Por:
Recentemente, houve uma polêmica em torno da escolha dos brancos
Fernanda Lima e Rodrigo Hilbert como apresentadores do sorteio da Copa,
deixando de lado os mulatos Camila Pitanga e Lázaro Ramos. O imbróglio
revela a um só tempo a força do movimento negro e o preconceito e
discriminação a que todos os cidadãos brasileiros que não são
afrodescendentes podem sofrer nesses
tempos de politicamente correto e de imitação das neuras estadunidenses
nesse lado de cá do hemisfério. Esta discriminação assume um aspecto
ainda mais feroz porque não se restringe ao campo jurídico, não diz
respeito apenas ao estabelecimento de leis que dificultam a vida de
indivíduos de etnias diversas, mas porque estabelece um discurso de
classificação racial alheio à realidade do país, importado dos conflitos
raciais da América do Norte, e que apaga da memória oficial ou
menospreza elementos cruciais da formação nacional.
Um promotor, ao opinar sobre o a escolha realizada no sorteio, afirmou que os atores mulatos ”representam melhor a composição étnico racial do povo brasileiro.”[1]. Onde, mizifio? Segundo o censo do IBGE, mais da metade da população desse país, que o promotor citado desconhece, se declara branca [2].
Esse pessoal não pode ser representado por causa de quê? Lá na festa da
FIFA escolheram Olodum, Maragareth Menezes, Alcione, Vanessa da Mata,
Alexandre Pires para que apresentassem a música brasileira. Ninguém
buscou representar o som regional do Centro Oeste ou do Sul do país, por
exemplo. Não vejo ninguém querendo abrir investigação por causa disso.
Se
a desculpa pela preeminência de figuras negras entre os artistas
selecionados se dá por causa da realização do sorteio em Salvador, não
custa lembrar que a população cabocla é tão ou mais significativa no
Centro Oeste, Norte e Nordeste do país do que a de pretos e mulatos. O
IBGE usa cinco classificações étnico/raciais nas estatísticas oficiais:
brancos, amarelos, negros, indígenas e… pardos. Os pardos incluem todos
os mestiços, que são tradicionalmente designados no país com termos
diferentes para se fazer referência à sua ascendência: mulatos,
caboclos, cafuzos. No Sudeste, o mestiço predominante é o mulato, e
assim também ocorre em algumas cidades de Goiás e em Recife e Salvador –
estas últimas foram capitais nordestinas muito marcadas pela importação
de africanos. Mas nas demais regiões brasileiras – Sul, Norte,
Centro-Oeste e Nordeste –, um dos tipos mestiços mais comuns, quando não
o dominante, é o caboclo.Toda essa massa é escondida pelas pesquisas
oficiais de cor do brasileiro porque são empurrados para o rótulo de
”pardos”, e este, por sua vez, é sinonimizado nas políticas públicas e
na mídia com a figura do afrodescendente. Será que ainda se ensina nas
escolas do Sudeste que grande parte dos mestiços desse país não tem
ascendência africana? Pra essa gente, só se é brasileiro típico se você
possuir algum pé na África, pouco importando se este gene africano é
minoritário, irrelevante ou inexistente no fenótipo ou cultura de
setenta por cento da população desse país [3].
O problema se torna ainda mais nítido quando se sabe que boa parte dos
autodenominados brancos no Brasil são mestiços e, principalmente,
caboclos. Para a Cultura Amazônica, nordestina [o típico nordestino do
sertão, da caatinga], campeira e pecuarista, do peão e do pequeno
agricultor do interior, da viola, do catolicismo arraigado, as marcas do
africanismo são ou pequenas ou subordinadas a outros elementos étnicos [4].
E ainda assim o IBGE, a mídia, e as políticas públicas oficiais as
impõem a todo este contingente populacional que se espraia pela maior
parte do território nacional.No fundo, a importação dos dilemas do
movimento negro estadunidense para estas regiões da América provocaram,
para além de consequências positivas cá e acolá para pretos e mulatos,
mais um ciclo de dominação do Brasil costeiro e voltado para USA e
Europa sobre o Brasil profundo, e um afastamento em relação a muito do
que nos une e aproxima dos vizinhos sul-americanos, que possuem uma
herança fortemente indígena em sua constituição cultural e racial [5].
Não podemos nos esquecer também que, se é verdade que não somos
herdeiros culturais e raciais dos vikings, também é verdade que fomos
colonizados por um povo branco e europeu [com pitadas cá e lá doutros
povos também brancos e europeus], que estabeleceu nestas florestas o
cerne daquilo que em nós é civilização. Fingir que essa matriz
civilizacional portuguesa, branca e católica-romana não existe é se
tornar cego para a própria realidade que chamamos Brasil, que é, pra
falar o óbvio ululante, herdeira da interiorização pela América
Portuguesa de noções e esquemas de poder e sociedade metropolitanos.
