segunda-feira, 7 de agosto de 2017

ANALISE DE UMA SITUAÇÃO SOCIAL NA ZULULÂNDIA MODERNA - Max Gluckman


Max Gluckman





ANALISE DE UMA SITUAÇÃO SOCIAL NA ZULULÂNDIA MODERNA



ANALISE DE UMA SITUAÇÃO SOCIAL NA ZULULÂNDIA MODERNA


Max Gluckman

Análise de uma situaão social na Zululândia moderna: adaptar o paradigma estrutural-funcionalista para sociedades modernas. Questão do conflito (a partir da 2ª geração: como o jogo político é vivido). Conceito de situação social: eventos observados pelo antropólogo e a partir daí desdobra-se as implicações do que estava acontecendo, no âmbito das relações sociais, entre os dois grupos (no caso, a construção da ponte) = estudo de caso que possibilitam a análise de interações entre atores sociais. Assim como Leach, busca superar a ortodoxia (evans-Pritchard, Malinowski, Raddclife-Brown), tratam do conflito e competição e do ator que se interessa em galgar posições melhores.

Dinamismo central dos sistemas sociais é a atividade política por homens que lutam por poder e status dentro do quadro sociais, por vezes ambíguo. Para apreender o papel que lideranças africanas tem na África moderna lança mão do conceito de situação social.

Situação social na Zululândia: Critica a antropologia social britânica no que diz respeito à noção de estrutura. Crítica a identificação automática dos indivíduos na sociedade. Novo tipo de análise: método de etnografia. Interpretações de sua obra afirmam que ele demonstra a impossibilidade de se estudar grupos sociais isoladamente.

Escola de Manchester à rede (bastante empírica). Nasce em meio ao apartheid, sua noção de situação social mostra que o que existe é encontro (contato organiza a vida moderna na África) de grupos, e não separação. Caráter político do estudo: há situações de encontro, aparato administrativo colonial. Possibilidade de comparação: instituições participantes da mudança, mudança dos atores.

I - A organização social da Zululândia moderna

Introdução

A África do Sul é um Estado nacional habitado por 2.003.512 brancos, 6.597.241 africanos e vários outros grupos raciais.1 Esta população não forma uma comunidade homogênea porque o Estado basicamente está constituído por sua divisão em grupos raciais de vários status. Portanto, o sistema social do país consiste, predominantemente, de relações interdependentes em cada grupo e entre os vários grupos enquanto grupos raciais.

Neste ensaio, analisarei as relações entre africanos e brancos do norte da Zululândia, baseando-me em dados coletados durante dezesseis meses de pesquisa de campo, realizada entre 1936 e 1938.2 Cerca de 2/5 dos africanos da África do Sul moram em áreas reservadas, distribuídas por todo país/ Apenas alguns europeus (administradores, técnicos do governo, missionários, comerciantes e recrutadores) vivem nestas reservas /Os homens africanos costumam migrar das reservas, por curtos períodos de tempo, a fim de trabalhar para fazendeiros brancos, industriais ou se empregar como criados domésticos. Findo o trabalho, retornam às suas casas. A comunidade de africanos de cada reserva mantém estreitas relações econômicas, políticas, bem como outros tipos de relações com o restante da comunidade africana branca do país. Por isso, ao explicitar os problemas estruturais em qualquer reserva, é preciso analisar amplamente como e em que profundidade a reserva está inserida no sistema social do país, quais relações dentro da reserva envolvem africanos brancos e como estas relações são afetadas e afetam a estrutura de cada grupo racial.

Pesquisei, no norte da Zululândia, uma seção territorial do sistema social da África do Sul, especificando suas relações com o sistema enquanto um todo. Acredito, entretanto, que provavelmente o padrão dominante da área pesquisada se assemelhe ao de qualquer outra reserva do país.3 Deve, além do mais, apresentar possíveis analogias com outras áreas localizadas em Estados heterogêneos onde, embora vivendo separados, grupos socialmente inferiores (do ponto de vista racial, político e econômico) inter-relacionam- se com os grupos dominantes. Não pretendo neste ensaio desenvolver nenhum estudo comparativo. No entanto, vale a pena salientar o contexto mais amplo dos problemas sob investigação.

Como forma de iniciar esta análise, descrevo uma série de eventos conforme foram registrados por mim num único dia. As situações sociais constituem uma grande parte da matéria-prima do antropólogo, pois são os eventos que observa. A partir das situações sociais e de suas inter-relações numa sociedade particular, podem-se abstrair a estrutura social, as relações sociais, as instituições, etc. daquela sociedade. Através destas e de novas situações, o antropólogo deve verificar a validade de suas generalizações.

Como o meu enfoque dos problemas sociológicos da África moderna não foi previamente utilizado no estudo do que se convencionou chamar "contato cultural", estou apresentando um material de pesquisa detalhado. Desta maneira, poder-se-á avaliar melhor e criticamente a abordagem adotada.4 Escolhi deliberadamente estes eventos particulares, retirados de meu diário de campo, porque ilustram de forma admirável o que estou tentando enfatizar neste ensaio. Poderia, entretanto, ter selecionado igualmente inúmeros outros eventos ou citado outras ocorrências do cotidiano da Zululândia moderna. Descreverei os eventos da forma em que os documentei — ao invés de adicionar à minha descrição tudo aquilo que já conhecia previamente sobre a estrutura total da Zululândia moderna. Espero que, dessa forma, a força do meu argumento possa ser apreciada melhor.

As situações sociais

Em 1938, estava morando no sítio (homestead) de Matolana Ndwandwe um conselheiro do regente e representante governamental. O sítio localiza-se a treze milhas da magistratura europeia e da Vila de Nongoma, e a duas milhas do armazém de Mapopoma. No dia 7 de janeiro, acordei ao amanhecer e me preparei para ir a Nongoma na companhia de Matolana e de meu criado Richard Ntombela, que vive num sítio aproximadamente meia milha distante da casa do meu anfitrião. Naquele dia, meu plano era comparecer de manhã à inauguração de uma ponte no distrito vizinho de Mahlabatini e logo após, à tarde, a um encontro distrital na magistratura de Nongoma.

Richard, um cristão que morava com três irmãos pagãos, veio vestido com suas melhores roupas europeias. Ele é um "filho" para Matolana, pois a mãe de seu pai era irmã do pai de Matolana. Richard preparou o vestuário de Matolana para ocasiões especiais: uniforme de jaqueta caqui, calças dê montaria, botas e polainas de couro.

Estávamos a ponto de deixar a casa de Matolana, quando fomos retardados pela chegada de um policial uniformizado do governo zulu, empurrando a sua bicicleta, e acompanhado por um prisioneiro algemado, um estranho no nosso distrito que estava sendo acusado de roubar ovelhas em algum outro lugar. O policial e o prisioneiro cumprimentaram Matolana e a mim. Respondemos ao cumprimento do policial, que é membro de um ramo colateral da família real zulu, com as saudações dignas de um príncipe (umtwana). Então, o policial relatou a Matolana como tinha capturado o prisioneiro com a ajuda de um dos guardas particulares de Matolana. Matolana repreendeu o prisioneiro dizendo que não admitiria escórias (izigebengu) no seu distrito. Voltou-se, em seguida, para o policial e criticou o governo por esperar que ele e sua guarda particular ajudassem a capturar pessoas perigosas, sem pagar nada por esse serviço, nem levar em consideração qualquer recompensa aos seus dependentes, caso fossem mortos. Matolana frisou ainda que trabalhava muitas horas administrando a lei para o governo, sem receber salário; disse, também, que era suficientemente inteligente para deixar de fazer esse trabalho e voltar às minas, onde costumava ganhar dez libras por mês como capataz.

O policial foi embora com seu prisioneiro. Em seguida, partimos em meu carro para Nongoma. Paramos no meio do caminho para dar carona a um velho, líder de sua pequena sejta-eíistã, fundada por ele próprio e cuja paróquia foi construída em seu sítio. Esse velho líder atribui a si o título de supremo na 'sua igreja, mas as pessoas consideram a sua seita, que não é reconhecida pelo governo, como sendo parte dos zionistas, uma grande igreja separatista nativa.  O velho líder estava se dirigindo a Nongoma para comparecer ao encontro da tarde como um representante do distrito de Mapopoma. Ele sempre desempenhou esse papel, em parte devido à sua idade e, em parte, por ser o líder de um dos grupos de parentesco local. Embora qualquer um possa comparecer e falar nessas reuniões, há pessoas que são reconhecidas como representantes pelos pequenos distritos. Nos separamos no hotel, em Nongoma. Enquanto os três zulus foram à cozinha para tomar o café da manhã, por minha conta eu resolvi tomar banho, antes do desjejum. Ao voltar para o café da manhã, sentei-me à mesa com L.W. Rossiter, veterinário do governo para os cinco distritos da Zululândia do Norte.8 Conversamos sobre as condições das estradas e sobre as vendas de gado pelos nativos locais. Ele também estava indo à inauguração da ponte e tinha, como eu, um interesse particular nesse evento, pois a ponte havia sido construída sob a direção de J. Lentzner, da equipe de engenharia do Departamento de Assuntos Nativos, um grande amigo e velho colega de escola de ambos.

O veterinário do governo sugeriu que Matolana, Richard e eu viajássemos em seu carro até a ponte, pois estava acompanhado por apenas um nativo da sua equipe. Por meu intermédio, ele já havia estabelecido relações cordiais com Matolana e Richard. Fui à cozinha dizer a Matolana e Richard que seguiríamos no carro do veterinário, e ali |iquei por uns instantes, conversando com os dois e com os empregados zulus do hotel. Quando saímos ao encontro do veterinário, todos trocaram cumprimentos, cada um in- dagando cerimoniosamente sobre o estado de saúde do outro. Matolana tinha uma série de reclamações (pelas quais já era conhecido entre os funcionários qualificados do governo) sobre o extermínio dos parasitas de gado. A maioria das reclamações era tecnicamente injustificada. O veterinário e eu sentamos no banco da frente do carro, enquanto os três zulus sentaram atrás.

