A forma do filme
Reunindo ensaios escritos por Eisenstein em 1929, A forma do filme
permite ao leitor entrar em contato com as reflexões de um homem que,
depois de estudar atentamente o movimento dos filmes, dividiu as várias
características da forma e do sentido cinematográficos e montou uma
teoria para ensinar o cinema a voar. Entre os temas estudados
destacam-se: a relação entre teatro e cinema; a dramaturgia da forma do
filme; métodos de montagem; e a pureza da linguagem cinematográfica.
Inclui ainda, em apêndice, o ensaio de Eisenstein "Sobre o futuro do
cinema sonoro" e índice remissivo de nomes e assuntos.A forma do filme,
ao lado de O sentido do filme, tornou-se a principal fonte para uma
reflexão sobre o cinema."Os dois livros de Eisenstein que a Zahar
publicou, escritos a partir dos anos 20, estão entre os clássicos do
cinema e fazem parte de qualquer biblioteca básica." Folha de S.Paulo"O
Sentido do Filme e A Forma do Filme têm uma primeira edição brasileira
cuidadosa, com índices de nomes e assuntos, sugestões bibliográficas,
nota biográfica, apresentações e revisão técnica perfeccionista do
crítico José Carlos Avellar. Sirva-se." Jornal do Brasi.
Texto Base:
Sergei Mikhailovitch Eisenstein, nascido
em 23 de janeiro de 1898 na Letônia, realizou algumas das obras-primas
mais cultuadas da história do cinema, como A Greve (1924), O Encouraçado Potemkin (1925), Outubro – Os 10 Dias Que Abalaram O Mundo (1928), Alexandre Nevski (1938), Ivã O Terrível I & II (1942-1946), dentre outros. Seus dois livros principais, publicados no Brasil pela ed. Jorge Zahar, são O Sentido do Filme e a A Forma do Filme, escritos
que “foram o ponto de partida para a invenção de muitos novos cinemas
que surgiram em todo o mundo a partir da década de 1950.” (José Carlos
Avellar)
O recente filme-tributo ao Cinema Novo
brasileiro, de Eryk Rocha, também pode dar muita ocasião para
avaliarmos o impacto e a influência incalculáveis que as revoluções
estéticas e inovações técnicas de Eisenstein desencadearam nas novidades
cinematográficas de figuras como Glauber Rocha, Rogério Sganzerla, Leon
Hirszman etc.
Nos anos 1920, o poliglota Eisenstein
(que, além do russo, aprendeu francês, inglês, alemão e japonês)
dedicou-se ao teatro, tendo sido estudante do curso de direção de
Meyerhold e depois diretor do Teatro Operário do Proletkult. Estreou no
cinema em 1923, com O Diário de Glumov, filmezinho a ser exibido durante a encenação da peça O sábio, de Ostrovski.
Consagra-se como cineasta a partir de 1924, com A Greve e O Encouraçado Potemkin, e aos 10 anos da Revolução Bolchevique de Outubro de 1917 produz o épico soviético, inspirado no livro de John Reed, Outubro. Chegou
a ser contratado pela Paramount, zarpou pros EUA, porém teve seu
contrato cancelado – os magnatas de Hollywood não engoliram seus
projetos, tido como intragáveis para o mercado consumidor roliudiano, o
que fez com que Eisenstein fosse parar no México, contratado por Upton
Sinclair para realizar o filme – inacabado – Que Viva México!
De volta à URSS, lecionou no Instituto de
Cinema de Moscou. Embarcou em vários projetos que não chegou a realizar
a contento – como
A Condição Humana, baseado em romance de André Malraux, e
Amor de Poeta, uma biografia de Puchkin.