E
aqui se insere a questão da política de cotas que tomou conta do país.
Sou contra cotas baseadas no critério de raça por vários motivos, sendo o
principal deles a apropriação das dita cujas por movimentos
organizados, de matiz africanista, importados do estrangeiro, e que
moldam não só o debate racial, como são também racistas, se não sempre
em teoria, quase sempre na prática, o que tem consequência deletérias
para diversos grupos étnicos brasileiros, que somem de vista em um
verdadeiro ”apagão histórico-racial”, além de impulsionar uma
”americanização” da forma como a sociedade brasileira se percebe. Não
falo do muxoxo de loiros da Barra da Tijuca, mas da sacanagem feita com
caboclos e indígenas e do sufocamento do Brasil, esse país ibérico. Last but no least,
a abordagem racialista muitas vezes distorce o verdadeiro problema, que
é a imensa concentração de renda do país, e que seria melhor combatido
com uma sistemas de cotas fundamentadas em critérios sócio-econômicos.
[3]
”Resumidamente, eis as conclusões do grupo de geneticistas: a quase
totalidade dos genes dos brancos brasileiros de hoje, herdados por via
paterna, vieram de portugueses; já no que respeita ao que foi recebido
pela linhagem materna, 60% veio de índias e negras. O trabalho será
publicado na edição de abril da revista Ciência Hoje. Para
Sérgio Pena, a surpresa maior foi encontrar tamanha contribuição
ancestralidade indígena na população branca. “Todo mundo no Brasil já
aceita o fato de que nós somos mestiços, mas não com índios”, diz. […]
Entre os homens não houve grande surpresa. Nada menos do que 98% dos
haplótipos encontrados por Sérgio Pena e seus colaboradores (Denise
Carvalho-Silva, Juliana Alves-Silva, Vânia Prado e Fabrício Santos) são
atribuíveis a uma origem européia, particularmente a portugueses (que
possuem uma fisionomia genética própria por conta da influência moura,
ou norte-africana). A comparação foi estabelecida com auxílio de uma
amostra de 93 homens portugueses, fornecida pelo geneticista Jorge
Rocha, da Universidade do Porto. […] Bem diferente é o panorama da
genealogia colonial oferecido pelas linhagens maternas, ou seja, pelos
polimorfismos do mtDNA. Nesse caso, a distribuição é bem mais uniforme:
39% de contribuição européia, 33% de indígena e 28% de africanas.”
http://www.online.unisanta.br/2000/04-01/ciencia3.htm.
Ver também: http://www.icb.ufmg.br/labs/lbem/pdf/retrato.pdf
[4] http://www.youtube.com/watch?v=pjiNMoh7L5Q
Ver também Darcy Ribeiro na obra ”O Povo Brasileiro”: ”Só assim se explica, de resto, o próprio fenótipo predominantemente brancóide de base indígena do vaqueiro nordestino, baiano e goiano. Tais características têm sido interpretadas, por vezes, como resultado de uma miscigenação continuada com grupos indígenas dos sertões. A hipótese parece historicamente insustentável em face da hostilidade que se desenvolveu sempre entre vaqueiros e índios, onde quer que se defrontassem. Disputando o domínio dos territórios tribais de caçadas para destiná-los ao pastoreio e lutando contra o índio para impedi-lo de substituir a caça que se tornara rara e arredia nos campos povoados pela nova e enorme caça que era o gato, os conflitos se tornavam inevitáveis. Acresce que a suposição é desnecessária, porque partindo de uns poucos mestiços tirados das povoações da costa –e aos quais não se acrescentou nenhum contingente imigratório branco ou negro — teríamos, natural e necessariamente, pelo imperativo genético da permanência dos caracteres raciais, a perpetuação do fenótipo original. Tudo isso parece ser verdade. A antropologia, porém, nega a história, mostrando a cabeça chata enterrada nos ombros, que não pode vir do nada. É inevitável admitir que, roubando mulheres ou acolhendo índios nos criatórios, o fenótipo típico dos povos indígenas originais daqueles sertões se imprimiram na vaquejada e nos nordestinos em geral.
