Resumo
Até
recentemente os estudos sobre os povos e culturas indígenas do Nordeste
brasileiro não constituíram um objeto mais sistemático de
investigações, parecendo apenas propiciar uma etnologia secundária e
menor. Na visão do autor, isso decorreu da dificuldade de aplicação
àquelas culturas dos pressupostos da antropologia americanista, a qual
opera com modelos societários que enfatizam a descontinuidade cultural,
bem como a objetividade e a exterioridade do observado em face do
pesquisador e de sua sociedade. Dialogando com diferentes perspectivas
teóricas, o autor delineia ou reelabora algumas noções como,
respectivamente, as de "territorialização", "situação colonial",
"diáspora" e "viagem da volta" que lhe permitem realizar uma análise
compreensiva do processo histórico que veio a transformar tais
populações nos grupos étnicos atuais. Sugere, ao final, que os estudos
que vêm sendo realizados no Brasil e em diferentes partes do mundo sobre
"índios misturados" (isto é, relações interétnicas em áreas de
colonização muito antiga) podem contribuir para a construção de uma
antropologia mais articulada com a história.
Abstract
Until
quite recently, indigenous peoples in the Brazilian Northeast were not
the object of systematic investigation, rather appearing to inspire a
kind of secondary, lesser ethnology. According to the author, this
oversight resulted from a difficulty in applying the premises of
Americanist anthropology to such cultures, since the latter operates
with societal models emphasizing both cultural discontinuity and the
objectivity and externality of the observed vis-à-vis the researcher and
his/her society. By establishing a dialogue with different theoretical
perspectives, the author delineates or reworks several notions, such as
"territorialization", "colonial situation", "diaspora", and "return
journey", allowing him to produce a comprehensive analysis of the
historical process which turned such populations into the current ethnic
groups. Finally, he suggests that studies on "mixed Indians" (i.e.,
relations between ethnic groups in areas of very old colonization) in
Brazil and elsewhere can help construct an anthropology that is better
articulated with history.
Os povos
indígenas do Nordeste não foram objeto de especial interesse para os
etnólogos brasileiros. Nas bibliotecas e no mercado editorial são muito
raros os trabalhos especializados disponíveis1.
Apesar da grande expansão do sistema de pós-graduação nos últimos anos
no Brasil, ainda no início desta década contava-se com poucas teses
monográficas2 e
nenhuma interpretação mais abrangente formulada sobre o assunto. Tudo
levava a crer tratar-se, em definitivo, de um objeto de interesse
residual, estiolado na contracorrente das problemáticas destacadas pelos
americanistas europeus, e inteiramente deslocado dos grandes debates
atuais da antropologia. Uma etnologia menor.
Na década de
50, a relação de povos indígenas do Nordeste incluía dez etnias;
quarenta anos depois, em 1994, essa lista montava a 23. Se lembrarmos da
conceituação dos povos indígenas nas Américas como "pueblos únicos"
(Bonfil 1995:10), ou da descrição dos direitos indígenas como
"originários" (Carneiro da Cunha 1987), estaremos diante de uma
contradição em termos absolutos: o surgimento recente (duas décadas!) de
povos que são pensados, e se pensam, como originários. Existem muitas
outras conceituações similares espalhadas pelo mundo (como a de
populações aborígines, encontrada na legislação na Austrália e Oceania,
no Canadá, na Argentina e em outros países da América Latina; "populations autochtones", referência comum utilizada na etnologia francesa, e pelos africanistas em especial; "first nations",
empregada por organizações indígenas nos Estados Unidos), o que torna
ainda mais ampla a questão. Como podemos explicar esse paradoxo? Sem
dúvida as lacunas etnográficas e os silêncios da historiografia ¾ enquanto componentes de um discurso do poder (vide Trouillot 1995) ¾
constituem fontes geradoras desse enigma, mas não resolvem o problema,
tornando-se necessário discutir também as teorias sobre etnicidade e os
modelos analíticos utilizados.
Minha intenção aqui é
fornecer subsídios para se refletir sobre esse paradoxo. Para tanto a
minha exposição segue três movimentos. No primeiro procuro mostrar como
ocorreu a formação do objeto de investigação e reflexão intitulado
"índios do Nordeste", partindo dos cânones científicos nacionais e
internacionais até as instituições locais, mostrando como concretamente
se inter-relacionaram modelos cognitivos e demandas políticas. Em um
segundo movimento discuto conceitos para a análise da etnicidade e,
baseando-me em algumas etnografias, procuro fornecer uma chave
interpretativa para os fatos da chamada "emergência" de novas
identidades. Finalmente debato com o americanismo e reflito sobre as
perspectivas para o estudo de populações tidas como de pouca
distintividade cultural (ou seja, culturalmente "misturadas").
Uma etnologia das perdas e das ausências culturais
Em
seu trabalho de classificação das áreas culturais indígenas existentes
no país, Eduardo Galvão (1979 [1957]:225-226) manifesta dúvidas quanto à
última delas ¾ a XI, intitulada "nordeste"3 ¾
possuir, efetivamente, uma unidade e consistência igual às demais. O
autor destaca desde logo os efeitos da aculturação e o seu diagnóstico
sobre as dez etnias dessa área cultural é o seguinte: "A maior parte
vive integrada no meio regional, registrando-se considerável mesclagem e
perda dos elementos tradicionais, inclusive a língua"4. Ao mencionar os Pataxó, o autor agrega (sem aspas) o adjetivo "mestiçados". É importante lembrar que o artigo de Galvão ¾ por seu caráter introdutório e classificatório ¾
constitui um dos textos mais consultados não só por estudantes de
antropologia, mas também por museólogos, bibliotecários, educadores e
comunicadores sociais em geral.
