segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

O conceito de esfera pública jurídica e a audiência pública sobre cotas raciais no Supremo Tribunal Federal.


O objetivo deste artigo é apresentar o conceito de esfera pública jurídica nas produções de Jürgen Habermas e exemplificá-lo através do mecanismo institucional das audiências públicas do Supremo Tribunal Federal, tratando, ao final, da audiência sobre a constitucionalidade das cotas raciais para ingresso no ensino superior. Apresentamos o conceito habermasiano buscando explicar uma arena institucional com um diferente potencial democrático deliberativo no interior do Judiciário, bem como melhor compreender as trocas de energia social que podem influenciar posicionamentos nos centros decisórios jurisdicionais. INTRODUÇÃO

RESENHA

INTRODUÇÃO
A partir do advento da Constituição Federal de 1988, iniciou-se no Brasil um período de aprofundamento democrático mediante o aumento de participação social em diversas instituições.
O Judiciário, apesar de ser considerado um espaço reservado aos especialistas e técnicos em direito, também foi alvo desse movimento. Novas modalidades de participação social foram praticadas neste período para enfrentar as limitações das formas jurídicas diante de questões sociais complexas e do tradicional déficit democrático dessa instituição.
Uma das formas de conectar o Judiciário com a sociedade tem sido a utilização do instrumento jurídico das audiências públicas no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF). Nestes procedimentos, representantes da sociedade civil envolvidos nas demandas por direitos podem sustentar seus argumentos e posicionamentos sobre o caso discutido...

Neste sentido, as audiências públicas podem ser consideradas como uma associação formadora da opinião, em torno da qual pode se cristalizar uma esfera pública jurídica. Essa associação se forma no interior do Estado democrático de direito, e deve garantir a participação e argumentação de acordo com seus pressupostos, evitando ao máximo as desigualdades de participação sob pena de não cumprir seu fundamento de existência.
A esfera pública jurídica seria um espaço de conexão direta das instituições jurídicas com a sociedade civil no centro sistêmico, uma área de encontro em que ocorrem trocas entre o sistema e o mundo da vida - considerados por Habermas como tradicionalmente desacoplados. Essas trocas ocorreriam pelas lutas sociais que visam inserir seus pleitos no campo do direito.

As audiências públicas no Supremo Tribunal Federal
A realização da primeira audiência pública no STF ocorreu em 20 de abril de 2007. Pela primeira vez em mais de 180 anos de história, a Corte mais alta do Judiciário brasileiro abriu suas portas e seus microfones e convidou a sociedade civil para o debate, reunindo mais de vinte especialistas e representantes de setores sociais interessados na constitucionalidade de pesquisas científicas com células-tronco embrionárias (Marona e Rocha, 2014, pp. 56-57).
A convocação de uma audiência pública no âmbito das ações de competência exclusiva do STF remete à publicação da Lei nº 9.868/99, que dispõe sobre o processo e julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) e da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) perante o órgão, e em seu art. 9º, §1º, possibilita ao presidente da Corte, ou ao ministro-relator das ações de caráter objetivo, convocar audiências públicas para contribuir com os ministros/as em seu julgamento. Também há tal previsão na Lei nº 9.882/99, que dispõe sobre o processo e julgamento da ADPF em seu art. 6º, §1º. Em 2009, o procedimento das audiências públicas foi regulamentado no próprio Regimento Interno do STF, em seu art. 13, incisos XVII e XVIII, art. 21, incisos XVII e XVIII, e art. 154, este último dispondo sobre o procedimento das audiências públicas...

Apesar das deficiências de um modelo ainda em aperfeiçoamento, os participantes do processo contribuem fornecendo informações diversificadas para a abordagem dos temas. O atual exemplo das audiências públicas no STF demonstra que no órgão mais alto do Judiciário há algum espaço para o aumento de sua “porosidade”, para a inserção de pleitos sociais tematizados pelos próprios envolvidos e interessados na discussão, com a possibilidade de influência destes argumentos neste centro decisório e no debate público nacional sobre o tema em análise.
As audiências públicas, embora destinadas a esclarecer questões técnicas, administrativas, políticas, econômicas e jurídicas, se tornaram, de acordo com o entendimento da Corte, um instrumento de legitimidade democrática, não tanto pelos argumentos manifestados, mas por propiciar a participação de atores que, de algum modo, representariam a sociedade na solução jurídica no controle da constitucionalidade, reduzindo o isolamento do Tribunal e promovendo sua aproximação com a sociedade civil, os movimentos sociais e a comunidade científica.
A esfera pública jurídica pode ser concebida como um espaço aberto em uma área tradicionalmente pouco democrática, permitindo a participação de atores sociais que normalmente estariam fora do Judiciário e possuiriam pouco ou nenhum poder na deliberação sobre suas demandas por direitos. Uma esfera pública jurídica com intenções críticas e funções políticas ativas deve estar forte e intimamente conectada com o centro sistêmico, no sentido de que seus procedimentos influenciariam as decisões institucionais e alterariam a realidade jurídico-social, sendo esse o potencial emancipatório deste espaço.
Para demonstrar na realidade jurídica brasileira a existência e as características de um espaço institucional como o descrito, apresentamos uma breve análise da audiência pública sobre cotas étnico-raciais realizada no STF durante o julgamento da ADPF nº 186, que culminou no reconhecimento de políticas afirmativas pleiteadas por um grupo social historicamente marginalizado no Brasil, ao considerar constitucional a inserção das cotas raciais em processos seletivos para ingresso no ensino superior.
O motivo da escolha desta audiência pública específica é que nela encontramos uma luta histórica por direitos, sobre questões estruturais do Brasil que levaram inevitavelmente à tematização de experiências de desrespeito, argumentos de reconhecimento e redistribuição e, principalmente, à discussão de que as desigualdades sociais brasileiras estariam diretamente conectadas com a existência de um racismo estruturante de nossa sociedade. Conforme a análise de Adilson José Moreira sobre o discurso jurídico e sua apropriação para legitimação de narrativas culturais:

Ainda conforme Santos, o direito pode alterar as estruturas de poder, assim como também tornar mais rígidas as trocas entre poderes e reproduzir a exclusão. O caso interpretado a partir da filosofia habermasiana pode pontuar a contribuição do direito para a igualdade nas relações de poder, visando reduzir a exclusão social ou elevando a possibilidade e a qualidade da inclusão e da luta política pela democratização da possibilidade de coordenar os fins sociais, e consequentemente diminuir o monopólio estatal sobre tal coordenação - em outras palavras, a luta reflete em um pleito por desenhos institucionais alternativos, e o direito pode ser utilizado como um recurso para fins emancipatórios (2003).
Portanto, nosso principal objetivo foi demonstrar a importância e o potencial de influência da argumentação de atores sociais envolvidos na causa em discussão em um centro decisório jurídico aberto para recebê-los. Observa-se também a importância da tematização de questões tradicionalmente “não jurídicas” traduzidas para a forma jurídica e, no caso estudado, para a discussão sobre a constitucionalidade de uma ação afirmativa. Um Judiciário considerado democrático deve ser aberto aos atores sociais e ter instrumentos para traduzir razões do mundo da vida para o código do direito, aprofundando a conexão entre as instituições e a realidade social.

CONCLUSÃO
Buscamos demonstrar neste artigo que a construção teórica sobre as características do espaço das audiências públicas do STF ligado ao referencial teórico habermasiano da esfera pública jurídica indicam o funcionamento deste novo mecanismo institucional, permitindo a troca de energias sociais tradicionalmente ausentes em uma arena jurídica como o STF.
Segundo Marcos Nobre, para Habermas, o procedimento é o formato do processo em questão - que seria “capaz de permitir o surgimento do maior número possível de vozes, de alternativas de ação e de formas de vida, garantindo seu direito de expressão e de participação” (2008, p. 18), e que não teria conteúdo definido e nem poderia ser guiado por concepções já determinadas; sua forma é apenas regulamentada.
A deliberação democrática indica “quem” deve participar e “como”, mas não “qual” seria o preenchimento correto dos conteúdos, sobre “o que” deve ser decidido. Os procedimentos de audiências públicas não fornecem nenhuma orientação e nem garantem o “conteúdo” das deliberações e como estas podem afetar as decisões. A importância central não recai sobre a pauta debatida, tanto no sentido do tema (cotas, aborto, drogas ilícitas, saúde pública, questões ambientais etc.) como no sentido dos tipos de argumentos utilizados pelos participantes (históricos, científicos, jurídicos etc.), mas sim no mais importante, o próprio procedimento democrático e seu potencial de responder à altura das demandas sociais.
Nas audiências públicas, as deliberações podem ser consideradas exemplos de formação democrática da vontade no interior de uma arena formal e de que há, em alguma medida, uma esfera pública jurídica aberta e atuante em intermediar as demandas sociais e as decisões dos centros formais, permitindo aos mais diversos atores sociais tradicionalmente localizados às margens dos sistemas decisórios utilizá-la para ampliar e/ou efetivar direitos.
A análise dessas experiências particulares é fundamental para compreender a extensão da legitimidade democrática do Judiciário, sendo que não basta apenas observar o potencial emancipatório do direito ou definir princípios de justiça abstratos; é preciso observar as instituições e procedimentos existentes a fim de diagnosticar e compreender quais práticas podem ser consideradas democráticas e que possuem potencial de aumentar a participação social mediante as audiências públicas e a “porosidade” do Judiciário para captar seus pleitos.
Apesar da construção teórica, o elemento mais importante deste trabalho se constitui pelas pessoas que lutam por direitos. A energia social produzida por experiências de desrespeito, por injustiça e pela organização de movimentos sociais em esferas públicas informais possui potencial emancipatório quando há espaço para se infiltrar nos centros de decisão. Esses procedimentos são significativos aos grupos e indivíduos socialmente marginalizados, que nunca tiveram voz nas instituições para discutir suas próprias experiências e as maneiras que acreditam ser justas para sanar esses problemas, visando uma mudança social efetiva.


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