A cerimônia de inauguração da ponte tornou-se relevante por ser a primeira construída na Zululândia pelo Departamento de Assuntos Nativos, após a implementação dos novos planos de desenvolvimento nativo. A ponte foi inaugurada por H.C. Lugg, comissário chefe dos nativos da Zululândia e de Natal.10 É construída sobre o rio Ufflfolosi Negro na direção de Malungwana, no distrito magistratorial de Mahlabatini, numa estrada secundária para o Hospital Ceza da Missão Sueca, algumas milhas acima de onde a estrada principal Durban-Nongoma atravessa o rio num caminho de concreto. O rio Umfolosi Negro sobe rapidamente seu nível durante1 as chuvas pesadas (às vezes até vinte pés), tornando- se inavegável. O 'principal objetivo da construção dessa ponte, nível baixo (cinco pés), foi o de permitir a comunicação do magistrado de Mahlabatini com a parte de seu distrito localizada além do rio, durante as pequenas subidas do rio. Além disso, essa ponte torna possível o acesso ao Hospital Ceza, famoso entre os zulus por sua especialização em obstetrícia. As mulheres zulus frequentemente viajam até setenta milhas para serem internadas nesse hospital.

Durante nossa viagem, discutimos, em zulu, sobre os vários lugares pelos quais passávamos. Dessa conversa, somente anotei que o veterinário do governo perguntou a Matolana qual era a lei zulu de punição ao adultério, pois um de seus funcionários zulus estava sendo processado pela polícia por morar com a esposa de outro homem, embora até então ignorasse o fato dela ser casada.

No local onde a estrada bifurca-se para Ceza, o magistrado de Mahlabatini havia colocado um zulu, vestindo trajes de guerreiro, para orientar os visitantes. Na estrada secundária, ultrapassamos o carro do chefe Mshiyeni, regente da Casa Real Zulu, que viajava de sua casa, localizada no distrito de Nongoma, para assistir à inauguração da ponte. Nossos acompanhantes zulus dirigiram-lhe a saudação real e nós o cumprimentamos. Além de seu chofer, que dirigia seu carro, Mshiyeni também estava acompanhado por um oficial militar armado, de uniforme aide-de-camp, e mais outro auxiliar.

A ponte está localizada num aluvião, entre margens bem íngremes. Quando chegamos, um grande número de zulus estava reunido em ambas as margens (em A e B no mapa). Na margem ao sul, em um dos lados da estrada (no ponto C do mapa), havia uma barraca, onde a maioria dos europeus estava concentrada. Os europeus haviam sido convidados pelo magistrado local e incluíam a equipe administrativa de Mahlabatini, o magistrado, o assistente do magistrado e o mensageiro da corte de Nongoma; o cirurgião do distrito; missionários e funcionários do hospital; comerciantes e agentes recrutadores; policiais e técnicos; e vários europeus com interesses centrados no distrito, entre eles C. Adams, leiloeiro nas vendas de gado nos distritos de Nongoma e Hlabisa. Muitos estavam acompanhados por suas esposas. O comissário chefe dos Nativos e Lentzner, bem como um representante do Departamento de Estradas da Província de Natal, chegou mais tarde. Dentre os zulus presentes estavam chefes locais, líderes (headmari) e seus representantes; os homens que haviam construído a ponte; policiais do governo; o funcionário dos nativos da magistratura de Mahlabatini, Gilbert Mkhize; e zulus residentes nas proximidades. Éramos, ao todo, aproximadamente vinte e quatro europeus e 400 zulus.

Arcos de ramagem tinham sido erguidos em cada extremidade da ponte. Uma fita esticada passava pelo arco da extremidade sul da ponte e seria rompida pela passagem do comissário-chefe dos Nativos em seu carro. Um guerreiro zulu, em trajes marciais, estava postado sem posição de guarda perto deste arco. O veterinário do governo conversou com o guerreiro (um induna " local) sobre a desinfecção do gado local. Nessa ocasião, fui apresentado ao guerreiro para que pudesse lhe falar sobre o meu trabalho e solicitar a sua assistência. Enquanto o veterinário do governo e eu conversávamos com vários europeus, nossos zulus juntaram-se ao grupo de 'zulus. Matolana foi recebido com o respeito devido a um importante conselheiro do regente. Quando o regente chegou, recebeu a saudação real e se juntou aos seus súditos, reunindo rapidamente ao seu redor uma pequena corte de pessoas importantes. O comissário chefe dos Nativos foi o próximo a chegar: cumprimentou Mshiyeni e Matolana, e quis saber sobre a artrite de Matolana. Pelo que pude deduzir, também discutiu com eles alguns assuntos zulus. Depois passou a cumprimentar os europeus. A inauguração foi retardada devido ao atraso de Lentzner.

Aproximadamente às 11 e meia da manhã, um grupo dos zulus que construiu a ponte reuniu-se na extremidade norte da ponte. Não usavam trajes marciais completos, mas portavam lanças e escudos. Quase todos os altos dignitários zulus trajavam roupas de montaria europeias, embora o rei estivesse usando um terno de passeio. Pessoas comuns trajavam combinações variadas de roupas europeias e zulus. A tropa de guerreiros armados marchou através da ponte, passando atrás da fita na extremidade sul; ali cumprimentaram o comissário-chefe dos Nativos com a saudação real zulu, bayete. Depois, voltaram-se para o regente, saudando- o. Tanto o comissário-chefe dos Nativos como o regente responderam à saudação levantando o braço direito. Os homens e começaram a cantar o ihubo (canção de clã), do clã Butezeli (o clã do chefe local que é o principal conselheiro do regente zulu), mas foram silenciados pelo regente. Então, os procedimentos da inau-t guração se iniciaram com um hino inglês, conduzido por um missionário de missão sueca Ceza, Todos os zulus, inclusive os pagãos, ficaram de pé e tiraram seus chapéus.

Mister Phipson, o magistrado de Mahlabatini, fez um discurso em inglês, traduzido sentença por sentença para o zulu pelo seu funcionário zulu, Mkhize. O magistrado deu as boas-vindas a todos e agradeceu especialmente aos zulus por comparecerem à inauguração. Parabenizou os engenheiros e os trabalhadores zulus pela construção da ponte e ressaltou o valor que esta teria para o distrito. Em seguida, passou a palavra para o comissário-chefe dos Nativos, que conhece bem a língua e os costumes zulus. Este falou sobre o grande valor da ponte, primeiro em inglês para os europeus, depois em zulu para os zulus. O comissário-chefe dos Nativos salientou que a construção da ponte era apenas um exemplo do que o governo estava fazendo para desenvolver as reservas tribais zulus. Após o comissário, o representante do Departamento de Estradas da Província falou brevemente, ressaltando que embora tivesse sido | pressionado a construir uma, seu Departamento nunca tinha acreditado na resistência de uma ponte baixa às cheias do rio Umfòlori. Continuando seu discurso, cumprimentou os engenheiros dos Assuntos Nativos pela implementação da ponte que, mesmo sendo construída a baixo custo, tinha resistido à cheia de cinco pés. Anunciou, também, que o Departamento da Província iria construir uma ponte alta na estrada principal. Adams, um velho zulu, foi o próximo a discursar em inglês e em zulu, mas não disse nada de relevante.

O último discurso foi o do regente Mshiyeni, em zulu, traduzido por Mkhize para o inglês, sentença por sentença. Mshiyeni agradeceu ao governo pelo trabalho que estava sendo realizado na Zululândia. Disse que a ponte possibilitaria a travessia em época de cheia e tornaria possível às suas esposas irem livremente para o Hospital Ceza ter seus filhos. Apelou ao governo para que não se esquecesse da estrada principal, onde também era necessário construir uma ponte, pois lá o rio freqüentemente impedia a passagem. Mshiyeni anunciou ainda que o governo estava dando uma cabeça de gado ao povo e que o comissário-chefe dos Nativos havia lhe dito que |everiam, de acordo com o costume zulu, derramar a bílis nos pés da ponte, para dar boa sorte e segurança às crianças quando a atravessassem. Os zulus riram e aplaudiram. O regente considerou seu discurso encerrado e recebeu a saudação real dos zulus que, seguindo o exemplo dos europeus, haviam aplaudido os outros discursos.

O comissário-chefe dos Nativos entrou em seu carro e, precedido por vários guerreiros em trajes marciais, cantando o ihubo Butelezi, atravessou a ponte. Foi seguido, sem nenhuma ordem hierárquica, pelos carros de outros europeus e do regente. O regente pediu aos zulus três vivas (hule, em zulu). Ainda tendo os guerreiros à frente, os carros fizeram o contorno na margem oposta e retornaram. No caminho, um funcionário europeu da magistratura, que queria fotografá-los, pediu que parassem. Todos os zulus presentes cantaram o ihubo Butelezi.

Os europeus entraram na barraca para tomar chá com bolo. Uma missionária serviu o regente fora da barraca. Na barraca, os europeus estavam discutindo assuntos zulus e outros mais gerais. Não acompanhei as discussões porque fui à margem norte onde os zulus estavam reunidos. Os zulus locais haviam presenteado o regente com três cabeças de gado. Na margem norte, numa atmosfera de grande euforia, o regente e seu oficial militar atiraram nesses três animais, bem como no animal doado pelo governo. O regente pediu a Matolana para selecionar homens, a fim de esfolar e cortar o gado para distribuição. Depois se dirigiu a um local de vegetação rasteira nas proximidades (D no mapa) para conversar com seu povo e tomar cerveja zulu, da qual lhe haviam ofertado grande, quantidade. O regente enviou quatro potes de cerveja, carregados por garotas, ao comissário-chefe dos Nativos. Este bebeu de um pote que reservou para si, dizendo as carregadoras para beber dos outros potes e então distribuí-los entre o povo. De acordo com a etiqueta zulu, este procedimento é o apropriado.

