O objetivo deste artigo é apresentar o conceito de esfera pública jurídica nas produções de Jürgen Habermas e exemplificá-lo através do mecanismo institucional das audiências públicas do Supremo Tribunal Federal, tratando, ao final, da audiência sobre a constitucionalidade das cotas raciais para ingresso no ensino superior. Apresentamos o conceito habermasiano buscando explicar uma arena institucional com um diferente potencial democrático deliberativo no interior do Judiciário, bem como melhor compreender as trocas de energia social que podem influenciar posicionamentos nos centros decisórios jurisdicionais. INTRODUÇÃO
RESENHA
INTRODUÇÃO
A
partir do advento da Constituição Federal de 1988, iniciou-se no
Brasil um período de aprofundamento democrático mediante o aumento
de participação social em diversas instituições.
O
Judiciário, apesar de ser considerado um espaço reservado aos
especialistas e técnicos em direito, também foi alvo desse
movimento. Novas modalidades de participação social foram
praticadas neste período para enfrentar as limitações das formas
jurídicas diante de questões sociais complexas e do tradicional
déficit democrático dessa instituição.
Uma
das formas de conectar o Judiciário com a sociedade tem sido a
utilização do instrumento jurídico das audiências públicas no
âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF). Nestes procedimentos,
representantes da sociedade civil envolvidos nas demandas por
direitos podem sustentar seus argumentos e posicionamentos sobre o
caso discutido...
Neste
sentido, as audiências públicas podem ser consideradas como uma
associação formadora da opinião, em torno da qual pode se
cristalizar uma esfera pública jurídica. Essa associação se forma
no interior do Estado democrático de direito, e deve garantir a
participação e argumentação de acordo com seus pressupostos,
evitando ao máximo as desigualdades de participação sob pena de
não cumprir seu fundamento de existência.
A
esfera pública jurídica seria um espaço de conexão direta das
instituições jurídicas com a sociedade civil no centro sistêmico,
uma área de encontro em que ocorrem trocas entre o sistema e o mundo
da vida - considerados por Habermas como tradicionalmente
desacoplados. Essas trocas ocorreriam pelas lutas sociais que visam
inserir seus pleitos no campo do direito.
As
audiências públicas no Supremo Tribunal Federal
A
realização da primeira audiência pública no STF ocorreu em 20 de
abril de 2007. Pela primeira vez em mais de 180 anos de história, a
Corte mais alta do Judiciário brasileiro abriu suas portas e seus
microfones e convidou a sociedade civil para o debate, reunindo mais
de vinte especialistas e representantes de setores sociais
interessados na constitucionalidade de pesquisas científicas com
células-tronco embrionárias
(Marona
e Rocha, 2014,
pp. 56-57).
A
convocação de uma audiência pública no âmbito das ações de
competência exclusiva do STF remete à publicação da Lei nº
9.868/99, que dispõe sobre o processo e julgamento da Ação Direta
de Inconstitucionalidade (ADI) e da Ação Declaratória de
Constitucionalidade (ADC) perante o órgão, e em seu art. 9º, §1º,
possibilita ao presidente da Corte, ou ao ministro-relator das ações
de caráter objetivo, convocar audiências públicas para contribuir
com os ministros/as em seu julgamento. Também há tal previsão na
Lei nº 9.882/99, que dispõe sobre o processo e julgamento da ADPF
em seu art. 6º, §1º. Em 2009, o procedimento das audiências
públicas foi regulamentado no próprio Regimento Interno do STF, em
seu art. 13, incisos XVII e XVIII, art. 21, incisos XVII e XVIII, e
art. 154, este último dispondo sobre o procedimento das audiências
públicas...
Apesar
das deficiências de um modelo ainda em aperfeiçoamento, os
participantes do processo contribuem fornecendo informações
diversificadas para a abordagem dos temas. O atual exemplo das
audiências públicas no STF demonstra que no órgão mais alto do
Judiciário há algum espaço para o aumento de sua “porosidade”,
para a inserção de pleitos sociais tematizados pelos próprios
envolvidos e interessados na discussão, com a possibilidade de
influência destes argumentos neste centro decisório e no debate
público nacional sobre o tema em análise.
As
audiências públicas, embora destinadas a esclarecer questões
técnicas, administrativas, políticas, econômicas e jurídicas, se
tornaram, de acordo com o entendimento da Corte, um instrumento de
legitimidade democrática, não tanto pelos argumentos manifestados,
mas por propiciar a participação de atores que, de algum modo,
representariam a sociedade na solução jurídica no controle da
constitucionalidade, reduzindo o isolamento do Tribunal e promovendo
sua aproximação com a sociedade civil, os movimentos sociais e a
comunidade científica.
A
esfera pública jurídica pode ser concebida como um espaço aberto
em uma área tradicionalmente pouco democrática, permitindo a
participação de atores sociais que normalmente estariam fora do
Judiciário e possuiriam pouco ou nenhum poder na deliberação sobre
suas demandas por direitos. Uma esfera pública jurídica com
intenções críticas e funções políticas ativas deve estar forte
e intimamente conectada com o centro sistêmico, no sentido de que
seus procedimentos influenciariam as decisões institucionais e
alterariam a realidade jurídico-social, sendo esse o potencial
emancipatório deste espaço.