O Sentido do Filme (Zahar, 2012, 160 pgs)
é uma coletânea de escritos de Eisenstein e o único de seus livros
publicados enquanto vivia. Era janeiro de 1943 e Eisenstein tinha 45
anos de idade quando o livro publicado chegou-lhe às mãos, ou seja,
trata-se de uma obra de reflexão sobre o cinema que nasce em meio à
carnificina da 2ª Guerra Mundial. Como lembra Avellar,
“em outubro de 1941 Eisenstein deixou
Moscou, então bombardeada pelos nazistas, ao lado de outros cineastas
soviéticos, em direção a Alma-Ata – 12 dias e 12 noites num trem,
espécie de nova arca de Noé no meio do dilúvio da guerra.Em Alma-Ata,
diz que seria impossível viver se não estivessem todos conscientes das
missões que deveriam desempenhar durante a guerra: primeiro, disparar
filmes e filmes contra o inimigo, aplicando com o cinema golpes tão
devastadores quanto os de um tanque ou de um avião; segundo, preservar a
cultura cinematográfica da onda de destruição fascista.” (AVELLAR,
Intro, p. 10)
O capítulo I, Palavra e Imagem, frisa
que “a montagem é um componente tão indispensável da produção
cinematográfica quanto qualquer outro elemento eficaz do cinema” e que
tem uma função fundamental: “o papel que toda obra de arte se impõe, a necessidade da exposição coerente e orgânica do tema, do material, da trama, da ação, do
movimento interno da sequência cinematográfica e de sua ação dramática
como um todo. (…) Nossos filmes enfrentam a missão de apresentar não
apenas uma narrativa logicamente coesa, mas uma narrativa que contenha o máximo de emoção e vigor estimulante.” (13-14)
Um exemplo da mudança de sentido que pode
ser gerada através da montagem cinematográfica é evocada por Eisenstein
quando ele explica que a imagem de uma pessoa em prantos ganhará
diferentes significados de acordo com sua posição em um contexto
narrativo que é justamente a função da montagem constituir e organizar. O
sentido das lágrimas dessa pessoa será dado pela montagem: caso, na
sequência, vier uma cena de um jogo de futebol, o espectador será
convidado a pensar que a pessoa que chora torcia pelo time que foi
derrotado; caso, na sequência, a cena seja a de um enterro, o espectador
concluirá que o pranto resulta do luto recente por alguém que perdeu um
ente amado.
Este exemplo, um tanto tosco, fornece uma introdução às reflexões, muito mais profundas, realizadas em O Sentido do Filme, livro
que não se limita ao âmbito do cinema, mas explora inovações estéticas
em outras artes, como é o caso de Lewis Carroll, autor de Alice no País das Maravilhas, inventor da noção de “palavra portmanteau”, aquela que reúne dois significados em uma única palavra, como um neologismo fabricado a partir de uma montagem verbal (p. 15).
A montagem verbal que gera uma palavra
inédita é uma prática muito exercida por figuras ilustres da literatura,
como James Joyce em Finnegans Wake, Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas ou Paulo Leminski em Catatau. Um exemplo, citado por Freud, é o termo alcoholiday, reunião de alcohol (álcool) e holiday (feriado).
Eisenstein considera que procedimentos de
montagem da arte cinematográfica também operam com uma lógica similar:
em toda justaposição de dois planos isolados através de sua união “o resultado é qualitativamente diferente de cada elemento considerado isoladamente.” (p.
16) Re-evocando o exemplo anterior, de uma pessoa que chora, Eisenstein
pondera: se o primeiro plano é o de uma mulher em lágrimas, e o segundo
plano for de um túmulo, estes dois planos gerarão algo qualitativamente
diverso, o significante luto ou perda, que ainda por
cima deixa em aberto um mistério: quem morreu? A mulher em prantos é uma
viúva que perdeu seu marido legítimo ou uma mulher que perdeu o seu
amante clandestino?
“O que esta compreensão da montagem
implica essencialmente? Neste caso, cada fragmento da montagem já não
existe mais como algo não-relacionado, mas como uma dada representação
particular do tema geral, que penetra igualmente todos os fotogramas.
(…) Para conseguir seu resultado, uma obra de arte dirige toda a
sutileza de seus métodos para o processo. Uma obra de arte, entendida
dinamicamente, é apenas este processo de organizar imagens no sentimento
e na mente do espectador. ” (EISENSTEIN, p. 18-19)
Longe de ser específica do cinema, a montagem é
considerada por Eisenstein como procedimento artístico que é utilizado
com frequência na literatura – como exemplificado por cenas de Ana Karenina, de Tolstói, e Bel Ami, de Maupassant (p. 22) – e que pode até mesmo fazer parte do métier do pintor, do artista visual, do arquiteto, do compositor.
“Que se veja o ar escuro, nebuloso,
açoitado pelo ímpeto de ventos contrários entrelaçados com a chuva
incessante e o granizo, carregando para lá e para cá uma vasta rede de
galhos de árvores quebrados, misturados com um número infinito de
folhas. Que se vejam, em torno, árvores antigas desenraizadas e feitas
em pedaços pela fúria dos ventos. Deve-se mostrar como fragmentos de
montanhas, arrancados pelas torrentes impetuosas, precipitam-se nessas
mesmas torrentes e obstruem os vales, até que os rios bloqueados
transbordam e cobrem as vastas planícies e seus habitantes. Novamente
devem ser vistos, amontoados nos topos de muitas das montanhas, muitas
espécies diferentes de animais em tropel, aterrorizados e reduzidos,
finalmente, a um estado de docilidade, em companhia de homens e mulheres
que fugiram para lá com seus filhos…” (LEONARDO DA VINCI, p. 25 – Saiba Mais)
O processo de montagem utilizado por
tantos artistas magistrais possui uma força que, segundo Eisenstein,
“reside no fato de incluir no processo criativo a razão e o sentimento
do espectador. O espectador é compelido a passar pela mesma estrada
criativa trilhada pelo autor para criar a imagem. (…) É precisamente o
princípio da montagem que obriga os próprios espectadores a criar e
adquire o grande poder do estímulo criativo interior do espectador, que
distingue uma obra emocionalmente empolgante de uma outra que não vai
além da apresentação da informação ou do registro do acontecimento.” (p.