O comissário-chefe dos Nativos e quase todos os europeus foram embora. A maioria dos zulus tinha se reunido na margem norte, dividindo-se, grosso modo, em três grupos. Na mata de arbustos (item D no mapa) estava o regente com seus indunas locais, sentados juntos, enquanto mais longe ficaram os plebeus. Estavam tomando cerveja e conversavam, enquanto esperavam pela carne. Logo acima, da margem do rio (item A do mapa) estavam alguns grupos de homens cortando rapidamente três animais sob a supervisão de Matolana; faziam muito barulho, batendo papo em tom alto e rindo. O veterinário do governo, Lentzner e o técnico de agricultura europeia do distrito os estavam observando. Logo atrás, a uma maior distância da margem, o missionário sueco havia arregimentado diversos cristãos zulus que estavam alinhados em filas e cantavam hinos sob sua direção. Entre os cristãos enfileirados, observei a presença de alguns pagãos. Lentzner pediu a dois guerreiros para posarem ao seu lado numa fotografia tirada na sua ponte. Os diferentes grupos continuaram cantando, batendo papo, conversando e cozinhando até irmos embora.

Eu tinha passado de grupo em grupo, exceto pelos cristãos que cantavam os hinos. Porém, passei a maior parte do tempo conversando com Matolana, Matole e o chefe Butalezi, a quem conheci somente naquele dia. Matolana tinha que ficar para assessorar o regente e por isso combinamos que o regente levaria Matolana à reunião de Nongõma. Partimos com Richard e o office-boy do veterinário. A reunião na ponte iria durar ainda o dia todo.

Almoçamos, novamente separados dos zulusj em Nongõma, e fomos, o veterinário do governo e eu, separadamente, à reunião na magistratura. Cerca de 200 a 300 zulus estavam presentes. Entre eles, chefes, indunas e plebeus. A reunião começou um pouco atrasada, porque Mshiyeni não havia chegado ainda. Finalmente o magistrado iniciou a reunião sem a sua presença. Após uma discussão geral sobre assuntos do distrito (leilões de gado, gafanhotos e reprodução de touros de qualidade "), os membros de duas das tribos do distrito foram dispensados da reunião.

Há três tribos: 1) os Usuthu, a tribo da linhagem real, que constituem o séquito de clientes pessoais do rei zulu (hoje o regente). Somente o rei detém jurisdição legal sobre os Usuthu, muito embora quase todas as outras tribos na Zuzulândia acatem sua autoridade; 2) os Amateni, que constituem uma das tribos reais e que são governados por um dos pais classificatórios do rei; e 3) os Mandlakazi, que são governados por um príncipe de um ramo colateral da linhagem real, e que se separaram da nação Zulu em guerras civis que se seguiram à Guerra Anglo-Zulu de 1879/80. Os Mandlakazi foram requisitados a permanecer na reunião, pois o magistrado queria discutir as brigas entre facções que estavam ocorrendo entre duas das seções tribais. O chefe Amateni e seu chefe induna foram autorizados a permanecer na reunião (Mshiyeni, o chefe Usuthu, ainda não estava lá), mas o magistrado não queria que os plebeus de outras tribos o ouvissem reprimindo os Mandlakazi.18 O magistrado dirigiu a palavra aos Mandlakazi num longo discurso, reprovando-os por terem saqueado a propriedade dos Zibebu (umzikaZibebu, isto é, a tribo do grande príncipe, Zibebu) e por estarem numa situação em que são obrigados a vender seu gado para pagar multas para o tribunal de justiça, ao invés de alimentar, vestir e educar seus filhos e esposas.19 Entrementes, Mshiyeni, acompanhado por Matolana, entrou e todos os Mandlakazi se levantaram para saudá-lo, interrompendo o discurso do magistrado. Mshiyeni se desculpou por estar atrasado e se sentou com os outros chefes.

Após ter feito suas reprimendas durante um bom tempo, o magistrado pediu que o chefe Mandlakazi se pronunciasse sobre a questão. O chefe Mandlakazi reprovou seus indunas e os príncipes das seções tribais em conflito, sentando-se depois. Vários indunas falaram, justificando seus atos e culpando os outros; um deles, um indivíduo que, de acordo com os outros zulus, estava adulando o magistrado para se promover politicamente, fez seu discurso elogiando a sabedoria e a bondade do magistrado. Um príncipe da linhagem Mandlakazi, que além de membro de uma das seções em conflito é também um policial do governo, reclamou que a outra seção tribal estava sendo auxiliada nas disputas por seus vizinhos, membros da tribo Usuthu que moravam no distrito de Matolana. Finalmente chegou a vez de Mshiyeni falar. Ele interrogou rigorosamente os indunas Mandlakazi, dizendo-lhes que tinham obrigação,de verificar quem iniciou as brigas e prender os culpados, sem permitir que a culpa recaísse sobre todos que agora brigavam. Incitou os Mandlakazi a não destruírem a propriedade /dós Zibebu afirmando que, se os indunas não pudessem zelar pela nação, seria melhor que fossem depostos. Finalmente, repudiou a acusação de que seu povo estaria participando das brigas.20 O magistrado endossou tudo que o regente tinha acabado de falar e encerrou a reunião.

Análise da situação social

Apresentei acima uma amostra típica dos meus dados de pesquisa de campo. Estes consistem de vários eventos que, embo rã ocorridos em diferentes partes da Zululândia do Norte e envolvendo diferentes grupos de pessoas, foram interligados pela minha presença e participação como observador. Através destas situações, e de seu contraste com outras situações não descritas, tentarei delinear a estrutura social da Zululândia moderna. Denomino estes eventos de situações sociais, pois procuro analisá-los em suas relações com outras situações no sistema social da Zululândia.

Todos os eventos que envolvem ou afetam seres humanos são sociais, desde a chuva ou terremoto até o nascimento e a morte, o ato de comer e defecar, etc. Se as cerimônias mortuárias são executadas para um indivíduo, esse indivíduo está socialmente morto; a iniciação transforma socialmente um jovem em um homem, qualquer que seja sua idade cronológica. Os eventos envolvendo seres humanos são estudados por muitas ciências. Assim, o ato de comer é objeto de análise fisiológica, psicológica e sociológica. O ato de comer é uma atividade fisiológica, quando analisado em relação à defecação, circulação sanguínea, etc. É uma situação psicológica, em relação à personalidade de um homem. É uma situação sociológica, em relação aos sistemas de produção e distribuição da comunidade, aos seus agrupamentos sociais, aos seus tabus e valores religiosos. Quando se estuda um evento como parte do campo da Sociologia, é conveniente tratá-lo como uma situação social. Portanto, uma situação social é o comportamento, em algumas ocasiões, de indivíduos como membros de uma comunidade, analisado e comparado com seu comportamento em outras ocasiões. Desta forma, a análise revela o sistema de relações subjacente entre a estrutura social da comunidade, as partes da estrutura social, o meio ambiente físico e a vida fisiológica dos membros da comunidade.

Inicialmente, devo salientar-que a situação principal estava se configurando pela primeira vez de uma forma particular na Zululândia. O fato dos zulus e dos europeus poderem cooperar na inauguração da ponte mostra que formam conjuntamente uma única comunidade com modos específicos de comportamento. Somente a partir desta perspectiva pode-se começar a entender o comportamento dos indivíduos da forma em que os descrevi. Apesar de parecer desnecessário, quero enfatizar este tipo de abordagem porque foi recentemente criticada por Malinowski em sua introdução aos ensaios teóricos sobre "cultura de contato" escritos por sete pesquisadores de campo. Malinowski ataca Shapera e Fortes por adotarem uma abordagem similar àquela que me foi imposta pelo meu material de pesquisa. Na segunda parte deste ensaio, examinarei a validade desta abordagem para o estudo da mudança social na África; aqui, quero somente salientar que a existência de uma única comunidade branco-africana na Zululândia deve necessariamente ser o ponto de partida, da minha análise.

Os eventos ocorridos na ponte Malungwana — que foi planejada por engenheiros europeus e construída por trabalhadores zulus, que seria usada por um magistrado europeu governando os zulus e por mulheres zulus indo a um hospital europeu, que foi inaugurada por funcionários europeus e pelo regente zulu numa cerimônia que incluiu não somente europeus e zulus, mas também ações historicamente derivadas das culturas européia e zulu — devem ser relacionados a um sistema no qual, pelo menos uma parte, consiste de relações zulu-européias. Essas relações podem ser estudadas enquanto normas sociais, como pode ser demonstrado pela maneira em que zulus e brancos adaptam, sem coerção, seu comportamento uns aos outros. Por isso posso empregar os termos Zululândia e zululandeses para abranger brancos e zulus conjuntamente, enquanto o termo zulu designa africanos somente.

Seria possível enunciar inúmeros motivos e interesses diferentes que causaram a presença de várias pessoas à inauguração da ponte. O magistrado local e sua equipe compareceram por dever profissional e organizaram a cerimônia porque estavam orgulhosos de dar ao distrito a contribuição valiosa da construção da ponte. De acordo com seu discurso, o comissário-chefe dos Nativos concordou em inaugurar a ponte para demonstrar seu interesse pessoal e dar relevância aos planos de desenvolvimento assumidos pelo Departamento de Assuntos Nativos. Uma consulta ao rol de europeus presentes à cerimônia mostra que aqueles do distrito de Mahlabatini que compareceram à inauguração tinham interesse governamental, ou pessoal, pelo distrito ou pela cerimônia. Além do mais, qualquer evento constitui uma recreação na monótona vida dos europeus numa reserva. A maioria dos europeus sente também obrigação em comparecer a esses eventos. Essas duas últimas razões poderiam ser atribuídas aos visitantes de Nongoma. O veterinário do governo e eu fomos atraídos à inauguração devido a laços de amizade e também pelo nosso trabalho. Podia observar-se que vários europeus levaram suas esposas, o que somente alguns poucos zulus cristãos (como Mshiyeni) fariam em situações similares.

Entre os zulus, o regente, honrado por ter sido convidado (o que não teria sido "necessário), veio, sem dúvida alguma, para mostrar seu prestígio e para reencontrar alguns de seus súditos que ele raramente vê. O escrivão zulu e a polícia governamental compareceram a serviço; o chefe Matole e os indunas locais vieram por se tratar de um evento importante no seu distrito. Os trabalhadores zulus, que tinham construído a ponte, sentiam-se especialmente honrados. Provavelmente muitos dos zulus presentes foram até lá atraídos pela festa, pela excitação e pela presença do regente.