Para
demonstrar na realidade jurídica brasileira a existência e as
características de um espaço institucional como o descrito,
apresentamos uma breve análise da audiência pública sobre cotas
étnico-raciais realizada no STF durante o julgamento da ADPF nº
186,
que culminou no reconhecimento de políticas afirmativas pleiteadas
por um grupo social historicamente marginalizado no Brasil, ao
considerar constitucional a inserção das cotas raciais em processos
seletivos para ingresso no ensino superior.
O
motivo da escolha desta audiência pública específica é que nela
encontramos uma luta histórica por direitos, sobre questões
estruturais do Brasil que levaram inevitavelmente à tematização de
experiências de desrespeito, argumentos de reconhecimento e
redistribuição e, principalmente, à discussão de que as
desigualdades sociais brasileiras estariam diretamente conectadas com
a existência de um racismo estruturante de nossa sociedade. Conforme
a análise de Adilson José Moreira sobre o discurso jurídico e sua
apropriação para legitimação de narrativas culturais:
Ainda
conforme Santos, o direito pode alterar as estruturas de poder, assim
como também tornar mais rígidas as trocas entre poderes e
reproduzir a exclusão. O caso interpretado a partir da filosofia
habermasiana pode pontuar a contribuição do direito para a
igualdade nas relações de poder, visando reduzir a exclusão social
ou elevando a possibilidade e a qualidade da inclusão e da luta
política pela democratização da possibilidade de coordenar os fins
sociais, e consequentemente diminuir o monopólio estatal sobre tal
coordenação - em outras palavras, a luta reflete em um pleito por
desenhos institucionais alternativos, e o direito pode ser utilizado
como um recurso para fins emancipatórios (2003).
Portanto,
nosso principal objetivo foi demonstrar a importância e o potencial
de influência da argumentação de atores sociais envolvidos na
causa em discussão em um centro decisório jurídico aberto para
recebê-los. Observa-se também a importância da tematização de
questões tradicionalmente “não jurídicas” traduzidas para a
forma jurídica e, no caso estudado, para a discussão sobre a
constitucionalidade de uma ação afirmativa. Um Judiciário
considerado democrático deve ser aberto aos atores sociais e ter
instrumentos para traduzir razões do mundo da vida para o código do
direito, aprofundando a conexão entre as instituições e a
realidade social.
CONCLUSÃO
Buscamos
demonstrar neste artigo que a construção teórica sobre as
características do espaço das audiências públicas do STF ligado
ao referencial teórico habermasiano da esfera pública jurídica
indicam o funcionamento deste novo mecanismo institucional,
permitindo a troca de energias sociais tradicionalmente ausentes em
uma arena jurídica como o STF.
Segundo
Marcos Nobre, para Habermas, o procedimento é o formato do processo
em questão - que seria “capaz de permitir o surgimento do maior
número possível de vozes, de alternativas de ação e de formas de
vida, garantindo seu direito de expressão e de participação”
(2008, p. 18), e que não teria conteúdo definido e nem poderia ser
guiado por concepções já determinadas; sua forma é apenas
regulamentada.
A
deliberação democrática indica “quem” deve participar e
“como”, mas não “qual” seria o preenchimento correto dos
conteúdos, sobre “o que” deve ser decidido. Os procedimentos de
audiências públicas não fornecem nenhuma orientação e nem
garantem o “conteúdo” das deliberações e como estas podem
afetar as decisões. A importância central não recai sobre a pauta
debatida, tanto no sentido do tema (cotas, aborto, drogas ilícitas,
saúde pública, questões ambientais etc.) como no sentido dos tipos
de argumentos utilizados pelos participantes (históricos,
científicos, jurídicos etc.), mas sim no mais importante, o próprio
procedimento democrático e seu potencial de responder à altura das
demandas sociais.
Nas
audiências públicas, as deliberações podem ser consideradas
exemplos de formação democrática da vontade no interior de uma
arena formal e de que há, em alguma medida, uma esfera pública
jurídica aberta e atuante em intermediar as demandas sociais e as
decisões dos centros formais, permitindo aos mais diversos atores
sociais tradicionalmente localizados às margens dos sistemas
decisórios utilizá-la para ampliar e/ou efetivar direitos.
A
análise dessas experiências particulares é fundamental para
compreender a extensão da legitimidade democrática do Judiciário,
sendo que não basta apenas observar o potencial emancipatório do
direito ou definir princípios de justiça abstratos; é preciso
observar as instituições e procedimentos existentes a fim de
diagnosticar e compreender quais práticas podem ser consideradas
democráticas e que possuem potencial de aumentar a participação
social mediante as audiências públicas e a “porosidade” do
Judiciário para captar seus pleitos.
Apesar
da construção teórica, o elemento mais importante deste trabalho
se constitui pelas pessoas que lutam por direitos. A energia social
produzida por experiências de desrespeito, por injustiça e pela
organização de movimentos sociais em esferas públicas informais
possui potencial emancipatório quando há espaço para se infiltrar
nos centros de decisão. Esses procedimentos são significativos aos
grupos e indivíduos socialmente marginalizados, que nunca tiveram
voz nas instituições para discutir suas próprias experiências e
as maneiras que acreditam ser justas para sanar esses problemas,
visando uma mudança social efetiva.
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