31)
A montagem, compreendida como sucessão de
fragmentos que somados revelarão o processo criativo em ação, é tática
também muito adorada pelos poetas – tanto que poderíamos dizer que
Eisenstein aprendeu cinema também com Púchkin e Da Vinci, também com
Delacroix e Meyerhold, e não só com a obra de outros cineastas.
Esta capacidade incomum de Eisenstein de
refletir sobre o cinema no contexto do conjunto das artes, e além disso
formulando uma teoria e práxis da criatividade, é o que torna esta
figuraça algo de tão extraordinário nas artes do século XX. Para
Eisenstein, cinema nunca foi negócio, comércio, meio para enriquecimento
financeiro, como tornou-se em boa parte dos centros hegemônicos de
produção cinematográfica massificada (Hollywoods e Bollywoods). Com a
câmera, Eisenstein sentia-se conectado ao métier de poetas, dramaturgos, romancistas, pintores, escultores – era um artista que aprendia com todas as artes.
Há em Puchkin certos versos de intenso
teor cinematográfico, argumenta Eisenstein, exemplificando com trechos
do poema narrativo
Poltava, em
especial a cena da execução do personagem Kochubei. Exatamente como
faria um bom cineasta, o poeta Puchkin vale-se de planos do cenário após
a execução, evocando alguns detalhes significativos: “O cadafalso fatal
era desmontado / Um padre de sotaina preta rezava / E sobre uma carroça
era colocado / Por dois cossacos um caixão de carvalho.” (p. 37).
Vê-se aí que as palavras do poeta
produziram um efeito similar ao de um cinematógrafo que registrasse
estes 3 planos: um cadafalso sujo de sangue após a execução de Kochubei;
um padre que faz suas orações para o morto; o caixão sendo posto sobre
uma carroça. Como comenta Eisenstein, “seria difícil encontrar uma
seleção mais eficaz de detalhes para descrever a sensação da imagem da
morte em todo o seu horror, do que esta da conclusão da cena de
execução. (…) O método é usado apenas com o objetivo de suscitar a
necessária experiência emocional no leitor.” (p. 37).
Outra ação que está na essência do método de montagem, portanto, é a seleção eficaz de detalhes que ilustrem a contento o tema geral que anima o processo criativo. E quem diz seleção diz exercício do juízo crítico e estético: montar
é enfatizar alguns detalhes e passar ao largo da descrição de outros; é
escolher entre o necessário e o supérfluo, e depois articular a
sucessão dos fragmentos julgados como necessários. Monta-se o mosaico a
fim de gerar uma obra de arte que possui não só capacidade de
estabelecer uma narrativa lógica dos acontecimentos e dos afetos
daquelas pessoas nele envolvidos, mas sobretudo que seja capaz de comover o
espectador, de gerar compreensão e empatia. Pois arte que não gera
experiência emocional naquele que com ela entra em contato, arte que não
produz conexões simpáticas, talvez não mereça o nome de autêntica obra
de arte. Uma arte que não se sente não será uma arte falhada?
O que Eisenstein celebra em Púchkin é
justamente a capacidade descomunal deste escritor em utilizar o método
da montagem de modo a produzir uma miríade de experiências emocionais de
suas personas dramáticas (dramatis personae): “Púchkin obtém
espantoso realismo em suas descrições. É na verdade o homem, completo em
seus sentimentos, que emerge das páginas dos poemas de Puchkin.” (p.
38)
Eisenstein prova seu argumento evocando uma descrição de Pedro, O Grande, também em
Poltava, em
que o poeta Púchkin escreve uma sequência de 14 versos que são
extremamente similares a 14 planos cinematográficos: no primeiro plano,
ouve-se só a voz de Pedro; no segundo plano, mostra-se só as pessoas que
o rodeiam; no terceiro, Pedro surge; no quarto, há um close-up em seus
olhos faiscantes; e assim por diante.
Pedro é sucessivamente “enquadrado”,
sendo que os versos sucedem-se como as cenas de um filme, e Puchkin sabe
ser também um “cineasta” avant la lettre que transmite à
sucessão de suas imagens um dinamismo que as enche de ação; é com
“movimentos ágeis que Pedro avança, e na sequência (isto é, na próxima
cena!) seu corcel lhe é entregue, “fiel cavalo de batalha que
pressentindo o fogo fatal, treme. Enviesa os olhos e se lança na poeira
da luta. Orgulhoso de seu poderoso cavaleiro.”
