Publicado em
07/06/2010 por bobbiobrasil
A era dos direitos,
Norberto Bobbio, Editora Campus, Rio de Janeiro,1992
Norberto Bobbio, nascido em Turim em 1909 e morto na mesma cidade em 2004, foi um dos maiores filósofos políticos, além de historiador do pensamento político de uma cultura italiana, que por si mesma é rica neste campo do conhecimento. Para além de ter sido uma testemunha importante das três principais ideologias do século XX: o nazi-fascismo, o comunismo e a democracia liberal. Sistemas políticos e concepções doutrinárias que acabaram por resultar na divisão do mundo em dois blocos políticos, militares e ideológicos que subsistiu até 1989, com a queda do muro de Berlim.
A
própria cultura política italiana foi representativa no confronto
de idéias entre três pensadores das referidas correntes: o filósofo
Giovanni Gentile (1875-1944), que apoiou o regime fascista; o
historiador Benedetto Croce (1866-1952), personagem maior do
liberalismo italiano e senador vitalício da república; e o pensador
marxista Antonio Gramsci (1891-1937), escritor e líder do partido
comunista. Desde cedo Bobbio colocou-se ao lado da resistência
antifascista, rejeitando Gentile, mas tentando realizar a síntese
entre os outros dois: Croce e Gramsci. Sobre a tradição da
filosofia política italiana, vale remarcar que desde fins da Idade
Média, se refletem na Itália as questões mais essenciais deste
campo da filosofia, que tem como fim investigar a legitimação e a
justificação do Estado e do governo. Desde os limites da
organização do Estado frente ao indíviduo, com Thomas Hobbes, John
Locke, Montesquieu e Rousseau; passando pelas relações gerais entre
sociedade, Estado e moral, com Maquiavel, Augusto Comte e Antonio
Gramsci; as relações entre a economia e política, com Marx, Engels
e Max Weber; o poder como constituidor do indivíduo, com Foucault;
até as questões sobre a liberdade, em Benjamin Constant, John
Stuart Mill, Isaiah Berlin, Hannah Arendt, Raymond Aron e o próprio
Norberto Bobbio; as questões sobre justiça e Direito, com Kant,
Hegel, John Rawls e Jürgen Habermas; e as questões sobre
participação e deliberação, com Carole Pateman, Habermas, Joshua
Cohen.
Mas
voltando a esta obra em epígrafe, a era dos direitos percorre os
antecedentes do principal marco de conscientização dos direitos
humanos e difusos, que foi a Declaração Universal dos Direitos do
Homem, assinada em Paris em 1948, depois do cataclisma da Segunda
Grande Guerra. Logo na introdução, Bobbio nos assegura que os
direitos sempre existiram, mesmo em regimes feudais, onde súditos,
muito antes do advento dos cidadãos, já tinham direitos à
segurança da nobreza. No capítulo sobre os fundamentos dos direitos
do homem, Bobbio retorna a Kant quando define a liberdade como o mais
fundamental entre os direitos fundamentais da vida, da propriedade e
da justiça, esta última a própria garantia da liberdade. Reafirma
também a precedência dos direitos civis e políticos diante dos
direitos econômicos e sociais e acompanha Marshal na definição
historiográfica obrigatória dos direitos de primeira (civis),
segunda (políticos), terceira (econômicos e sociais) e quarta
gerações (direitos difusos do meio-ambiente e da genética). Nesta
perspectiva há que se ressaltar a corajosa tomada de posição de
Bobbio quando afirma: “o problema fundamental em relação aos
direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de
protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas
políticos”.
Se
mesmo os direitos fundamentais são relativizados pela história,
como a menor importância que se passou a dar ao direito da
propriedade, desde o século XIX, em face da maior importância ao
direito da vida, entendendo-se aí uma ameaça ao direito mais
intrínseco à humanidade, que é a liberdade, como não argüir que
a garantia fundamental de todos os direitos é a justiça e o estado
de direito? Não serão estas as “verdades evidentes em si mesmas”
a que se referia Jefferson na declaração de independência
americana de 1776? Bobbio retorna a Kant que identifica a liberdade
com autonomia, o direito natural do homem de obedecer apenas à lei
de que ele mesmo é autor e, neste sentido, obrigar outros à esta
mesma faculdade moral do homem, a este direito inato que lhe é
transmitido pela sua própria natureza. A opção neste caso pela
determinação do coletivo pelo individual é evidente, uma vez que a
cada cidadão, um juízo e um voto, fundamento da própria
democracia. Se nos estados despóticos, os indivíduos só têm
deveres e quase nenhum direito e nos estados monárquicos os
indivíduos só têm direitos privados, nos estados de direito os
indivíduos vão dispor de direitos privados e também públicos,
pois estes são estados de cidadãos. Cidadãos com plenos direitos
garantidos pelo estado e, entre os quais, o direito de questionar o
próprio estado, transformando-os desta forma em cidadãos do mundo.
Se na Pax Perpetua, Kant afirma que se trata de um bem forçosamente
universal, da mesma forma a plena cidadania é planetária e para
além do próprio Estado. Antes de Kant, Locke já garantia a
liberdade como igualdade diante da lei que, por sua vez, é a única
forma de se garantir a segurança e a vida diante de poderes
ilimitados do próprio Estado. Aqui, vale lembrar a citação de
Milton Friedman, economista americano prêmio Nobel de 1976: a
sociedade que coloca a igualdade à frente da liberdade irá terminar
sem igualdade e sem liberdade. Quando Kant define a liberdade numa
passagem da Pax Perpetua como “a liberdade jurídica e faculdade de
só obedecer a leis externas às quais pude dar o meu assentimento”,
teoriza sobre a Revolução Francesa e liberta definitivamente o
homem de toda forma de poder patriarcal. Tomas Paine, grande
articulador da revolução americana, em seu livro Common Sense
(1776), já expressa a concepção de que a sociedade é boa por
natureza e o Estado um mal necessário: “a sociedade é produzida
pelos nossos carecimentos; o governo, pela nossa maldade. A primeira
promove a nossa felicidade positivamente, unindo em conjunto os
nossos afetos; o segundo, negativamente, freando nossos vicios”.
Só a
partir da Declaração de Independência americana é que os direitos
do homem prevalecem sobre os deveres diante do Estado. Até 1776,
seguindo a tradição dos códigos morais de Hamurabi, da Torá e das
Doze Tábuas, as regras codificadas são mais das obrigações do que
dos direitos. Mesmo os artigos da Carta Magna, de 1215, e do Bill of
Rights, de 1689, estabelecem direitos concedidos pelo soberano, o que
é totalmente inverso do espírito da Declaração americana que
afirma uma democracia como soberania dos cidadãos, a partir da
afirmação do princípio da maioria e da vontade/voto individual. Se
a concepção individualista da sociedade for eliminada, não será
mais possível justificar a democracia como uma boa forma de governo.
No
último capítulo, Bobbio faz uma profissão de fé no progresso
iluminista do Estado democrático de direito quando analisa a
supremacia da tolerância mesmo em face da abolição crescente da
pena de morte como direito justificado e razão de Estado.
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