quinta-feira, 13 de abril de 2017

CABOCO - Sujeito típico de direito Amazônico

“CABOCO”: Sujeito típico de direito Amazônico (I)
Gursen De Miranda
Presidente da Academia Brasileira de Letras Agrárias, professor-adjunto da UFRR e juiz de Direito de Roraima
Publicado na Folha de Boa Vista, de 15 de junho de 2005, p. 02.
 
Quando juridicizei o estudo do posseiro (De Miranda: 32) destaquei que o típico caboco vive às margens dos rios, igarapés, furos e paranás, totalmente alheio ao sistema jurídico vigente e desconhece o regime de propriedade privada do capitalismo selvagem dos dias atuais. Para esse trabalhador rural o importante é estar à beira do rio de onde tira seu alimento e serve de via de acesso à cidade; numa zona bem delimitada de terra extrai o açaí para beber e, numa área mais alta, cultiva um roçado de mandioca para obter a farinha, o que complementa sua alimentação. A caça é feita somente quando o peixe não vem, quando o rio está panema. O extrativismo é sua atividade “econômica” principal, pois, em alguns casos, existe o artesanato rústico com seus paneiros, abanos e coisas mais. A terra como terra não tem nenhum valor; o importante é o que a natureza produz sobre essa terra.
O caboco, historicamente, é reconhecido pelos brasileiros em geral como o tipo humano característico da população rural da Amazônia; como o homem do campo da Amazônia. Nesse sentido, caboco é o amazônida típico, essencialmente rural e, normalmente, ribeirinho. Inegavelmente, o caboco faz lembrar a figura de uma pessoa no ambiente amazônico. Portanto, caboco é uma designação específica e exclusiva do amazônida do âmbito rural, especialmente o ribeirinho.
Certamente, na Amazônia, também existem os trabalhadores rurais, com características da modernidade, chegados pela necessidade nas diversas levas de migrantes e pela esperança para os “grandes projetos”.
É oportuno destacar que, na Amazônia, caboclo é coisa de dicionário. O termo usado, normalmente é caboco, tanto no Pará, como no Amazonas, no Amapá ou em Roraima. Não observei em Rondônia e no Acre, e ainda tem o Tocantins. Aliás, em Roraima, o indígena que já assimilou os elementos culturais do não índio também é chamado de caboco, considerando-se a interação e a possível mestiçagem, pois, algumas malocas têm tuxaua não índio.
Ademais, não pretendo, nos limites deste trabalho, perquirir a etimologia da expressão caboclo. Se deriva do tupi caa-boc, “o que vem da floresta”; se do tupi kari’boca, “filho do homem branco”; ou se “ca­boclo foi inicialmente usado como sinônimo de tapuiu, termo genérico de desprezo que os povos indígenas usavam quando se referiam a indivíduos de outros grupos” (Lima: 9).
O certo é que não existe, no Brasil, uma política atuante direcionada aos interesses regionais, preocupada com o bem estar e a produção de alimentos para o povo amazônida. Os organismos internacionais, na mesma linha, ficam mais preocupados com os bichinhos e as plantinhas da Amazônia, atentos a sua água, a sua biodiversidade e ao seu potencial genético, e abstraem as pessoas nascidas e criadas na região, com suas necessidades naturais.
O índio, desde o período colonial, com a Carta Régia de 10 de setembro de 1611, tem ampla legislação amparando seu direito às áreas que tradicionalmente ocupa. O negro, com a Constituição Federal, de 1988, conquistou o direito às áreas quilombolas (ADCT: art. 68). Nada dizem sobre o caboco ribeirinho da Amazônia.
Raras são as pesquisas etnográficas, antropológicas ou sociológicas sobre o caboco, até o final dos anos 60 eram praticamente inexistentes.
A ficção literária foi a única fonte de conhecimento sobre o caboco. A literatura amazônica reconhece o caboco como o principal tipo humano da Amazônia. Exemplo marcante é o Manuel dos Santos Prazeres e a Maria de Todos os Rios descritos por Benedicto Monteiro, maior romancista vivo da Amazônia, cm Verde Vago Mundo, Minosauro, A Outra Margem, Aquele Um, Maria de Todos os Rios.
Na seara do Direito a abordagem sobre o caboco é inexistente. O caboco não é reconhecido como sujeito de direito na Amazônia. O Direito não apreendeu a importância que a figura merece no contexto amazônico. Não existem estudos jurídicos sobre a figura do caboco. Por certo, não é por acaso.
O caboco é um exemplo de adaptação do ser humano ao ambiente, ou seja, teve habilidade suficiente para obter os meios necessários para viver no vale amazônico.
O caboco, no âmbito agrário amazônico, tem como principal atividade econômica o extrativismo agrário (animal e vegetal), com destaque à pesca artesanal e a agricultura temporária (de sobrevivência); ocupa um ambiente de várzea ou terra firme; tem fortes laços de parentescos locais com os compadres, professa religião do “mundo dos encantamentos” e o catolicismo popular, tem hábitos alimentares peculiares e padrões de moradia distintos. Come farinha e dorme em rede.
Como bom caboco do centrão da Ilha de Marajó, lá da cidade de Anajás, pelo menos uma vez por semana tomo mingau de farinha na casa de meus pais, tomei muito chibé (farinha com água) acompanhado de um camarão ou um peixe salgado, um charque, tudo assado na brasa; sempre lembro do bolinho doce de farinha que minha mãe fritava à tarde para merendarmos; meu pai, com o ar de seus 85 anos de idade, todos os dias, após o almoço, bebia uma boa cuia de açaí com farinha. Tenho certeza que os italianos, se conhecessem, colocariam farinha no macarrão – é uma delícia.
Eu sou caboco. Sou caboco amazônida. Caboco marajoara.
 