Ver também Darcy Ribeiro na obra ”O Povo Brasileiro”: ”Só assim se explica, de resto, o próprio fenótipo predominantemente brancóide de base indígena do vaqueiro nordestino, baiano e goiano. Tais características têm sido interpretadas, por vezes, como resultado de uma miscigenação continuada com grupos indígenas dos sertões. A hipótese parece historicamente insustentável em face da hostilidade que se desenvolveu sempre entre vaqueiros e índios, onde quer que se defrontassem. Disputando o domínio dos territórios tribais de caçadas para destiná-los ao pastoreio e lutando contra o índio para impedi-lo de substituir a caça que se tornara rara e arredia nos campos povoados pela nova e enorme caça que era o gato, os conflitos se tornavam inevitáveis. Acresce que a suposição é desnecessária, porque partindo de uns poucos mestiços tirados das povoações da costa –e aos quais não se acrescentou nenhum contingente imigratório branco ou negro — teríamos, natural e necessariamente, pelo imperativo genético da permanência dos caracteres raciais, a perpetuação do fenótipo original. Tudo isso parece ser verdade. A antropologia, porém, nega a história, mostrando a cabeça chata enterrada nos ombros, que não pode vir do nada. É inevitável admitir que, roubando mulheres ou acolhendo índios nos criatórios, o fenótipo típico dos povos indígenas originais daqueles sertões se imprimiram na vaquejada e nos nordestinos em geral.
[5] Vide a influência do nheengatu como
língua geral da América Portuguesa até o século XVIII, e que está na
base de boa parte do modo de falar do ”caipira”: ”Caipira é aquele que
fala o dialeto caipira. É português, mas com palavras tupi e sotaque da
língua brasileira. A língua brasileira é onheengatu, que existiu no Brasil até ser proibida por Portugal, no século 18. Seu nome parece coisa de índio, e é. O nheengatu incorpora
a fala dos índios tupi, que ocupavam o litoral brasileiro. Na verdade,
até hoje, quem se refere ao Ibirapuera, fica jururu, come abacaxi ou se
pendura num cipó está se expressando nessa língua. Há algum tempo,
quando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso usou a expressão “chega
de nhémnhémnhém”, estava falando puronheengatu. No Brasil
Colônia, era falada fluentemente em uma grande área do País, que ia de
Santa Catarina ao Pará. A elite também se expressava por meio dela,
embora não em todos os setores. Durante os processos, o juiz dispunha de
um intérprete. “Tivemos uma língua brasileira até o século 18”, diz o
professor José de Souza Martins, do Departamento de Sociologia da
Faculdade de Filosofia da USP. “Só os portugueses, que eram
estrangeiros, falavam português.” A língua foi criada no século 16 pelos
jesuítas, destacando-se o Padre Anchieta. O fundador de São Paulo era
lingüista. Para se entender com os nativos, classificou o tupi e criou
uma gramática da língua geral. Ou seja, o nheengatu. “Uma língua
de travessia, não é português, nem índio, eram ambas”, diz Martins. O
português, nesse caso, era o que hoje chamamos arcaico. Convidava-se uma
dona para uma função, em vez de uma senhora para um baile. E dizia-se
coisas como agardece (agradece), alevantá e inorância. Os índios tinham
dificuldade em falar palavras portuguesas como os verbos no infinitivo. E
também palavras com consoantes dobradas (rr) ou terminadas em
consoante. Além disso, colocavam vogal entre consoantes. Mulher, colher e
orelha viraram muié, cuié e oreia. De sua dificuldade com o “erre”, vem
o “pooorta”, reflexivo, com a língua tocando o céu da boca. Martins
esclarece que “o dialeto caipira não é um erro, é uma língua dialetal”.
Mais do que isso: “É uma invenção lingüística musical e social.” Os
brasileiros viviam muito bem com ela, até que, no reinado de d. José I
(1750 a 1771), Portugal a proibiu. O veto veio em um decreto do
primeiro-ministro, o Marquês de Pombal. Bania o ensino do nheengatu das
escolas. A decisão foi acatada nas salas de aula, mas o povo continuou
falando no dialeto caipira. O tempo acabou por impor o português, mas o
dialeto puro resiste. Ainda é falado em alguns pontos da fronteira com o
Paraguai. E, em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, a 860
quilômetros de Manaus, uma lei de 2002 tornou o nheengatu língua
co-oficial do município. Na contramão do decreto do marquês, determina
que seja incentivado seu ensino nas escolas, e o uso nos meios de
comunicação (o tucano e o baniva também se tornaram línguas
co-oficiais). E ficou o “caipirês” da roça. Por essas bandas, ensina
Martins, a língua se multiplica. “Quando o novo aparece, o caipira
inventa, a partir da matriz da palavra, algo que tem sentido para ele.”
Há certo tempo, Martins e um grupo de estudantes apresentaram questões a
algumas pessoas. Perguntaram a um homem: “Você concorda ou não
concorda?” O homem não entendeu. A pergunta foi sendo repetida, sem
sucesso, até que um dos estudantes mudou a forma: “Você concorda ou
disconcorda?” Deu certo.”
[http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,sotaque-vem-do-nheengatu-a-lingua-brasileira,160205,0.htm]
Historiador, mestrando em História pela UFRJ, cristão ortodoxo e membro da NR-RJ.
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