptação ao processo de
mundialização do capital e da educação, contribuindo, por meio da
integração das reivindicações, para a colaboração entre as
classes sociais e não mais para o confronto.
Assim, as ações
afirmativas devem se constituir em um conjunto de políticas públicas
e práticas interdependentes e complementares, relativas a
experiências e vivências sócio-políticas e culturais dos/as
atores sócio-educacionais, na contemporaneidade. Esse enfoque se
coloca avesso às simplificações, ao tempo em que sublinha a
possibilidade de compreendermos ações afirmativas, enquanto uma
construção histórica, sócio-cultural em movimento, conforme
sugere a perspectiva crítica da complexidade.
Por conseguinte, ao se
abordar as ações afirmativas e a democratização do ensino
superior, enfoca-se, diretamente, a problemática do acesso e
permanência de estudantes oriundos das escolas públicas, de
afro-descendentes, de índios e índio-descendentes, o sistema de
reserva de vaga, que ora ocupa o debate dos movimentos sociais, das
políticas institucionais e das políticas públicas, constituindo
como uma questão importante no que tange à criação do espaço
necessário para a formulação e implementação de políticas de
promoção da igualdade racial, uma vez que, no Brasil os
preconceitos e a discriminação racial não foram zerados,
persistindo em superposição a exclusão étnico-racial e social.
Assim, as ações
afirmativas têm como objetivo não apenas coibir a discriminação
do presente, mas, sobretudo, eliminar os efeitos persistentes
(psicológicos, culturais e comportamentais) da discriminação do
passado, que tendem a se perpetuar. Esses efeitos se revelam na
chamada discriminação estrutural, presentes nas desigualdades
sociais entre grupos dominantes e grupos marginalizados.
Nesse sentido, o efeito
mais visível dessas políticas, além do estabelecimento da
diversidade e representatividade propriamente ditas, é o de eliminar
as barreiras invisíveis que emperram o avanço de negros, mulheres,
indígenas, quilombolas, independentemente da existência ou não de
política oficial tendente a subalternizá-los. Argumenta-se
igualmente que o pluralismo que se instaura em decorrência das ações
afirmativas trará inegáveis benefícios para os próprios países
que se definem como multirraciais e que assistem, a cada dia, ao
incremento do fenômeno do multiculturalismo, pois agir
afirmativamente é também uma forma de zelar pela pujança de
qualquer país.
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Trimestral de Direito Público nº 15, 1996.
1
O Estado Liberal é um desdobramento do Estado Moderno, tendo fases
e interesses distintos que dependerão do desenvolvimento econômico
de cada lugar.
2
Segundo Dallari (1998) determinados movimentos político-sociais
foram responsáveis pela construção do Estado Democrático, entre
eles a Revolução Inglesa, influenciada pelo pensamento de Locke;
a Revolução Americana com a Independência das treze colônias e a
Revolução Francesa, com influência de Rousseau, expressas na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
3
Tais direitos foram consagrados no Bill of rights of Virginia, 1776,
fruto da Revolução Americana, na Declaração Francesa dos
direitos do homem e do cidadão e na Constituição Americana de
1791.
4
Marcos desta geração são a Constituição do México em 1917 e a
Constituição Alemã de Weimar de 1919.
5
Censo Populacional de 2000 do IBGE.
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