  
 
 
“CABOCO”: Sujeito típico de direito Amazônico (II)
Gursen De Miranda
Presidente da Academia Brasileira de Letras Agrárias, professor-adjunto da UFRR e juiz de Direito de Roraima
Publicado na Folha de Boa Vista, de 16 de junho de 2005, p. 02.
 
Afirma-se que a “razão por que caboclo não é utilizado como termo de autodesignação deriva do fato de nunca ter sido associado a um movimento político” (Lima: 21). A verdade está à margem dos estudos da pesquisadora.
O caboco é o grande herói da Cabanagem, único movimento político popular no Brasil em que o povo chegou ao poder, em luta que se estendeu pelo vale do rio Amazonas, no período de 1835 a 1840. Não por acaso o nome do movimento reflete a origem de seus atores, aqueles que viviam em cabanas, os cabocos.
Por certo, está faltando maior e mais aprofundado estudo sobre o caboco, como o principal sujeito nas relações na Amazônia. O caboco, portanto, apesar do preconceito dos que chegaram, tem valorização política desde os tempos da Cabanagem no contexto amazônico e não apenas como objeto das raras pesquisas.
A força do caboco, na atividade seringueira, torna-se bem evidente em sua relação com o regatão (McGrath: 57). O caboco controla os meios de produção e o produto de sua própria mão-de-obra, estando geralmente fora do alcance dos comerciantes e proprietários locais. É justamente por meio do processo de troca que a resistência caboca ocorre, e o regatão desempenha papel crítico na realização de pelo menos uma das formas dessa resistência.
A Fundação IBGE reconhece o caboco como um dos tipos regionais do Brasil, no mesmo patamar do gaúcho do Rio Grande do Sul, das baianas da Bahia, dos sertanejos do nordeste brasileiro. É uma distinção que considera a geografia, a história da colonização e as origens étnicas da população (Lima: 6).
É certo que um estudo sobre o caboco é complexo, pois, envolve dimensões geográficas, raciais e de classe (Lima: 6).
Em verdade, verifico um movimento para desacreditar o mais legítimo sujeito da Amazônia, com convicção sobre sua realidade.
É bem mais fácil criar denominações para manipulação e divulgação pela mídia, mais que não representa os verdadeiros interesses do sujeito amazônida, seja Povos da Floresta, Populações Tradicionais, Pescadores Artesanais ou Mulheres da Floresta (Lima: 28). São expressões vazias, artificiais, imposta pelos que se preocupam apenas com os bichinhos e plantinhas da Amazônia e, não por acaso, esquecem o ser humano que nasce, vive e pensa em morrer na Amazônia. Expressões que nada dizem para os amazônidas.
É preciso de todo lamentar atualmente, quando fazem referência ao amazônida, as denominações: invasor, grileiro, bandido...
Ora, é um absurdo “desistir de fazer uso da palavras caboclo, especialmente se pretendermos falar de identidades rurais na Amazônia contemporânea” (Lima: 29). Tal absurdo é afirmar “não há razão para não adotar novos nomes em seu lugar” (Lima: 28). O caboco, o verdadeiro e mais expressivo sujeito da Amazônia, certamente, não deve aceitar tamanho preconceito e inconcebível discriminação.
