Fragments
d´une révolution (França,
Irã 2011).
Documentário
em cores/55’.
As
eleições presidenciais de 12 de Junho de 2009 no Irão ficaram
marcadas por uma fraude eleitoral. Foi o início de semanas de
intensa contestação politica que atá o regime dos aiatolás teve
dificuldade em sufocar. Imagens dos motins e da repressão recolhidas
por câmaras digitais e telemóveis foram rompendo clandestinamente a
censura. Este filme é uma montagem contundente de parte desse
material.
Texto
Base:
A poética das imagens na narrativa fílmica de “Fragmentos de uma Revolução” - por Bárbara Pansardi
Fragmentos
de uma Revolução
é um filme que tematiza as manifestações populares motivadas pelas
(fraudulentas) eleições presidenciais do Irã, realizadas em 2009.
Em sua composição, a obra se vale de uma série de imagens de
arquivo, advindas das mais diversas fontes: noticiários nacionais e
internacionais, debates políticos, programas de entrevistas,
registros de julgamentos, imagens amadoras, entre outras. Mas
descontextualizado do cerne de suas vinculações históricas de
produção, esse inventário de arquivos, que é o ponto de partida
do cineasta, diz muito pouco. É apenas um enorme banco de dados
disperso, uma infinita e não estruturada coleção de imagens,
textos e sons. Não sem razão essa dispersão fragmentária está
expressa no título da obra cinematográfica. A escolha, aliás, é
explicitamente aludida no interior da própria narrativa. O narrador
escreve, dirigindo-se à sua interlocutora virtual: “Olá,
querida. Vi o link do Youtube que me enviou. Acho que encontrei o
nome para meu filme: Fragmentos de uma Revolução”.
O banco de dados das imagens de
arquivo da revolta iraniana é a poética da qual parte o cineasta. É
preciso apropriar-se dessas imagens e trabalhá-las desde seu
interior, selecioná-las, recortá-las, concatenar sentidos, forjar
uma compreensão. O material é variado, e a tarefa não é fácil. O
próprio narrador, comentando o gesto ensaístico de tecer relações
no processo de montagem, admite: “Tento reconstruir a história
com as imagens que envia. Mas é como encarar um enorme
quebra-cabeças com partes faltando”.
A unidade engendrada pelo filme
advém não só da reunião e colagem desses arquivos, e da eleição
de uma ordem mais ou menos cronológica de exibição, mas também
pelo enredo que é costurado no entremeio, pela mise en scène
dos sujeitos e pelos diálogos intercambiados através dos e-mails.
Delineia-se, a partir daí, a narrativa fílmica. A seguir,
tencionamos apreender como isso é operacionalizado.
a) Entretecendo imagens
Trabalhar as imagens de arquivo
desde seu interior, como vimos, significa proceder uma crítica do
documento e analisar as condições de produção do momento e do
contexto próprios do registro, “momento em que houve uma presença
compartilhada do corpo e da ‘máquina’, do corpo e da câmera”
(FRANÇA et al, 2011, p.63). Afinal, como disse Sylvie
Lindeperg em entrevista a Comolli, “[n]ão se pode trabalhar com a
‘retomada’ dessas imagens e da utilização delas sem interrogar
esse momento único que é a ‘tomada’” (2010, p.319).
O que faz o cineasta de Fragmentos
de uma Revolução, em certa medida, é lançar um olhar crítico
sobre os documentos, investigar as camadas de significados dessas
tantas imagens, confrontá-las e correlacioná-las para engendrar uma
compreensão. Mas ele não o faz como um historiador, agregando um
comentário referencial elucidativo, capaz de explicar as vinculações
sócio-históricas. Ao contrário, sua estratégia é voltar ao
momento da ‘tomada’ forjando uma personagem que, estando no cerne
dos acontecimentos, compartilha-os e comenta-os com um interlocutor.
No filme, os sujeitos que trocam
mensagens eletrônicas, ao exporem seus conhecimentos e pontos de
vista a respeito dos acontecimentos, sugerem pistas para que possamos
compreender sua versão do sucedido. Esse é o liame que torna
inteligível o conjunto das imagens de arquivo operacionalizadas no
filme. O cineasta trabalha as imagens desde seu interior voltando ao
momento da ‘tomada’ não do ponto de vista histórico, mas
através de um recurso narrativo que se vale de uma personagem que
estaria relatando virtualmente os eventos para um amigo que se
encontra distante, em Paris, e que pretende fazer um documentário a
respeito do que está ocorrendo em Teerã.