Vimos que a vinda de Matolana e Richard à inauguração da ponte foi motivada pelas relações incomuns que mantinham comigo. Com exceção do grupo do regente, eles eram, juntamente com o zulu que acompanhava o veterinário do governo, os únicos zulus a viajarem de uma certa distância para comparecer à cerimônia. Para os zulus, a inauguração da ponte era um evento mais local do que para <os europeus. Esta é uma indicação da existência de maior mobilidade e comunicação entre os europeus, cujos grupos dispersos em reservas tribais têm um forte senso comunitário. Enquanto a maioria dos europeus de Nongoma sabia da inauguração, alguns zulus de Nongoma sequer sabiam da existência da ponte.

O magistrado local desejava exibir o término das obras da ponte. Por isso convidou europeus e zulus influentes e solicitou o comparecimento dos zulus locais em um dia especificamente estabelecido. Dessa maneira o magistrado focalizou todos os seus interesses na cerimônia. Foi também o magistrado local quem determinou a forma da cerimônia de acordo com a tradição de cerimônias similares em comunidades européias. Entretanto, acrescentou elementos zulus, onde fosse possível, para tornar plausível a participação dos zulus, provavelmente, também para dar um toque de cor e brilho à celebração (por exemplo, no lugar de um policial comum, colocou um guerreiro zulu em trajes marciais para indicar o caminho). De forma similar, após um hino ter sido cantado, o comissário-chefe dos Nativos sugeriu que a ponte fosse abençoada à maneira zulu. Po|tanto, a característica principal da cerimônia em si (guerreiros zulus marchando através da ponte, hinos, discursos, rompimento da fita, chás, etc.) foi determinada pelo fato de cultural europeia, vivendo em contato íntimo com a cultura zulu. Entretanto, o magistrado somente teve o poder de fazer o que fez como representante do governo e foi o governo que construiu a ponte. Na Zululândia, além do regente, somente o governo pode promover um evento de importância pública para zulus e europeus. Por isso, podemos dizer que foi o poder organizãtório do governo no distrito que deu uma fOfriia estrutural particular aos inúmeros elementos presentes na inauguração dá ponte. Da mesma forma, o poder governamental também deu forma estrutural à reunião em Nongoma. Por outro lado, quando Mshiyeni promoveu um encontro de 6.000 zulus na cidade de Vryheid para analisar os debates da primeira reunião do Conselho Nativo Representativo da Nação, apesar de funcionários europeus, policiais e espectadores estarem presentes, e os assuntos discutidos dizerem respeito principalmente às relações zulu-europeias, foram o poder e o capricho pessoal do regente, dentro do padrão herdado da cultura zulu, que orientaram o encontro. Isto é, o poder político tanto do governo quanto do rei zulu constituem hoje forças organizatórias importantes. Mas a polícia europeia estava presente na reunião do regente para ajudar a manter a ordem, embora isto não tenha sido necessário. Na realidade, durante a inauguração da ponte, o regente (como frequentemente faz em ocasiões semelhantes) roubou a celebração dos europeus e organizou uma festa própria.

O magistrado planejou a cerimônia, teve o poder para organizá-la dentro dos limites de certas tradições sociais e pôde fazer inovações de acordo com as condições locais. Mas, obviamente, a divisão das pessoas em grupos e muitas das ações não foram planejadas. A configuração subsidiária e não planejada dos eventos do dia tomou forma em conformidade com a estrutura da sociedade zululandesa moderna. Muitos dos incidentes que registrei ocorreram espontaneamente e ao acaso, como, por exemplo, o veterinário do governo discutindo com o induna, postado em guarda junto à ponte, sobre banhos parasiticidas dê gado; ou o missionário organizando o coral dos hinos. Entretanto, estes incidentes se encaixam facilmente num padrão geral, da mesma maneira em que situações semelhantes envolvendo indivíduos se amoldam em cerimônias funerárias ou de casamento. Portanto, a parte mais significativa das situações do dia — as configurações e as inter-relações de certos grupos sociais, personalidades e elementos culturais — solidificou um pouco mais a estrutura social e as instituições da Zululândia contemporânea.

Os presentes à cerimônia dividiam-se em dois grupos raciais: os zulus e os europeus. As relações diretas entre estes dois grupos eram predominantemente marcadas por separação e reserva. Enquanto grupos, reuniram-se em lugares diferentes, sendo impossível para eles confrontarem-se em condições de igualdade. Embora eu estivesse vivendo na propriedade de Matolana e tivesse grande intimidade com a sua família, tivemos que nos separar para nossas refeições, no ambiente cultural do hotel de Nongoma. Não poderia comer na cozinha com os zulus, tanto quanto eles não poderiam comer comigo no restaurante do hotel. A separação transparece através de todos os padrões de comportamento zulu-europeu. Entretanto, uma separação socialmente reforçada e aceita pode representar uma forma indireta de associação, na realidade uma cooperação, mesmo quando levada ao extremo do esquivamento, como testemunha o comércio clandestino na África Ocidental em tempos antigos. Esta separação envolve mais do que a diferenciação axiomaticamente presente em todas as relações sociais. Pretos e brancos são duas categorias que não devem se misturar, como é o caso das castas na índia ou as categorias de homens e mulheres em muitas comunidades. Por outro lado, embora em suas relações sociais um filho seja distinto de seu pai, também se tornará um pai. Na Zululândia, um africano nunca poderá transformar-se num branco e para os brancos, a manutenção desta separação é um valor dominante que transparece na política da assim chamada "segregação" e "desenvolvimento paralelo", termos esses que apresentam uma falta de conteúdo como tentarei Demonstrar na análise que se segue.

Apesar dos zulus e europeus estarem organizados em dois grupos na ponte, seu comparecimento ao evento implica estarem unidos na celebração de um assunto de interesse comum. Mesmo assim, o comportamento de um grupo em relação ao outro é desajeitado, o mesmo não ocorrendo no interior de cada grupo racial. De fato, as relações entre os grupos são muito frequentemente marcadas por hostilidade e conflito, o que, de certa forma, transparece tanto nas reclamações de Matolana contra o banho parasiticida do gado, como na existência de uma igreja separatista zulu.

A cisão existente entre os dois grupos raciais é em si o fator de sua maior integração em apenas uma comunidade. Eles não se separam em grupos de status similar: os europeus são dominantes. Os zulus não podiam entrar nas reservas dos grupos brancos exceto pedindo permissão, como no caso dos criados domésticos encarregados de servir chá. Entretanto, os europeus podiam movimentar- se mais ou menos livremente entre os zulus, observando-os e fotografando-os, apesar de poucos terem feito isso. Mesmo a xícara de chá oferecida ao regente, como tributo à sua realeza, foi-lhe servida fora da barraca dos europeus. A posição dominante dos europeus transparece em qualquer situação em que indivíduos dos dois grupos reúnem-se devido a um interesse em comum, abandonando a separação, como, por exemplo, na discussão verificada entre o veterinário do governo e os dois indumas sobre os banhos parasiticidas de gado, ou no fato do regente chamar qualquer europeu que encontra, mesmo aqueles que não ocupam/posição governamental, de nkosi (chefe), nkosana (chefe menor, se jovem) ou numzana (homem importante).

Os dois grupos diferenciam-se em suas inter-relações na estrutura social da comunidade da África do Sul, da qual a Zululândia constitui uma parte. Através dessas inter-relações, podem-se delinear separação, conflito e cooperação em modos de comportamento socialmente definidos. Além disso, os dois grupos também se diferenciam em relação a cor, raça, língua, crenças, conhecimento, tradições e posses materiais. No tocante à cooperação entre os dois grupos, estas diferenças são permeadas por hábitos de comunicação. Esses dois tipos de problemas envolvidos estão intimamente inter-relacionados, mas podem ser tratados separadamente, até certo ponto.

O funcionamento da estrutura social da Zululândia pode ser observado nas atividades políticas, ecológicas, etc. Politicamente, fica claro que o poder dominante está investido no governo do grupo branco, sob o qual os chefes são, num de seus papéis sociais, funcionários subordinados. O governo detém a autoridade suprema da força, da penalidade e do aprisionamento. Assim, pode paralisar os conflitos entre facções na tribo de Mandlakasi, muito embora o magistrado, que representa o governo, tente manter a paz através de funcionários zulus que lhe são subordinados. Apesar das efusivas boas-vindas dadas por Mandlakazi a Mshiyeni indicarem que a superioridade social de Mshiyeni é reconhecida, foi o poder do governo que o habilitou a interferir nos assuntos internos de uma tribo que havia se desligado da sua linhagem real zulu.

Atualmente, o governo é o agente dominante em todos os assuntos políticos. Embora um chefe nomeie seus indunas, havia comentários de que um induna estava procurando lisonjear o magistrado com a finalidade de conseguir poder político. Os zulus que ocupam posições governamentais constituem uma parte importante da máquina judicial e administrativa do governo. Têm como dever, em relação ao governo, manter a ordem, auxiliar a política governamental, assumir causas jurídicas, ajudar nos banhos parasiticidas de gado e muitos outros assuntos de rotina. Entretanto, não têm direito algum de julgar causas criminais importantes, sendo que somente o governo pode perseguir malfeitores (como, por exemplo, os ladrões de ovelhas) de um distrito a outro. Contudo, como resultado da divisão existente entre os dois grupos raciais, há uma diferença nas relações do povo zulu com os administradores governamentais europeus zulus. Tanto o comissário-chefe dos Nativos como o regente receberam a saudação real dos guerreiros mas, enquanto o comissário-chefe dos Nativos recebeu três vivas, a presença do regente e do chefe local motivou a entoação de canções tribais zulus. O comissário-chefe dos Nativos conversou com os zulus importantes que conhecia. Enviaram-lhe cerveja zulu, mas preferiu tomar chá com o grupo branco. O regente sentou-se com os zulus, tomou cerveja e conversou com eles, até muito depois dos europeus terem se dispersado. O governo forneceu uma cabeça de gado ao povo e o regente fui presenteado pelo povo com três cabeças de gado e cerveja, que o próprio regente distribuiu entre os presentes.

O governo não tem somente funções judiciais e administrativas, desempenhando também parte importante nas atividades ambientais. Mesmo nas informações precedentes, vimos que o governo construiu a ponte, que foi paga com os impostos coletados entre os zulus; emprega cirurgiões distritais, técnicos agrícolas e engenheiros; organiza os banhos parasiticidas e vendas de gado; e constrói estradas. Mesmo quando chefes é indunas participam neste tipo de empreendimento governamental, não o fazem tão facilmente quanto na organização judicial e administrativa.

Embora os chefes pudessem ter simpatizado com a facção em conflito dos Mandlakazi de uma forma que o magistrado compreenderia, concordavam com o magistrado que a paz numa tribo deve ser valorizada. Mas Matolana tinha uma série de reclamações sem fundamento científico contra os banhos parasiticidas, os quais avaliava num idioma cultural diferente daquele do veterinário do governo.29 Apesar de os zulus terem acolhido favoravelmente a construção da ponte e de Mshiyeni ter agradecido, em nome de seu povo, por tudo que o governo estava fazendo em prol dos zulus, em muitas ocasiões o povo julga que seus chefes têm o dever de manter oposição aos projetos governamentais.

Os zulus e europeus estão igualmente interligados no que se refere ao aspecto econômico mais amplo da vida da Zululândia. Eu havia salientado que os criados domésticos eram admitidos na barraca dos europeus e 'que a ponte foi planejada por europeus, mas construída pelos zulus. O recrutador de trabalhadores da Rand Gold Minas estava presente à inauguração da ponte; Estes fatos são indicativos do papel que africanos da Zululândia, bem como africanos de outras áreas, desempenham como trabalhadores não-qualifiçados nas atividades econômicas da África do Sul. Estavam presentes também à inauguração da ponte zulus que trabalham como policiais do governo e um escrivão zulu. Os zulus dependem do dinheiro que recebem dos europeus pelo seu trabalho, para pagar seus impostos (que custearam a construção da ponte e os salários de técnicos governamentais) e para comprar produtos vendidos por comerciantes europeus ou, ainda, para negociar gado com os europeus, através das vendas de gado promovidas pelo governo, cujo leiloeiro havia comparecido à inauguração da ponte. Os zulus dependem, em grande parte da sua subsistência, da lavoura que o governo está tentando melhorar através de seus técnicos em agricultura.

Esta integração econômica da Zululândia no sistema industrial e agrícola da África do Sul domina a estrutura social. O fluxo de trabalhadores inclui praticamente todos os zulus fisicamente capacitados. Em qualquer época, aproximadamente 1/3 dos homens do distrito de Nongoma está ausente, trabalhando longe da reserva. São organizados, por seus empregadores, em grupos de trabalho similares aos que existem em todos os países industriais. Parentes e membros de uma mesma tribo tendem a trabalhar e morar juntos nos acampamentos ou locações municipais. Alguns empregadores, como no caso das Minas Rand, agrupam deliberadamente seus trabalhadores de acordo com sua identidade tribal. Entretanto, nos locais de trabalho, os zulus encontram-se, lado a lado, com os bantus de toda a África do Sul. Apesar de sua nacionalidade zulu envolvê-los em conflito com membros de outras tribos, chegam a participar de agrupamentos cuja base é mais ampla que a nação zulu. Raramente estão sob a autoridade dos seus chefes, ^embora as Minas Rand e os acampamentos Durban empreguem simultaneamente príncipes zulus como induna e policiais. Os chefes visitam seu séquito de clientes na cidade para coletar dinheiro e conversar. Significativamente, mesmo as demonstrações de lealdade ao rei zulu em reuniões urbanas têm sido marcadas por alguns indícios de hostilidade. Apesar dos chefes zulus imporem-se enquanto tais em suas visitas, não têm, nos locais de trabalho, qualquer status legal sobre os indivíduos: as autoridades legais são os magistrados brancos, os supervisores de locação, a polícia, os administradores e empregadores. São somente os administradores brancos que mantêm a ordem e controlam as condições de trabalho, implementando contratos, promulgando leis, etc. O chefe zulu pode protestar oralmente, não mais que isso. Mesmo nas reservas, onde zulus vivem de agricultura de subsistência, e embora o grupo branco governe através de organizações zulus, aqueles que trabalham para europeus acabam subordinando-se, através desta relação particular, diretamente aos administradores brancos. O chefe zulu não tem a palavra em assuntos que envolvam membros de sua tribo e europeus. O governo e a Corporação de Recrutamento de Nativos das Minas Rand agem através dos chefes a fim de que as reivindicações dos zulus sejam expressas, e, ocasionalmente, pareçam ser atendidas por seu intermédio. Os chefes constantemente reivindicam melhor tratamento e salários mais altos para os trabalhadores zulas, ao mesmo tempo, estão sempre (Mshiyeni, em particular) incitando os homens de sua tribo a saírem para.

Uma tarefa importante do governo é manter e controlar o fluxo de mão-de-obra para satisfazer, se possível, as necessidades de mão-de-obra dos brancos. Além disso, tenta evitar que o fluxo de mão-de-obra resulte na fixação de grande número de africanos nas cidades. O trabalhador migrante zulu deixa sua família nas reservas, para as quais depois retorna. Isto inevitavelmente envolve o governo numa série de contradições, das quais luta para escapar. Nas reservas, a tarefa básica do governo é, manter a lei e a ordem, tendo, secundariamente (desde 1931-32), começado a desenvolver as reservas. O governo foi forçado a implementar as reservas, devido ao estado precário em que se encontravam em consequência da má agricultura e da excessiva alocação em terras inadequadas. Isso se deve, em parte, ao fluxo de mão-de-obra que proporciona dinheiro aos zulus para compensar as deficiências técnicas existentes nas reservas, sendo possível que a demanda dessa mão-de-obra possa, em última instância, tornar sem efeito o plano desenvolvimentista.

Não posso analisar aqui mais detalhadamente estas importantes questões. Como evidência de que o desenvolvimento é secundário, ao fluxo de mão-de-obra e às demandas nacionais, cito o caso das Minas Rand, que desejam tomar a iniciativa de desenvolver o Transkei, onde o empobrecimento das reservas tem debilitado a saúde da população em um de seus maiores reservatórios de mão-de-obra. Em segundo lugar, o magistrado de Nongoma deu início aos leilões, através dos quais os zulus podiam vender suas cabeças de gado nas feiras livres. As vendas fizeram muito sucesso, sendo que em um ano, aproximadamente, 10 mil cabeças de gado foram vendidas por 27 mil libras. Em 1937, houve escassez de mão-de-obra africana na África do Sul e, como os empreendimentos agrícolas europeus foram afetados, uma comissão governamental foi nomeada para investigar a situação. Cartas publicadas nos jornais de Natal atribuíram a escassez de mão-de- obra ao fato dos zulus terem permanecido em suas casas vendendo gado, ao invés de saírem para trabalhar (na realidade, as vendas de gado eram realizadas somente em três distritos).

O magistrado, que estava orgulhoso com o sucesso de suas vendas, aparentemente julgou que as mesmas estavam ameaçadas, pois em seu depoimento à Comissão frisou repetidamente que as vendas de gado de modo algum tinham afetado o fluxo de mão-de-obra. Entretanto um velho zulu, reclamando para mim dos salários baixos, disse: "um dia vamos dar uma lição na Corporação de Recrutamento. Vamos ficar em casa, vendendo nosso gado, sem sair para trabalhar". Devido à falta de espaço, deixarei de examinar as outras contradições da estrutura da África do Sul a partir da forma em que emergem na Zululândia.

Os chefes zulus têm pouca influência política nos aspectos econômicos fundamentais da vida da Zululândia. Não estão presentes para controlar a vida comunitária nos locais de trabalho, onde proliferam dormitórios para trabalhadores, grupos sociais e sindicatos que possibilitam a associação dos zulus com bantus de outras tribos e nações, e até mesmo de outros Estados brancos. Não examinarei estas situações em detalhe, pois coletei poucos dados a respeito.

Quanto aos sindicatos, há em Durban 750 africanos que pertencem a quatro diferentes sindicatos, estimando-se que aproximadamente 75% têm seus lares nas reservas. Em Johannesburg, há 16.400 africanos sindicalizados, 50% dos quais são das reservas, segundo estimativas da Secretaria do Comitê Conjunto dos Sindicatos Africanos. Os índices são irrisórios em relação ao número total de trabalhadores africanos. Em um encontro que contou com a presença de aproximadamente 6 mil zulus em Durban, além do regente, príncipes, chefes, missionários e professores, um organizador industrial africano também discursou num palanque como um dos líderes da nação, sendo bastante aplaudido. Os sindicatos africanos estão negociando para obter melhores condições para os trabalhadores, mas não têm ainda força política efetiva. Entretanto, a oposição africana à dominação europeia, liderada por capitalistas e trabalhadores qualificados, está começando a se expressar em termos industriais. Há, no entanto, pouca cooperação entre sindicalizados africanos e brancos.

Esta forma de agrupamentos nos locais de trabalho tem uma base completamente diferente da dos grupos tribais, que confere lealdade aos chefes. Entretanto, não parece estar radical mente em conflito com esta lealdade, mesmo quando depende da oposição aos brancos. As vidas dos trabalhadores migrantes zulus estão nitidamente divididas, sendo que as organizações às quais se associam nas cidades, juntamente com outros bantus, negros, indus e mesmo trabalhadores brancos, funcionam em situações distintas daquelas que demandam lealdade tribal. As duas formas provavelmente entrarão em conflito e o resultado dependerá da reação dos chefes às organizações sindicalistas. Atualmente, estas duas formas de agrupamento desenvolvem-se sob condições diferentes.

Mais adiante examinarei como a oposição zulu ao domínio europeu está expressa em organizações religiosas. Toda esta oposição — através de chefes, igrejas e sindicatos de trabalhadores — não é efetiva e no momento redunda principalmente em satisfação psicológica, pois a severidade da dominação europeia está aumentando.36 Por isso a oposição ocasionalmente irrompe em revoltas e ataques à polícia e funcionários,3'7 os quais são energicamente reprimidos. Estes eventos provocam reação violenta do grupo branco e, sem fundamento aparente mas à semelhança do pensamento moderno de feitiçaria e sem base em qualquer investigação, a acusação imediata das partes envolvidas é atribuída à propaganda comunista.

A ascendência política e econômica dos europeus sobre os zulus, como^ capitalistas e trabalhadores qualificados de um lado e camponeses e trabalhadores não-qualificados de outro, pode ser em alguns aspectos comparada com outros países. Em todos estes países, a estrutura pode ser analisada em termos similares de diferenciação e cooperação entre grupos econômicos e políticos. Na Zululândia, a estrutura tem adicionalmente características distintivas que, no todo, acentuam a separação dos dois grupos e dificultam sua cooperação. A diferenciação entre os dois grupos em relação a atividades políticas e ecológicas, feita flagrantemente com base em critérios de raça e cor,38 coincide com outras diferenças acima detalhadas. Ao descrever a situação, não esbocei estas diferenças com particular atenção e não pretendo aprofundar- me aqui nestes detalhes.

Podemos notar que os dois grupos falam línguas diferentes. O conhecimento da língua de cada grupo pelos membros do outro grupo possibilita a comunicação entre ambos os grupos, sendo a posição do intérprete uma instituição social que ultrapassa a barreira da língua. Na inauguração da ponte, ambos os recursos possibilitaram a cooperação dos dois grupos. Dentro de sua esfera isolada, cada grupo usa sua própria língua, embora palavras da outra língua sejam comumente usadas. O pidgin zulu-inglês- afrikaans3" desenvolveu-se como outro modo alternativo de comunicação.

Os dois grupos têm, no geral, modos de vida, costumes e crenças diferentes. Todos os europeus das reservas têm atividades especializadas; os zulus, apesar de também trabalharem para os europeus, são camponeses não-especializados com permissão de praticarem agricultura somente nas áreas que lhes são reservadas. Lá, os zulus vivem sob um tipo de organização social e por valores e costumes que são diferentes daqueles do grupo europeu, embora sejam afetados em todos os aspectos pela sua presença. Entretanto, mesmo onde as diferenças entre zulus e europeus são marcantes, eles adaptam seus comportamentos em modos socialmente determinados, quando se associam uns aos outros. Assim, funcionários europeus frequentemente fazem um esforço deliberado para satisfazer os grupos zulus, como se viu no uso de guerreiros zulus e no derramamento de bílis na inauguração da ponte. Além do mais, em situações de associação há um modo regular de reação de cada grupo em relação a certas práticas costumeiras do outro, mesmo quando os dois avaliam essas práticas diferentemente. Zulus pagãos permaneceram de pé e tiraram o chapéu durante a entoação dos hinos em inglês, tendo também aplaudido os discursos adotando costumes europeus. O comissário chefe dos Nativos aceitou a cerveja que lhe foi presenteada como um chefe zulu aceitaria, mas permaneceu separado do grupo zulu como um chefe zulu não poderia ter agido. Entretanto, ainda subsiste um campo amplo de costumes zulus que muito raramente aparecem nas suas relações com os europeus, exceto o fato de que todas as relações entre os zulus transparecem para o governo, em termos de leis e administração.40 O grupo europeu também tem sua cultura distinta, aliada às culturas dos países europeus ocidentais, porém completamente marcada por suas relações com os africanos.

Existe também a base material da diferenciação e cooperação entre zulus e europeus. Na situação descrita, a cooperação está centrada na ponte e no rio a ser cruzado, sendo a mesma geralmente determinada pela mútua exploração, mesmo que diferenciada e separada, dos recursos naturais. Os bens materiais dos indivíduos que pertencem aos grupos diferem amplamente, tanto em quantidade como em qualidade e técnicas de uso. Alguns pou- cos zulus também possuem alguns bens que são comuns entre os europeus, como carros, rifles e boas casas. Nas reservas, os zulus possuem mais terras e gado que os europeus que lá residem, mas, por toda a nação, a distribuição diferenciada de terra entre africanos e europeus tem um efeito importante nas suas relações. Não tenho espaço para discutir a riqueza relativa de zulus e europeus e é difícil computá-la; os salários nos centros de mão-de-obra, onde praticamente cada zulu é um trabalhador assalariado, são bem mais baixos para africanos do que para brancos. Nas reservas da Zululândia do Norte (mas não em algumas reservas do sul ou em propriedades agrícolas européias), a maioria dos zulus tem terra e gado suficiente para suas necessidades imediatas, sendo que alguns deles têm grandes rebanhos. Seu padrão de vida é notadamente mais baixo do que o dos europeus nas reservas. Nos dois grupos existe também uma distribuição diferenciada de bens entre os indivíduos. Como a separação em grupos raciais representa, para o grupo branco, padrões de vida ideais, e como muitos brancos estão abaixo enquanto africanos estão ascendendo acima destes padrões, isto tem efeitos importantes nas relações entre africanos e brancos.41 O desejo dos zulus por bens materiais dos europeus e a necessidade dos europeus do trabalho zulu, bem como a riqueza obtida por este trabalho, estabelecem interesses fortes e interdependentes entre os dois grupos. É, também, uma fonte latente de seus conflitos. No grupo zulu, os polígamos que precisam de muita terra, homens com grandes rebanhos de gado, homens que desejam ardentemente a riqueza europeia, e outros, constituem diferentes grupos de interesse. Por isso, a posse de bens materiais diferentes entre os dois grupos dificulta a diferenciação baseada em critério racial.

Deve-se acrescentar que as relações entre indivíduos zulus e europeus variam de inúmeros modos em termos de norma social geral, apesar de serem sempre afetadas por essa norma. Existem relações impessoais e pessoais entre zulus e europeus. As relações do comissário-chefe dos Nativos com seus milhares de súditos zulus é impessoal, mas com Mshiyeni e. Matolana, sua relação é também pessoal. Onde quer que zulus e europeus, se agrupem, acabam desenvolvendo relações pessoais de diferentes tipos, ainda que sempre afetadas pelo padrão típico de comportamento. Eu, como antropólogo, estava em condições de me tornar um amigo íntimo dos zulus, de uma forma que os outros europeus não conseguiriam. E fiz isto devido a um tipo especial de relação social reconhecido como tal pelas duas raças. Mesmo assim nunca pude ultrapassar completamente a distância social entre nós existente.

Dentro de ambientes sociais especiais, europeus e zulus têm relações amigáveis, como acontece em missões, centros de treinamento de professores, conferências conjuntas bantu-européias, etc. Nesse caso, cordialidade e cooperação são a norma social, afetadas pela norma mais ampla de separação social. Em outras relações sociais — entre administradores governamentais e seus súditos, e empregadores brancos e empregados africanos, técnicos governamentais e seus assistentes — as relações pessoais desenvolvem- se de modo a facilitar ou exacerbar as relações entre os dois grupos raciais. Como exemplo do primeiro tipo de relações (cordialidade e cooperação), cito a maneira com que o veterinário do governo preocupou-se em ajudar seu auxiliar africano, pedindo esclarecimentos sobre a lei zulu referente ao adultério. O veterinário informou-se sobre o assunto com Matolana porque tinha estabelecido, por meu intermédio, relações mais próximas e mais cordiais com meus amigos zulus do que com outros zulus. Alguns empregadores brancos tratam bem seus criados zulus, respeitando os como seres humanos; outros os tratam somente como empregados, enquanto outros, ainda, praguejam e espancam42 seus empregados constantemente. Embora seja ilegal na África do Sul e seja socialmente desaprovado pelos dois grupos, brancos mantêm relações sexuais com zulus.

Estas relações pessoais, que dependem em parte de ambientes sociais específicos na organização social e em parte de diferenças individuais, constituem às vezes grupos diferentes na estrutura social. São, frequentemente, variações de normas sociais e têm efeitos importantes sobre estas mesmas normas que, por sua vez, sempre afetam essas relações. Posso observar que cada grupo escolhe prestar atenção exatamente às ações do outro grupo que são totalmente fora de proporção, por serem as que melhor se ajustam aos seus valores. Por exemplo, os fazendeiros europeus que residem nas proximidades das reservas têm a fama de mal- tratarem seus empregados zulus. Indepentemente desta reputação ser justificada ou não, os zulus são sempre capazes de citar casos individuais de maus-tratos para reafirmar a crença social. Se apenas um dos fazendeiros tratar bem seus empregados zulus, sua atitude não afetará a imagem que os outros zulus têm dele, ou a imagem que seus empregados zulus têm dos outros fazendeiros. Mesmo se a maioria dos fazendeiros tratasse bem seus empregados zulus, os zulus não poderiam generalizar a partir de suas próprias experiências. E como o bom tratamento é rapidamente esquecido e a opressão sempre lembrada, a crença social permanecerá, mesmo que inúmeros fazendeiros tratem bem seus empregados. Similarmente, uma mera sugestão de um zulu ter feito investidas sexuais sobre uma garota europeia foi o suficiente para provocar violenta animosidade entre muitos brancos em relação aos zulus, na base de que todos os africanos tinham desejos sexuais por mulheres brancas. Na realidade, durante muitos anos nada parecido havia ocorrido na Zululândia.

Passo agora a considerar uma relação particular entre os zulus e os europeus, que também constitui uma divisão social dentro do grupo africano, a divisão entre pagãos e cristãos. Durante o canto dos hinos, sob a direção do missionário, essa cisão era marcante, apesar dos pagãos juntarem-se aos cristãos e os cristãos aos pagãos. Todos os cristãos usam somente roupas europeias enquanto, com exceção das autoridades políticas importantes, poucos pagãos o fazem. Mas os pagãos tiraram seus chapéus durante o hino europeu e os cristãos cantaram o > ihubo. Ambos comeram e beberam com o regente. Ambos estavam presentes à reunião de Nongoma. Isso porque a cisão não é absoluta. Observei, além do mais, que enquanto meu criado Richard é cristão, Matolana é pagão; Richard, tanto quanto seus irmãos pagãos, com quem vive, deve tratar Matolana como um pai. Cristãos e pagãos saudaram o regente. O regente, que é cristão, tomou providências para que a bílis fosse derramada na ponte. Acima de tudo, cristãos e pagãos não podiam misturar-se aos europeus.

A cisão entre cristãos e pagãos está entremeada por laços de parentesco, cor, aliança política e cultura. O grupo de zulus cristãos está associado — em certas situações e sob certos critérios — ao grupo de europeus, opondo-se ao grupo de pagãos. Entretanto, sob outros critérios e em outras situações, é parte do grupo zulu como um todo, em oposição ao grupo europeu como um todo. Dentro de sua composição enquanto grupo cristão, conta também com a participação do missionário branco. Este permaneceu com os europeus até que se dispersassem. Somente abandonou sua filiação ao grupo branco e juntou-se ao grupo zulu para organizar o canto dos hinos, cristalizando, dessa forma, a divisão social dos zulus em cristãos e pagãos, Esta filiação dos zulus cristãos aos dois grupos raciais cria uma certa tensão entre cristãos e zulus pagãos, que é resolvida apenas parcialmente pelos laços que mantêm em comum. Esta tensão reflete-se na existência da seita separatista zulu, cristã, cujo líder levei a Nongoma. Esta seita, que é uma dentre muitas outras, aceita alguns dogmas e crenças do cristianismo com base em crenças de bruxaria, porém protesta contra o controle europeu sobre as igrejas zulus e, por isto, não está ligada aos europeus, como as outras igrejas que são controladas pelos europeus.

Outras relações entre os zulus e os europeus, acima discutidas, podem também ser consideradas como constituindo divisões sociais dentro do grupo africano, mesmo que não sejam tão formalizadas quanto a divisão existente entre cristãos e pagãos. Eu mencionei o efeito da diferenciação da riqueza. Poderíamos classificar os zulus entre aqueles que trabalham e aqueles que não trabalham para os europeus mas, como quase todos os zulus fisicamente capacitados o fazem durante uma, parte do ano, tomariam parte, em diferentes períodos, de grupos diferentes. Entretanto, se o critério da classificação estabelecer que devemos separar os zulus que são empregados permanentemente pelo governo (funcionários burocráticos, técnicos assistentes africanos, policiais e mesmo indunas e chefes), temos um grupo cujo trabalho e interesses coincidem com os do governo, enquanto que os dos outros zulus frequentemente não coincidem. A mesma observação se aplica àqueles zulus que desejam vender seu gado, que estão ansiosos para melhorar sua agricultura ou ir para escolas e hospitais. Pode-se também notar que estes são geralmente cristãos. A divisão, baseada nestes critérios, torna-se flagrante nas reuniões magistratoriais onde os cristãos estão mais dispostos que os pagãos a apoiar o magistrado, ^o que constitui uma fonte de conflitos entre cristãos e pagãos, portanto, a associação de certos zulus com europeus, bem como com seus valores e crenças, cria grupos entre os zulus que transpassam. em certas situações, a separação dos interesses dos africanos e dos brancos, enfatizando, porém, suas diferenças.

Outras divisões que apareceram dentro do grupo zulu durante o dia, embora afetadas pelas relações africano-brancas, têm tradição de continuidade na organização social da Zululândia, anterior à ocupação britânica. Os zulus dividiam-se em tribos que mais tarde foram divididas em seções tribais e distritos administrativos. Nesta nova organização política, há uma hierarquia definida de príncipes do clã real zulu e de plebeus, de regente e chefe induna da nação, chefe Mandlakazi, além de outros chefes indunas. Alguns destes grupos políticos e administradores são unidades no sistema de dominação do governo europeu, conforme ficou demonstrado quando, na reunião em Nongoma, o magistrado interferiu nas relações locais. Ainda assim, embora sejam parte do sistema governamental, são também grupos com base tradicional, o que atualmente lhes confere uma importância em relação aos zulus que não é somente administrativa.

Apesar do regente não ter sido oficialmente reconhecido pelo governo como chefe da nação Zulu, todos os zulus respeitam a sua supremacia.44 É parcialmente através de sua organização política que os zulus têm reagido à dominação europeia, pois as autoridades políticas zulus recebem lealdade de seus súditos, não somente como burocratas do governo ou devido ao sentimentalismo e conservadorismo, mas também porque parte da tensão política contra o governo é expressa nessa lealdade.45 Na vida social da Zululândia moderna, esta organização política é importante, pois determina os agrupamentos nos casamentos, os círculos de amigos nas cidades, os pactos de aliança em conflitos entre facções e as rodas de cerveja. Além do mais, as casas dos chefes e indunas são tanto um centro da vida comunitária como de administração. Esta divisão em tribos cria uma fonte de dissensão dentro do grupo zulu, pois as tribos são hostis entre si. Além disso, os zulus sentem sua comunidade como uma nação, tanto em relação a outras nações Bantu quanto em relação aos europeus. Entretanto, deve-se salientar que os zulus estão cada vez mais unindo-se a outros Bantu, em um único grupo africano.

Finalmente, deve-se observar que os zulus, tanto quanto outros bantus, expressam em certas ocasiões forte lealdade iao governo, como nesta e na última guerra. Dentro de um distrito, um administrador governamental, que é popular, pode ganhar a amizade e a lealdade dos zulus, porque para eles é importante e agradável tê-lo no cargo. Mas ainda não entendo a lealdade dos zulüs ao governo e em parte, resultado da dependência do chefe zulu ao governo, e, em parte, porque expressam seus fortes sentimentos guerreiros em tempo de guerra.

O último conjunto de agrupamentos a ser mencionado é aquele constituído por sítios habitados por um grupo de agnatas com suas esposas e filhos. O sítio de Matolana comportava, na época, o próprio Matolana, três esposas, um filho de vinte e um anos de idade que ficou noivo quando trabalhava em Johannesburg (depois que se casou passou a morar lá com sua esposa e filho), quatro outros filhos cujas idades variavam entre dez e vinte anos, dos quais os dois mais jovens são cristãos, e mais três filhas. Uma irmã classificatória de Matolana também lá pousava freqüentemente, tendo ali se casado, apesar de sua própria residência ser em outro lugar. Um de seus filhos, com doze anos, arrebanhava o gado para o marido de uma das outras irmãs de Matolana, num sítio que distava aproximadamente uma milha. Perto do sítio de Matolana, localizavam-se os sítios de dois de seus irmãos; um era irmão por parte da mãe e o outro, por parte de um avô comum. O meio irmão deste último (por parte de pai) era considerado parte do mesmo umdeni (grupo de parentesco local), embora residisse em território vizinho pertencente à tribo Amateni. O sítio de Richard ficava próximo ao de Matolana. Richard e sua esposa eram os únicos cristãos que lá residiam, sendo o líder do sítio seu irmão mais velho, abaixo do qual estava outro irmão, depois Richard e então o irmão mais novo. Todos eram filhos de uma mesma mãe, que também morava com eles. Todos os irmãos eram casados, cada um dos dois mais velhos tinha duas mulheres e todos tinham filhos. Este sítio foi recentemente mudado, sendo que Richard construiu a sua moradia um pouco à distância das de seus irmãos porque queria uma cabana mais permanente. Perto deste sítio Ntombela havia quatro outros sítios Ntombela (Ntombela é o sobrenome de um clã), além do sítio de um homem cuja mãe era uma Ntombela. Ela havia se casado longe dali, mas deixou seu marido para morar no distrito de seu pai.

Estes grupos de sítios agnaticamente relacionados, de muitos clãs diferentes, distribuem-se por todo o país; estão relacionados a grupos similares de seu próprio clã, através de laços agnáticos, e a outros grupos, através de laços de matrimônio e afinidade. Mesmo onde não existem laços de parentesco entre vizinhos, as relações são geralmente baseadas em termos amigáveis de cooperação.

Grande parte da vida de uni zulu é dispendida nesses agrupamentos de parentes e vizinhos. Se possível, um zulu associasse às mesmas pessoas nas cidades, como nas reservas. Os agrupamentos de parentes constituem particularmente fortes unidades cooperativas, seus membros ajudando-se mutuamente e dependendo uns dos outros. Possuem terras em proximidade umas das outras, arrebanham seu gado conjuntamente, dividem as atividades agrícolas, frequentemente trabalham juntos em áreas europeias, e ajudam-se em conflitos e em outras atividades. Estão sujeitos às suas próprias tensões, tensões essas que explodem em brigas e culminam em processos judiciais e acusações de bruxaria, resultando às vezes na divisão dos sítios e de seus grupos de residência. Entretanto, nos grupos onde existem fortes ligações sentimentais, as tensões causadas por conflitos de filiação a outras divisões no grupo zulu são parcialmente resolvidas.

Embora muitos pagãos se oponham e sejam hostis ao cristianismo, afirmando que essa religião está abalando a cultura e a integridade zulu, não discriminam entre seus parentes cristãos e pagãos. Há fortes laços na vida familiar, capazes de superar a clivagem entre cristãos e pagãos, entre homens progressistas que adotam costumes europeus e aqueles que não os adotam. Por outro lado, o efeito dos novos costumes está se fazendo sentir cada vez mais, especialmente nestes grupos, sendo que os laços de parentesco estão se enfraquecendo. Por isso, quando tratarmos dos problemas referentes à mudança social, veremos que o grupo europeu influencia marcadamente o comportamento destes grupos zulus, através dos cristãos que moram com seus parentes pagãos e os jovens que moram com seus parentes mais velhos.

Podem-se, igualmente, delinear divisões sociais dentro do grupo branco e examinar sua relação com a principal organização em dois grupos raciais. Tal estudo não faz, a priori, parte do escopo de minha investigação, mas este tipo de informação é levado em consideração desde que seja relevante às relações zulu-brancas ou à estrutura interna do grupo zulu. Já me referi às relações entre funcionários do governo, missionários, comerciantes, empregadores, técnicos especializados, de um lado, e zulus do outro. Aqui quero indicar alguns problemas que surgem, quando consideramos as relações entre esses europeus. Uma análise dos, valores, interesses e motivos que influenciam em diferentes períodos os europeus como indivíduos mostraria que, de acordo com a situação, poderiam fazer parte, exatamente como os zulus, de agrupamentos diferentes na estrutura social da Zululândia. Vimos que o missionário até uniu-se temporariamente ao grupo zulu, abandonando o grupo branco. O encontro harmonioso na inauguração da ponte é uma característica das relações entre zulus e brancos no território das reservas. Entretanto, isto não ocorreria facilmente nas fazendas europeias ou nas cidades, onde os conflitos entre os grupos são maiores.