É abominável a construção referente ao caboco como pobre, selvagem, indolente, fracassado, preguiçoso, fraco, não determinado, atrasado (Lima: 20). O simplismo no estudo abstrai a realidade geográfica e etno-histórica da Amazônia e os elementos da cultura da selva tropical. Na Amazônia, no embalar preguiçoso de suas redes, mas com olhar altivo, como verdadeiros donos daquela imensidão – imensidão de terras, imensidão de florestas, imensidão de águas, ... imensidão cultural –, também existem seres pensantes – somos seres humanos. Por certo, somos um pouco diferentes: somos índios, os pioneiros; com orgulho, somos cabocos, somos negros, somos mulatos, cafuzos; igualmente brasileiros.
O amazônida é tranqüilo por sua própria natureza, pois aprendeu a viver em região com abundância, dela tirando seu necessário sustento, especialmente a farinha. O caboco é um indivíduo alegre, sábio, criativo, vaidoso e racional, por isso, desconfiado, perfeitamente adaptado à realidade social e ecológica da Amazônia.
A comparação do caboco com o nordestino, normalmente é tendenciosa, uma vez que desconsidera o modo de viver caboco como fator positivo, aquele que se satisfaz com a pura existência e é capaz de aproveitar a vida com o mínimo esforço.
Portanto, caboco é a população rural amazônica não índia, especialmente os nativos antes da chegada da grande leva de migrantes nordestinos nas últimas décadas do século XIX, e quatro primeiras décadas do século XX. Aliás, os migrantes nordestinos são conhecidos na Amazônia, pelos cabocos, como arigós, colonos, cearenses, nordestinos e brabos (não no sentido de valente ou forte, mas por desconhecer e destruir desnecessariamente o ambiente amazônico). É certo, porém, no final do século XX, os nordestinos que ficaram na Amazônia adquiriram as características cabocas.
Por outro lado, o caboco, sob nenhuma hipótese (Lima: 26), deve ser comparado ou confundido com o “matuto” ou o “caipira” do interior do centro e sul do País.
O caboco é aquele que expressa um modo de vida próprio da Cultura da Selva Tropical, da Cultura da Mandioca. Os aspectos econômicos, políticos e culturais podem identificar o caboco na sua origem. São pequenos produtores familiares que vivem da exploração dos recursos da natureza e têm amplo conhecimento da floresta.
Por isso, entendo no âmbito de um direito amazônico, que o caboco é o sujeito de direito típico. Conseqüentemente, é importante destacar que o caboco, o ribeirinho, também tem direito à propriedade.
Cabo destacar, por necessário, que o caboco não morreu e nem é uma alegoria regional; ele vive e reivindica seu verdadeiro lugar na Amazônia como legítimo sujeito de Direito.
Eu sou caboco. Sou caboco amazônida. Caboco marajoara.
 

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