Aqui, o cinema opera diferente da
História. Documentos se inter-relacionam de modo equânime e
horizontal com a mise en scéne de personagens, sem que isso
signifique, contudo, o completo desvencilhamento do lastro
referencial sócio-histórico das condições de produção. As
imagens de arquivo ainda têm apelo pelo que evocam como evidência
histórica, mas são tratadas em outro regime de veracidade ou
legitimidade. Não é a pretensão do filme declarar-se verdadeiro*;
determiná-lo é, de qualquer forma, irrelevante. A confissão final,
aliás, corrobora nosso argumento. Se em algum momento ousou-se
pensar que aqueles planos fechados não eram mise en scène de
personagens, o cineasta logo adverte: “Eu também confesso.
Confesso que também não contei toda a verdade. Confesso que não
eram as minhas mãos que filmei. Confesso que não gravei da minha
janela. Confesso que não ousei usar minha voz ou de meus amigos.
Confesso que tenho medo…”.
A mise
en scène,
de todo modo, é o que nos coloca e contextualiza no interior dos
eventos e torna inteligíveis as imagens amadoras, a princípio
confusas. Lacunares, precárias, instáveis, emergenciais. Tais
imagens produzidas no calor dos acontecimentos, no âmago da ação
política revolucionária, são registros do caos, da dor, da
revolta. Imagens trêmulas e desenquadradas, com abruptos contrastes
de luz; muitas vezes, pouco mostram, mas nesses casos o fora de campo
lhes restitui a sua violência.
Tais registros se enquadram em um
novo modo de militância que emerge no final dos anos 60. O tremor
característico (das imagens e das vozes que as comentam) evidencia o
traço da subjetividade e do investimento biopolítico que marcam, a
partir de então, o cinema militante. “O tremor dessas imagens
feitas às pressas, muitas vezes clandestinamente, é a assinatura
física, corporal, de uma nova comunidade política” (LEANDRO,
2010, p.101). Seu valor não está na qualidade técnica ou estética,
mas em seu apelo sensível e em sua potência indexical (efeitos de
presença e de real), que as torna imagens prementes. A respeito
disso, comenta Hartog: “A estética de urgência desse cinema
produz uma imagem temporalmente densa, que retém o presente que
passa, na esperança de poder projetá-lo no futuro como uma prova
dos crimes do passado, uma evidência da história” (apud
LEANDRO, 2010, p.116). As imagens clandestinas da revolução são a
reação biopolítica a um governo que deseja tudo controlar. É
premente abrir espaço para uma versão dos eventos alternativa à
que é divulgada pelo veículo de comunicação oficial. Eis o papel
do registro das manifestações populares e da disseminação
virótica de vídeos amadores por meio da rede. Como uma brecha ou
fissura no poder disciplinar, emergem enquanto investimentos de
resistência. Sujeitos empunham suas câmeras para, no âmbito da
microfísica, lutar contra a ditadura.
b) Biopolítica do amador
O regime totalitário de
Ahmadinejad tenciona tudo controlar. Sob o seu comando, constrói-se
uma meganarrativa totalizante. Em discurso às redes televisivas, ele
declara: “O povo do Irã é indivisível”. Não há espaço
para a autonomia. Aliás, seu modo de exercício de poder é
altamente disciplinário. “A disciplina, diz-nos Foucault, é
centrípeta; ela concentra, isola, fecha, funciona por modelagem (a
escola, o exército, a prisão, a fábrica)” (BRASIL; MIGLIORIN,
2010a, p.86). Assim funcionam as coisas com Ahmadinejad, quem se vale
de dispositivos repressivos, como a milícia — que invadiu a cidade
de Teerã para conter os ânimos após a divulgação do resultado
das eleições fraudulentas — e a prisão — “Gostaria de
informar aos que serão presos nos eventos desse tipo: até agora
fomos moderados, mas acabou. Enfatizo às famílias: se seus filhos
participarem novamente de manifestações anti-revolucionárias, como
a no Ashura, será considerado ataque à segurança. Eles serão
presos”.