Será imaginável que Eisenstein tenha podido montar uma cena tão emocionalmente pungente quanto aquela do cavalo na ponte, em Outubro, se
não tivesse ido à escola com Puchkin, se não tivesse aprendido valiosas
lições com o autêntico poema-filme puchkiniano que descreve Pedro e seu
corcel?
A genialidade do cinema de Eisenstein só
será compreendida no contexto da frequentação fecunda que ele realizou
da escola dos poetas, e não só dos russos (como Puchkin e Maiakósvky),
mas também de Milton e seu Paraíso Perdido.
As cenas de batalhas entre as
hostes de Satã e as hostes celestiais, no poema de Milton, são compostas
como se fossem um roteiro de filmagem. As lanças, os capacetes, os
escudos, os movimentos dos exércitos, tudo é evocado por Milton como se
estivéssemos assistindo a uma mega-batalha em um filme bélico épico, que
pode inclusive ter similaridades com cenas memoráveis de obras Apocalypse Now, de F. F. Coppola, Além da Linha Vermelha, de T. Mallick, ou O Resgate do Soldado Ryan, de Spielberg.
É impressionante, de fato, o quanto o leitor de certas cenas do Paraíso Perdido pode ter a sensação de que um filme passou em sua cabeça enquanto lia o poema. Eisenstein mostra claramente o paralelismo que há entre o modo como o poeta monta seu poema, através da evocação sucessiva de imagens, e o modo como o cineasta também realiza algo bem semelhante.
Por exemplo, quando os anjos rebelados
são jogados no Inferno, trata-se de uma cena de alto teor
cinematográfico – um plano cheio de som e fúria, de movimento e
desassossego, de ação e de suspense, um legítimo arrasa-quarteirão avant la lettre, um autêntico blockbuster poético!
De “cabeça para baixo”, narra Milton, os danados “precipitam-se da
borda do Céu” e “a cólera eterna arde atrás deles até o abismo
insondável.” (47)
Não há absurdo, depois de ler O Sentido do Filme, em
recuar ainda mais no passado cultural da Humanidade e tratar dos poetas
antigos como praticantes de táticas de “montagem” com as quais o
cineasta contemporâneo ainda tem muito a aprender: Homero era um
“cineasta” antes do cinema existir, alguém que conseguiu montar certas cenas da Guerra de Tróia na telona de um escurinho cinema. Não é à toa que o cinema tenha tanto se “apropriado” da Ilíada e da Odisséia, seja explicitamente (em filmes como Tróia ou Fúria de Titãs), seja por contrabando ou apropriação criativa (como em O Regresso, de Alejandro G. Iñarritu).
Donde emerge uma tarefa hercúlea para
qualquer estudante de cinema ou aspirante a cineasta: ao contrário do
que sugere a vertente hegemônica no mundo acadêmico atual, não basta,
para uma formação adequada nas faculdades de audiovisual, focar a
atenção nas especialidades, naquilo que é específico do cinema, com destaque a seus procedimentos técnicos e à seus métodos de realização na prática.
O cinema é bem mais que uma questão de câmeras, lentes, financiamento, mercado de exibição, contexto de negócios etc. O
cineasta realmente criador e inovador, como prova Eisenstein tanto em
sua obra realizada e em suas teorizações, é um artista entre artistas,
um operário da Arte multiforme e variada que atravessa a humana
história.
O cineasta só será um artista de fato se
souber aprender com todas as artes, conviver com artistas de todas as
vertentes, aprendendo a filmar também nos versos dos poetas, nas
narrativas dos romancistas, nas interações humanas “montadas” pelos
dramaturgos. Nada impede, inclusive, que o cineasta aprenda a filmar e a
montar através dos esboços e rascunhos dos pintores (como Eisenstein
faz com Da Vinci), que aprenda cinema também em suas andanças pelos
museus, em suas observações de estátuas e prédios, em sua apreciação de
canções, concertos, sinfonias (dentre outras formas musicais) etc.
Uma das maiores contribuições de Eisenstein à ampliação do nosso conceito de montagem consiste também numa aproximação que ele realiza entre cinema e música, o que torna-se explícito quando ele trabalha com o conceito de montagem vertical, ou seja, montagem polifônica (p. 54-55).
A montagem de um filme não é simplesmente
a disposição sucessiva de elementos em uma linha do tempo que progride
na horizontal – uma seta que corre sempre para frente, como uma melodia
de canção. O filme também é montado tendo em vista as simultaneidades e as sobreposições de elementos – o aspecto propriamente harmônico, ou seja, da ocorrência simultânea de elementos que precisam ser compostos-montados num plano de verticalidade, que somam no mesmo plano ao invés de somente sucederem-se em planos sequenciais. Eisenstein explica melhor a analogia cinematógrafica-musical: