Texto base: Ensaio sobre a dádiva (Marcel Mauss) por Nádia Aguiar Parte
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Ensaio sobre a dádiva, também conhecido como Ensaio sobre o "dom" (no original francês: Essai sur le don: forme et raison de l'échange dans les societés archaiques - “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas” é um livro de Marcel Mauss publicado pela primeira vez em 1925 que versa sobre os métodos de troca nas sociedades tidas como primitivas. É reconhecido como o estudo de caráter etnográfico, antropológico e sociológico mais antigo e importante sobre a reciprocidade, o intercâmbio e a origem antropológica do contrato.[1]
Os aspectos históricos do que hoje entendemos como direito das obrigações são também abordados nesse livro inclusive quanto ao aspecto (diacrônico) da origem da distinção, nas sociedades semíticas, grega e romana, entre a obrigação e a prestação não gratuita e a dádiva. Aquisições recentes da civilização, segundo ele,[2]
com possível origem em fase anterior, sem a mentalidade fria e
calculista de dádivas trocadas, onde se fundem pessoas e coisas tal como
pode ser deduzido em vestígios do direito romano, ou nitidamente nas leis da Germânia, ou Código de Manu da Índia antiga.
Sinopse interpretativa
O ensaio de Mauss discorre acerca do modo como o comércio de objetos
entre os grupos constrói relacionamentos entre eles. Sustentou que, ao
doar ou dar um objeto (presente), o doador cria uma obrigação face ao
receptor que fica de lhe devolver o presente. O resultado de tal
conjunto de trocas que ocorrem entre indivíduos de um grupo e entre
diferentes grupos corresponde a uma das primeiras formas de economia
social e da solidariedade social que une os grupos humanos. As doações
recíprocas estabelecem relações de fortes alianças, hospitalidade,
proteção e assistência mútua.
O ensaio está construído com base numa ampla gama de estudos
etnográficos de distintos grupos humanos. Mauss aproveitou a experiência
e os dados dos estudos Bronislaw Malinowski o intercâmbio do kula registrado entre habitantes das Ilhas Trobriand; a instituição do Potlatch dos índios da costa do Pacífico no Noroeste da América do Norte e outros estudos etnográficos de povos da Polinésia
que mostram a prática generalizada de troca de presentes em sociedades
não européias. Analisa simultaneamente a história da Índia, e sugere que
os traços de troca de presentes também podem ser encontradas nas
sociedades mais desenvolvidas. Nas conclusões do livro, Marcel Mauss
sugere que as sociedades seculares industrializadas, poderiam beneficiar
ao reconhecerem a prática das dádivas e doações (troca de presentes).
Para Levi-Strauss,
autor do ensaio "Introdução à obra de Marcel Mauss”, o “Ensaio sobre a
dádiva” é a obra prima de Mauss. Foi nesse texto, segundo ele, que Mauss
introduziu e impôs a noção de fato social, que apresenta-se com um
caráter tridimensional, fazendo coincidir a dimensão propriamente
sociológica, com seus múltiplos aspectos sincrônicos; a dimensão
histórica ou diacrônica; e, por último, a dimensão físico-psicológica.[3]
O mérito de Mauss, ainda segundo esse autor foi o facto de, pela
primeira vez no pensamento etnológico, transcender a experiência
empírica – da descrição e comparação erudita ou anedótica – para formas
comparáveis entre si por seu caráter comum, em modalidades que podem
analisadas e classificadas, inaugurando uma nova era das ciência
sociais.
Para Bourdieu[4]
é indispensável, a quem quiser compreender adequadamente o dom,
afastar-se não só da filosofia da consciência, que considera como
princípio de toda ação uma intenção consciente, mas também do
economicismo que não conhece outra economia que a do cálculo racional e
do interesse reduzido ao interesse econômico (o “toma lá, dá cá”). Esse
autor considera ainda aberta a possibilidade de desenvolvimento nas
sociedades, o equivalente à revolução simbólica que desenvolveu a
economia do dom, que se baseia em uma denegação do econômico (em sentido
estrito), busca a acumulação do capital simbólico (como capital de
reconhecimento, honra, nobreza etc.), e que se efetua, sobretudo,
através das trocas de dons, de palavras, de desafios e réplicas, de
mulheres etc.) reafirmando as idéias de Mauss sobre essa possibilidade
de desenvolvimento da generosidade.
Estrutura da obra
- Introdução. Epígrafe. Programa. Método seguido
- Prestação, dádiva e potlatch
- 1.- As dádivas trocadas e obrigação de retribuí-las (Polinésia)
-
- 1.1. Prestação total, bens uterinos contra bens masculinos (Samoa)
- 1.2. O espírito da coisa dada (Maori)
- 1.3. Outros temas: a obrigação de dar, a obrigação de receber
- 1.4. Observação. O presente dado aos homens e o presente dado aos deuses
-
- Outra observação sobre a esmola
- 2.- Extensão desse sistema. Liberalidade, honra, moeda
-
- 2.1. Regras da generosidade. Ilhas Andaman
- 2.2. Princípios, razões e intensidade das trocas de dádivas (Melanésia)
-
- Nova Caledônia
- Trobriand
- Outras sociedades melanésias
- 2.3. Noroeste da América do Norte
- 3.- Sobrevivência desses princípios nos direitos antigos e nas economias antigas
-
- 3.1. Direito pessoal e direito real (direito romano muito antigo)
-
- Escólio
- Outros direitos Indo-europeus:
- 3.2. Direito hindu clássico
-
-
- Teoría da dádiva
- 3.3. Direito germânico (a caução e a dádiva)
-
- 4.- Conclusão
-
- 4.1. Conclusões de moral
- 4.2. Conclusões de sociologia econômica e de economia política
- 4.3. Conclusões de sociologia geral e de moral
- Bibliografía
Resumo
Você sabe porque os homens dizem “obrigado” e as mulheres “obrigada”?
Porque obrigado é parte da frase “eu estou obrigado em lhe retribuir
esse favor.” Por isso, flexiona-se. E você já percebeu como uma recusa,
após o oferecimento de algo, ofende àquele que ofereceu? Ou quando ainda
em certas ocasiões, nos sentimos obrigados a aceitar algo? E para
finalizar, já percebeu que após ser agraciado com algum “presente” nos
vemos na situação de retribuir? Creio então, quase 100 anos depois, que
ainda temos, por diversas razões, que discutir o Ensaio sobre a Dádiva,
de forma “contemporânea”.
O Ensaio sobre a Dádiva. Forma e razão
da troca nas sociedades arcaicas de Marcel Mauss, analisa as trocas e
os contratos em algumas civilizações arcaicas, como ele mesmo denomina,
onde são feitas sob a forma de presentes, teoricamente voluntários, mas
que na realidade são obrigatoriamente dados e retribuídos.
Mas
ao estudar essas relações de troca, Mauss observa que elas não estariam
ligadas à apenas uma categoria institucional, senão concebidos como
fenômenos sociais totais, pois exprimem ao mesmo tempo e de uma só vez
toda espécie de instituições: religiosas, jurídicas e morais - estas
políticas e familiares ao mesmo tempo; econômicas - supondo formas
particulares de produção e de consumo, ou antes, de prestação e de
distribuição, sem contar os fenômenos estéticos nos quais desembocam
tais fatos e os fenômenos morfológicos que manisfestam essas
instituições.(: 41).
Entretanto, embora em muitos aspectos os
passos de Mauss possuam as mesmas sombram que do seu tio Durkheim, vale
lembrar que a concepção de totalidade aqui se diferencia da totalidade
durkheimiana, no sentido que Maus tem efetivamente o todo, enquanto
ideia institucional e Durkheim, tem sua ideia de totalidade baseada numa
lógica suprema, existente enquanto classe intelectual que explicaria
tudo.
Seguindo sobre as ideias da voluntariedade nas trocas,
Mauss afirma que esse caráter voluntário apenas se faz de forma
aparente, mas que no entanto aí está imbuída a ideia de interesse.
Utilizando-se do método de comparação precisa, Mauss questiona sobre
qual seria essa regra de direito e de interesse nessas sociedades
arcaicas que faz com que o presente recebido seja obrigatoriamente
retribuído? Que forças existem nessa coisa dada que faz com que o
donatário a retribua?
Marcel Mauss introduz a obra afirmando seu grande interesse pelo sistema
de direito contratual e de prestações econômicas entre os subgrupos das
sociedades ditas primitivas; um conjunto de fenômenos sociais totais pelos
quais se exprimem todos os tipos de instituições, religiosas, jurídicas e
morais. Dentre essa complexidade, considerou apenas um traço, o caráter
voluntário, aparentemente livre e gratuito, todavia imposto e interessado,
dessas prestações; cuja forma assumida é habitualmente a de presente generoso,
mesmo quando os gestos que acompanham a transação revelam apenas formalismo e
ficção. “Qual é a regra de direito e de interesse que, nas sociedades de tipo
atrasado ou arcaico, faz com que o presente recebido seja obrigatoriamente
retribuído? Que força há na coisa dada que faz com que o donatário a retribua?”
(p.42).
Estes questionamentos levaram o autor a novos problemas, concernentes às
formas permanentes da moral contratual (direito real ligado ao pessoal) e às
que presidem as trocas (noção de interesse individual); com o estabelecimento
da dupla meta de alcançar conclusões sobre a natureza das transações nas
sociedades que nos cercam ou precederam, e sobre a moral e economia que nelas
operam.
Nas sociedades “primitivas” ou arcaicas, os fenômenos de troca e contrato
não são destituídos de mercado econômico como se pensava, apenas seu regime é
diferente. Nelas pode ser visto o mercado antes da instituição dos mercadores e
de sua invenção, a moeda, além da moral e economia vigente nas transações
anteriores às formas modernas de contrato e venda e da moeda de título determinado.
Para Mauss, essa moral e economia ainda funcionam de maneira constante e
subjacente em nossas sociedades, constituindo a base sobre a qual estas foram
erigidas, possibilitando a inferência de algumas conclusões morais sobre as
crises em nosso direito e economia.
O autor utilizou um método de comparação precisa, com restrições:
inicialmente estudando o tema em áreas determinadas (Polinésia, Melanésia e
noroeste americano) e a seguir escolhendo locais que permitiam acesso à
“consciência” das sociedades através da documentação e trabalho filológico
disponíveis. Cada estudo procurou descrever apenas um sistema na íntegra,
renunciando ao tipo de comparação constante no qual tudo se confunde, fazendo
com que as instituições percam sua cor local.
Mauss ressalta que nunca foi constatada a existência de sociedades com
algum tipo de “economia natural”, simples trocas de bens, produtos ou riquezas
entre indivíduos. São sempre as coletividades que se obrigam mutuamente,
trocando e contratando; pessoas morais, famílias, clãs, tribos, enfrentando-se
em grupos ou por intermédio de seus chefes. “Ademais, o que trocam não são
exclusivamente bens e riquezas, móveis ou imóveis, coisas economicamente úteis.
Trata-se, antes de tudo, de gentilezas, banquetes ritos, serviços militares,
mulheres, crianças, danças, festas, feiras em que o mercado é apenas um dos
momentos e onde a circulação de riquezas constitui apenas um termo de um
contrato muito mais geral e muito mais permanente” (p.45).
As prestações e contra-prestações são feitas principalmente de forma
voluntária, através de presentes, embora no fundo sejam obrigatórias. Mauss as
denominou de sistema de prestações totais, sendo seu tipo mais puro a aliança
entre duas frátrias (caso de tribos australianas e norte americanas) em que
tudo é complementar - ritos, casamentos, sucessão dos bens, postos militares ou
sacerdotais etc. - e supõe a colaboração das duas metades da tribo.
Nessas regiões (norte e noroeste americano, Melanésia e Papuásia, por
exemplo) existe ainda outra forma mais rara, embora típica, dessas prestações
totais, o Potlatch, palavra que significa alimentar, consumir; são tribos
ricas, as quais passam o inverno em constante festa, banquetes, feiras e
mercados, que ao mesmo tempo representam uma assembléia solene. Os princípios
de rivalidade e antagonismo dominam todas as práticas, prestações totais do
tipo agonístico, visando assegurar hierarquias que beneficiarão os clãs:
batalhas onde chefes e nobres se enfrentam e morrem, e a destruição de riquezas
para eclipsar chefes rivais associados.
Os tipos mais elementares de prestação total são mais comuns, todavia
podem ser encontrados ainda outros tipos, intermediários relativamente aos
agonísticos, além de exemplos de rivalização através de presentes (no antigo
mundo indo-europeu, por exemplo).
Capítulo 1: Prestação total, bens
uterinos contra bens masculinos (Samoa)
Durante muito tempo, pensou-se que não havia Potlatch na Polinésia. As
sociedades nas quais as intituições mais se aproximavam dele não pareciam ultrapassar
o sistema de prestações totais de contratos perpétuos entre os clãs; estando
ausentes os elementos de rivalidade, destruição e combate, bastante comuns na
Melanésia.
O sistema de presentes contratuais em Samoa, contudo estende-se muito
além do casamento, acompanhando também os nascimentos, enfermidades, puberdade,
ritos funerários, comércio etc.; além disto, dois elementos essenciais do
Potlatch foram claramente atestados: o da honra, do prestígio, do mana conferido
pela riqueza, e o da obrigação absoluta de retribuir as dádivas sob pena de
perder justamente o mana e a autoridade (por sua vez, também talismã e fonte de
riqueza).
Na Polinésia, “oloa” são os bens móveis, em sua maior parte os
instrumentos do marido; e “taonga” são os “bens uterinos”, imóveis e
permanentes, como as esteiras de casamento, decorações e talismãs que entram
numa nova família através da mulher (filhos, inclusive). A noção conota ainda a
“propriedade propriamente dita, tudo aquilo que torna alguém rico, poderoso e
influente, tudo aquilo que pode ser trocado, objeto de compensação” (p.52): são
as “propriedades talismã”, tesouros, brasões, ídolos sagrados, tradições,
cultos, rituais mágicos etc.
Os taonga estão fortemente ligados à pessoa, ao clã e ao solo,
constituindo o veículo de seu mana, força mágica, religiosa e espiritual;
contendo em si esta força e capazes de destruir o indivíduo que os recebe caso
a obrigação de retribuir não seja observada. “Hau” significa vento e alma, em
muitos casos alma das coisas inanimadas e vegetais, enquanto a palavra mana é
mais utilizada para homens e espíritos: “Os taonga e todas as propriedades
rigorosamente ditas pessoais têm um hau, um poder espiritual. Você me dá uma
delas, eu a dou a um terceiro; este a retribui com uma outra porque é impelido
pelo hau de meu presente; e, quanto a mim, sou obrigado a dar-lhe esta coisa,
pois é preciso que eu lhe devolva aquilo que, na verdade, é o produto do hau de
seu taonga” (p.54).
Temos aqui a idéia chave do direito Maori: o que, no presente recebido e
trocado, cria uma obrigação, é o fato de que a coisa recebida não é inerte,
mesmo abandonada pelo doador ainda possui algo dele; por meio dela este tem uma
ascendência sobre o beneficiário, assim como o proprietário a tem sobre o
ladrão. O taonga é animado pelo hau de sua floresta e território, perseguindo
todos os seus detentores até que estes retribuam com seus próprios taonga. Essa
é a natureza do vínculo jurídico criado pela transmissão de bens: presentear é
dar algo de si, da essência espiritual, fato que torna necessária a retribuição
pelo perigo que representa conservar uma coisa não inerte; os bens móveis ou
imóveis produzindo uma ascendência mágica e religiosa sobre o indivíduo.
Para compreender a instituição de prestação total e de Potlatch há que se
analisar todos os seus aspectos, não só a obrigação de retribuir os presentes
recebidos, mas também a de dá-los e a de recebê-los. Um clã, grupo doméstico,
caravana ou hóspede não têm a liberdade de não solicitar hospitalidade, não
receber presentes ou não comerciar; recusar-se a dar, convidar e receber
equivale a declarar guerra, dispensando aliança e comunhão. Há, assim, uma
mistura de vínculos espirituais entre as coisas e os indivíduos, troca
constante de uma matéria espiritual que compreende coisas e homens.
Um quarto tema desempenha um papel importante nessa economia e moral dos
presentes. Nas sociedades do nordeste siberiano e entre os esquimó do oeste do
Alasca, o Potlatch produz efeito não apenas sobre os homens que rivalizam em
generosidade durante as trocas de presentes; mas também sobre os deuses -
verdadeiros proprietários dos bens do mundo, os espíritos dos mortos, as
coisas, a natureza e os animais, incitando-os a serem generosos e gerando,
assim, uma abundância de riquezas.
Conclusão
Uma parte considerável de nossa moral continua nessa mesma atmosfera de
dádiva, obrigação e liberdade misturadas; nem tudo é classificado exclusivamente
como compra e venda, as coisas ainda possuem um valor sentimental. “A dádiva
não retribuída ainda inferioriza aquele que a aceitou (...). A caridade fere
ainda aquele que a aceita e todo o esforço de nossa moral tende a suprimir a
patronagem inconsciente e injusta do rico ‘caridoso’” (p.163); o convite deve
ser retribuído, assim como a gentileza, e ainda existem costumes que visam
separar o vendedor da coisa vendida.
“O sistema que nos propusemos a chamar de prestações totais de clã a clã,
aquele no qual indivíduos e grupos trocam tudo entre si, constitui o mais
antigo sistema de economia e de direito que podemos constatar e conceber. Ele
forma o fundo do qual destacou-se a moral da dádiva-troca” (p.169). Dádivas não
são livres nem realmente desinteressadas, na maioria já são contra prestações
que visam não apenas o pagamento de serviços e coisas, mas também a manutenção
de alianças proveitosas. Nas sociedades de potlatch, é a hierarquia que se
estabelece a partir dessas dádivas. Aceitar sem retribuir é subordinar-se,
tornar-se cliente ou servidor. Contudo, se algum motivo equivalente anima os
chefes desses diferentes povos, este não é a razão fria e utilitária do
capitalista; o entesouramento existe, mas para ser gasto e para “obrigar”. Trocam-se
objetos de luxo ou coisas imediatamente consumíveis e também existe a
retribuição com juros, mas não como compensação e sim para humilhar o doador.
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