Mas não só por meio de
instituições disciplinares a normatividade se impõe como lugar de
constituição da conduta e produção da subjetividade. A regulação
e modulação da vida nacional se dá também por meio de discursos e
regimes de visibilidade. O veículo de comunicação oficial, por
exemplo, impõe certas imagens, e não outras – exibe somente
aquelas que estejam alinhadas com a narrativa totalizante do ‘Irã
indivisível’ junto ao governante, e omite ou distorce
acontecimentos que atuem na contramão deste sentido. Questionando-se
a respeito disso, o narrador escreve: “Muitas imagens. Muitas
imagens que não encontram seus lugares”.
Ora,
é preciso então delinear novos lugares. Alternativos, marginais.
Iranianos se revoltam com os desmandos totalitários de Mahmoud
Ahmadinejad e com os resultados fraudulentos das eleições
presidenciais de 2009 no país. Saem às ruas gritando “Abaixo
o ditador!”.
Insistem em não calar, a despeito das tentativas de abafar os atos
de insurgência. A situação interna é fortemente reprimida e
difícil de ser revisada; é preciso chamar a atenção estrangeira
para a atitude anti-democrática do governante iraniano. O registro é
um aliado. Com seus celulares e câmeras portáteis, cidadãos fixam
as imagens da sublevação popular e as disseminam viroticamente
através da internet, na tentativa de difundir uma versão dos
acontecimentos dissonante e menos unívoca que aquela divulgada pelo
veículo oficial.
O que surge como um pequeno ato
micropolítico — a simples filmagem — reverbera em dimensões
globais. As imagens precárias, instáveis e emergenciais do motim
iraniano ganham o mundo. Imagens “aflitivas”, “de cortar o
coração” (no comentário de Barack Obama) denunciam a postura
opressora. O processo de dominação encontra um limite (ou, no
mínimo, um obstáculo) nesse simbólico gesto. Não sem razão o
narrador comenta o seguinte a respeito dos censores: “Nada os
incomoda mais que as imagens enviadas ao exterior”.
Registrar e difundir a repressão
do poder iraniano é uma afronta às autoridades e um ato de denúncia
levado a cabo por uma multidão. O gesto, em princípio individual,
converte-se em produção coletiva, revelando-se de uma imensa
potência política. Disseminadas por todos e por ninguém, as
imagens amadoras são anônimas e compartilhadas. Essa abstensão de
assinatura, porém, “não seria a anulação da autoria e dos
sujeitos envolvidos, mas antes sua inserção em um jogo de
representações e estratégias de poder” (BRASIL; MIGLIORIN,
2010a, p.133). A participação nesta “enunciação coletiva
significa menos que ninguém está implicado do que todos o estão,
em alguma medida” (idem, p.136). A propósito, nos créditos
finais do filme, como uma forma de reconhecer este engajamento, os
realizadores agradecem: “We would like to thank the long list of
the anonymous without whom this film could not have been made. In
particular those Iranians who courageously shared their images”.
A coletividade anônima não só está profundamente implicada como
também representa uma força capilarizada que a singularização de
indivíduos jamais permitiria. Comentam Brasil e Migliorin a respeito
da produção e multiplicação das imagens amadoras:
Como indivíduo, o amador não é mais potente que o profissional, mas como coletividade, sim. Trata-se de uma multidão que está capilarmente misturada à cidade, como o profissional nunca estará. (…) O que está em jogo aqui é menos a autoria individual do que a enunciação coletiva
(BRASIL; MIGLIORIN, 2010b, p.90)
O micro, potencializado pela
coletividade, desestabiliza as estruturas arcaicas do sistema. Ao
trazer à luz o que por meio de instrumentos hegemônicos de poder
estava relegado à sombra, negocia-se uma tensão entre visibilidade
e invisibilidade. Com isso, chama-se atenção para as reivindicações
por uma maior abertura do sistema de comunicação. Ora, como se vê,
a biopolítica excede o poder soberano disciplinar, a despeito de
suas tentativas de bloqueá-la. O poder, afinal, traz consigo sempre
uma imanente resistência que se traduz em práticas biopolíticas.
Considerações finais
A retomada das imagens amadoras e
outras imagens de arquivo relativas à revolta iraniana permite o
retorno do acontecimento passado e seu comparecimento no presente.
Trata-se de reapresentar para denunciar e jamais esquecer. Fragmentos
de uma Revolução é, nesse sentido, tanto quanto os vídeos
clandestinos, também uma forma de engajamento e resistência.
Diferente, porém, das imagens amadoras e emergenciais, que
apresentam valor pela presença do corpo e da câmera no interior dos
eventos, a obra cinematográfica revela a maduração de um olhar,
mais distanciado e crítico.
O arquivo é a poética que
representa o ponto de partida, mas a narrativa fílmica se tece na
relação entre as imagens e na maneira que uma tem de invocar a
outra para construir uma coisa que não está mais necessariamente em
ligação com o evento que fora registrado pelas lentes. Em outras
palavras, queremos dizer as imagens de arquivo são a urdidura da
trama que será traçada no filme. Delas se origina o trabalho de
montagem do cineasta. Mas o resultado composicional ultrapassa o
caráter de documento histórico e, em certa medida, desvincula-se
das condições espaço-temporais e político-históricas.
A relação com a história se
distende — mas não se desfaz — porque se entretece com a mise
en scène do discurso da personagem que relata os acontecimentos
que vivencia. Do ponto de vista cinematográfico, isso representa um
ganho, pois, segundo Sylvie Lindeperg, “[a]s imagens que só têm
como qualidade a inscrição na história apagam-se enquanto que
outras resistem no tempo, sobrevivem ao evento que lhes deu vida”
(2010, p.344). Sendo assim, a forma como o cineasta operacionaliza as
imagens de arquivo na narrativa fílmica de Fragmentos de uma
Revolução garante uma perenidade que vai além das vinculações
históricas. Ele se vale do aspecto histórico, mas consegue
transcendê-lo porque apela à tessitura narrativa de viés artístico
e cinematográfico. Com isso, constitui uma produção de sentido que
contribui para um cinema político renovado. As imagens de arquivo
resistem ao tempo e ao evento que lhes deu origem, dilatando os modos
de resistir e se engajar.
Verdadeiro ou falso.
O filme põe em questão esses valores. Por que importa, afinal, a
veracidade da película? Por que ela deveria ser pretensamente
verdadeira se nem mesmo aqueles que juram verdade perante o
julgamento parecem dizê-la? Em determinada cena do filme, uma imagem
de arquivo mostra um dos confessores torturados pelo regime dizer que
a revolta se tratava de uma tentativa de golpe de estado, e que os
insurgentes sabiam perfeitamente que não houve nenhuma fraude
eleitoral — “Realmente, nossa estadia na prisão nos ajudou a
expressarmos francamente. Isso é incontestável. Nos permitiu dizer
como as coisas realmente são. É nossa natureza não esconder nada
de Deus. (…) Alguns não tiveram coragem de falar. Confesso que
muitos dos acusados aqui, em especial os rostos conhecidos, pensam
como eu. Eles só precisam de tempo. Durante o inquérito o Sr.
Nabavi disse: ‘Sei que não houve fraude’. O procurador propôs
que dissesse em público. Ele retrucou dizendo que não queria trair
Moussavi. Mas isso não é traição. Desde quando é traição dizer
o que se pensa?”. Suspeito, no mínimo, sobretudo porque
sucedido pelo seguinte comentário do narrador: “Ao sair da
prisão, X me contou da folha de confissão que trariam para ele
assinar todas as manhãs. (…) Estou habituada a esses mise en scène
desde criança. Mas ao ver esses homens confessando comecei a ter
dúvidas”. Nos é lançada a questão: o que é verdade, o que
é mise en scène quando somos privamos das liberdades
democráticas?
Bibliografia:
BRASIL, André; MIGLIORIN, Cézar.
A gestão da autoria: anotações sobre ética, política e estética
das imagens amadoras. In.: Ciberlegenda, nº22, 1º semestre
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<http://www.uff.br/ciberlegenda/ojs/index.php/revista/article/view/75>.
Último acesso: 22 jun, 2013.
BRASIL, André; MIGLIORIN, Cézar.
Biopolítica do amador: generalização de uma prática, limites de
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84-94, dez. 2010. Disponível em:
<http://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/3280>.
Último acesso: 22 jun, 2013.
FRANÇA, A.; LINS, C.; REZENDE,
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LEANDRO, Anita. O tremor das
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<http://www.fafich.ufmg.br/~devires/v7n2/download/07-anitaleandro-98-117.pdf>.
Último acesso: 22 jun, 2013.
LINDEPERG, S.; COMOLLI, J. L.
(2010). Imagens de arquivos: imbricamento de olhares. Entrevista com
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Filmes de Quintal/FAFICH-UFMG.
LISSOVSKY, Maurício. Quatro + uma
dimensões do arquivo. In: MATTAR, Eliana. (Org.). Acesso à
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