Enfatizei que os funcionários governamentais fazem um esforço deliberado para satisfazer os zulus e devo salientar que isto também é mais comum nas reservas. Embora funcionários sejam obrigados a implementar as decisões do governo branco, muitos deles tornam-se pessoalmente ligados ao povo zulu durante a rotina da administração. Como eles prezam seu trabalho, desejam que seus distritos progridam e estão interessados no bem-estar dos habitantes, tomam ocasionalmente, o partido dos zulus contra q grupo branco, cuja dominação representam. Controlam, em nome do governo, as relações dos comerciantes, recrutadores e empregadores com os zulus, frequentemente a favor dos interesses dos zulus. Assim, às vezes, quando afetados em seus interesses, estes outros grupos de europeus se opõem ao trabalho da administração. Mais frequentemente, seus interesses vis-à-vis entram em conflito, tanto quanto entre os grupos constituídos de acordo com cada tipo de empreendimento europeu. Contudo, unem-se como um todo contra o grupo africano, quando agem como membros do grupo branco em oposição ao grupo africano. Alguns missionários frequentemente tomam o partido dos zulus contra a exploração dos brancos, mas deve-se acrescentar que estão, ao mesmo tempo, influenciando os zulus a tornarem-se mais dispostos a aceitarem os valores europeus e consequentemente sua dominação, muito embora a barreira racial possa forçar muitos a se tornarem hostis.

Tentei delinear o funcionamento da estrutura social da Zululândia, em termos das relações entre grupos, tendo indicado algumas das complexidades que permeiam essas relações, já que uma pessoa pode pertencer a inúmeros grupos que estão às vezes em oposição entre si ou unidos contra outro grupo. Como muitas relações e interesses podem interseccionar-se em uma pessoa, exemplificarei brevemente o que ocorre no comportamento dos indivíduos. Já fiz algumas sugestões a respeito, ao analisar o grupo cristão: vimos que o missionário branco juntou-se por algum tempo aos zulus após os outros brancos terem se dispersado e que Richard era influenciado por seus laços de parentesco com pagãos e por modos de comportamento comuns a cristãos e pagãos. Há outros exemplos. Matolana saudou um policial do governo como um príncipe zulu, logo após passou a fazer reclamações sobre o mau tratamento que o governo lhe dispensava, muito embora ele próprio fosse um representante governamental. Matolana ajudou a prender um ladrão para o governo; em prol de seu povo, protestou ao veterinário do governo sobre o banho parasiticida; ficou exultado com a possibilidade de ajudar e trabalhar para o regente; ponderou que seria mais lucrativo abandonar sua posição política junto ao governo e ao regente para trabalhar para si próprio. Na reunião de Nongoma, um policial do governo, que também é um príncipe Mandlakazi, reclamou contra a ajuda dos Usuthu do distrito de Matolana à facção em conflito com sua facção tribal, embora ele próprio tenha agido como um policial do governo em uma briga entre essas mesmas facções. Na ponte, funcionários auxiliares e policiais zulus do governo uniram-se ao grupo dos zulus, permanecendo isolados dos brancos, a quem têm o dever de ajudar a governar o país.

Os grupos principais de brancos e zulus estão divididos em grupos subsidiários, formalizados e não formalizados, sendo que, de acordo com os interesses, valores e motivos que determinam seu comportamento em situações diferentes, o indivíduo modifica sua participação nesses grupos. Apesar de eu ter realizado a minha análise através de agrupamentos, uma outra análise, em termos de como valores e crenças determinam o comportamento dos indivíduos, chegaria a conclusões similares. Como sociólogo, estou interessado em estudar as relações dos grupos formados por estes interesses e valores, bem como os conflitos causados pela participação de um indivíduo em diferentes grupos.

Para resumir a situação na ponte, pode-se dizer que o comportamento dos grupos e indivíduos presentes expressava o fato da ponte, que era o centro de seus interesses, tê-los unido numa cerimônia comum. Como resultado de seu interesse comum, agiram segundo os costumes de cooperação e comunicação, apesar dos dois grupos raciais estarem divididos de acordo com o padrão da estrutura social. Igualmente, a celebração uniu os participantes dentre cada grupo racial, apesar deles terem se separado de acordo com as relações sociais existentes no interior do grupo. Nesta situação de cooperação, o poder do governo e a base cultural dos seus representantes organizam as ações dos grupos e indivíduos dentro de um padrão que exclui o conflito. Grupos menores separam-se com base em interesses comuns e, se isso for apenas devido à localização espacial (exemplo: cristãos e pagãos), não entram em conflito um com outro.46 Nesta situação todas estas reuniões grupais, incluindo a concentração geral na ponte, são harmoniosas devido à ponte ser o fator central, constituindo-se em uma fonte de satisfação para todas as pessoas presentes.

Através da comparação desta situação com inúmeras outras situações, seremos capazes de delinear o equilíbrio da estrutura social da Zululândia em um certo período do tempo. Por equilíbrio, entendo as relações interdependentes entre partes diferentes da estrutura social de uma comunidade em um período particular. Devo acrescentar, como sendo de fundamental importância para esta análise, que a hegemonia do grupo branco (que não apareceu na minha análise) é o fator social principal na manutenção deste equilíbrio.

Tentei _ mostrar que, no período atual, a estrutura social da Zululândia pode ser analisada como uma unidade funcional, em equilíbrio temporário. Vimos que a existência de dois grupos de cor em cooperação dentro de um única comunidade constitui a forma predominante dessa estrutura. Esses dois grupos estão diferenciados por um grande número de características que os leva a se oporem e até mesmo a serem hostis entre si. O grupo branco domina o grupo zulu em todas as atividades nas quais cooperam, sendo que, embora afete todas as instituições sociais, esta dominação somente se expressa em algumas delas. A oposição desigual entre os dois grupos raciais determina o caráter de sua cooperação. Interesses, crenças, valores, tipos de empreendimentos e variações de poder aquisitivo diferenciam grupos menores dentro de cada grupo racial. Há uma concordância entre alguns destes grupos que transpassa as fronteiras de cor, interligando os grupos raciais através da associação de alguns de seus membros numa identidade de interesses temporária. Entretanto, o equilíbrio entre estes grupos é afetado pelas relações raciais de conflito e cooperação, de modo que cada um destes grupos une os grupos raciais por um lado, enfatizando, por outro, sua oposição. As mudanças de participação nos grupos em situações diferentes revela o funcionamento da estrutura, pois a participação de um indivíduo em um grupo particular em uma situação particular é determinada pelos motivos e valores que o influenciam nesta situação. Os indivíduos podem, assim, assumir vidas coerentes através da seleção situacional de uma miscelânea de valores contraditórios, crenças desencontradas, interesses e técnicas variadas.

As contradições transformam-se em conflitos na medida em que a frequência e importância relativas das diferentes situações aumentam no funcionamento das organizações. As situações que envolvem relações entre africanos e brancos estão rapidamente tornando-se as dominantes, sendo que um número cada vez menor de zulus está se comportando como membro do grupo africano em oposição ao grupo branco. Estas situações, por sua vez, afetam as relações entre os africanos.

Assim, as influências de valores e grupos diferentes produzem fortes conflitos na personalidade do indivíduo zulu e na estrutura social da Zululândia. Estes conflitos fazem parte da estrutura social, cujo equilíbrio atual está marcado por aquilo que costumamos normalmente chamar de desajustamentos. Os próprios conflitos, contradições e diferenças entre e dentre grupos zulus e brancos, além dos fatores que ultrapassam estas diferenças, constituem a estrutura da comunidade zulu-branca da Zululândia.

São exatamente estes conflitos imanentes no interior da estrutura da Zululândia que irão desencadear seu futuro desenvolvimento. Através da definição precisa desses conflitos em minha análise do equilíbrio temporário, espero poder relacionar meu estudo seccional comparativo ao meu estudo de mudança social.
Portanto, sugiro que, para estudar a mudança social na África do Sul, o sociólogo deve analisar o equilíbrio da comunidade africana-branca em diferentes períodos de tempo e mostrar como sucessivos equilíbrios estão relacionados entre si. Na segunda parte deste ensaio espero examinar mais profundamente este processo de desenvolvimento na Zululândia. Analisarei a alteração e o ajustamento da estabilidade dos grupos (a mudança no equilíbrio) envolvidos, durante os últimos 120 anos, na constituição da comunidade da Zululândia em grupos raciais de culturas relativamente diferentes.

Roteiro de leitura – Antropologia II
GLUCKMAN, Max "Análise de uma Situação Social na Zululândia Moderna" In. BIANCO, Bela Feldman (Org.). Antropologia das Sociedades Complexas. São Paulo,
Ed. Global, 1986. (pp. 237 a 365)

1. Como o autor define "situação social"?

Portanto, uma situação social é o comportamento, em algumas ocasiões, de indivíduos como membros de uma comunidade, analisado e comparado com seu comportamento em outras ocasiões. Desta forma, a análise revela o sistema de relações subjacente entre a estrutura social da comunidade, as partes da estrutura social, o meio ambiente físico e a vida fisiológica dos membros da comunidade.

2. Por que ele faz uma descrição minuciosa da inauguração de uma ponte, detalhando o cerimonial, os diferentes usos do espaço pelos grupos, vestimentas dos participantes, e outros? Como isso se relaciona com o método de análise situacional?



3. O que a análise situacional revela?

4. O autor afirma que é possível tratar da Zululândia como uma única comunidade de zulus e brancos. Destaque um exemplo do texto que demonstre essa afirmação.

5. Como a diferença entre brancos europeus e zulus, ou colonizadores e nativos, é sentida na Zululândia? Dê um exemplo político, econômico ou religioso (segundo divisão proposta pelo próprio autor) para justificar sua resposta.

6. Por que o autor recorre a documentos históricos?

7. Como o autor entende a noção de "estrutura social"?

8. Qual o lugar do equilíbrio na análise de Gluckman? E da mudança e do conflito? Como isso se relaciona com a escola estrutural-funcionalista da qual ele faz parte?

9. Como o autor define "cultura"? Como ele discute as possibilidades de mudança cultural.

10. Como o autor relaciona o sistema econômico zulu ao sistema capitalista mais amplo?

11. Como o autor define "equilíbrios repetitivos" e "sistemas em transformação"?

12. Gluckman aposta no conflito como parte importante do seu modelo analítico e vê os indivíduos como seres dotados de agência social. Como isso é percebido nesse texto?

 



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