Para o público mais especializado o cenário não é diverso. No Handbook of South American Indians,
obra de referência capital para os estudos etnológicos, os povos
indígenas do Nordeste são focalizados em pequenos artigos (quase
verbetes) escritos por Robert Lowie (1946) e Alfred Métraux (1946), um
deles com a colaboração de Curt Nimuendaju. Em ambos os textos são
utilizadas fontes históricas e, primordialmente, relatos de cronistas
quinhentistas e seiscentistas ou naturalistas viajantes dos séculos
XVIII e XIX. Ou seja, tais povos e culturas passam a ser descritos
apenas pelo que foram (ou pelo que, supõe-se, eles foram) há séculos
atrás, mas sabe-se nada (ou muito pouco) sobre o que eles são hoje em
dia. O que, por suposto, pouca contribuição traria à etnologia enquanto
estudo comparativo das culturas.
Em uma famosa metáfora, Lévi-Strauss nos ensina que "O antropólogo é o astrônomo das ciências sociais:
ele está encarregado de descobrir um sentido para configurações muito
diferentes, por sua ordem de grandeza e seu afastamento, das que estão
imediatamente próximas do observador." (1967:422; ênfases no original)
Não se trata de uma associação acidental ou pouco representativa de sua
obra, mas de um ensinamento conectado com pressupostos fundamentais do
"método etnológico" por ele delineado5.
A
relevância do autor e de sua metáfora para os estudos americanistas não
pode ser medida por citações ou referências explícitas em artigos e
monografias, mas por situar-se como uma imagem simples e sugestiva,
compartilhada pela maioria dos etnólogos que estuda as populações
autóctones sul-americanas (inclusive os não vinculados diretamente a
esse quadro teórico). Esquadrinhando os céus, o astrônomo lembra o
viajante/etnógrafo de que nos fala Dégérando, cujas viagens no espaço
correspondem também a enormes deslocamentos no tempo, explorando o
passado e cruzando diferentes eras (vide Stocking Jr. 1982; Fabian
1983). Cabe lembrar os comentários de Anne-Christine Taylor, sobre o
"arcaísmo" característico do "americanismo tropical" (1984:232).
A
metáfora da astronomia é, no entanto, inteiramente inaplicável ao
estudo das culturas autóctones do Nordeste e, no máximo, poderia ajudar a
entender as razões de sua baixa atratividade para os etnólogos. Se é a
distintividade cultural que possibilita o distanciamento e a
objetividade, instaurando a não contemporaneidade entre o nativo e o
etnólogo, como é possível proceder com as culturas indígenas do
Nordeste, que não se apresentam como entidades descontínuas e discretas?
Para colocar em prática o método etnológico tal como definido por
Lévi-Strauss deveríamos supor que o momento privilegiado de observação
daquelas culturas seria logo após os primeiros contatos dos indígenas
com os portugueses, isto é, nos primórdios da colonização, nos séculos
XVI e XVII. Ultrapassados esses marcos, tais culturas ficariam expostas
em demasia ao campo magnético do Ocidente, verificando-se uma
interferência cada vez mais forte deste nos registros e, por
conseqüência, nas hipóteses avançadas. A pesquisa de campo poderia
continuar a ser praticada, de preferência associada a um conjunto de
técnicas (etnohistória) que reconstitui o passado e busca seus vestígios
no presente. Mas o rendimento dessas culturas para a etnografia e a
etnologia seria sempre inferior ao do estudo de outras situadas em uma
faixa mais favorável de observação.
Se as duas maiores vertentes dos estudos etnológicos das populações autóctones da América do Sul ¾ o evolucionismo cultural norte-americano e o estruturalismo francês ¾
parecem confluir para uma avaliação negativa quanto às perspectivas de
uma etnologia dos povos e culturas indígenas do Nordeste, o mesmo ocorre
com o indigenismo. Em um texto de grande difusão, Darcy Ribeiro é ainda
mais incisivo. Utilizando-se de imagens fortes, fala em "resíduos da
população indígena do nordeste", ou ainda em "magotes de índios
desajustados", vistos nas ilhas e barrancos do São Francisco (Ribeiro
1970:56). Recorda com tristeza que até mesmo "os símbolos de sua origem
indígena, haviam sido adotados no processo de aculturação" (Ribeiro
1970:53), o que exemplifica com os Potiguara, que em suas danças
utilizavam instrumentos africanos ¾ zambé e puitã ¾
"acreditando serem tipicamente tribais" (Ribeiro 1970:53). Descrevendo
os Xucuru de modo similar, o autor observa que estão altamente
mestiçados com a população sertaneja local, tendo perdido "o idioma e
todas as práticas tribais, exceto o culto do Juazeiro Sagrado, se é que
este cerimonial fora originalmente deles" (Ribeiro 1970:54).
Ao
amargor vêm juntar-se a suspeição e, logo, o descrédito, inclusive,
como possíveis sujeitos históricos: "Por todos os sertões do nordeste,
ao longo dos caminhos das boiadas, toda a terra já é pacificamente
possuída pela sociedade nacional; e os remanescentes tribais, que ainda
resistem ao avassalamento só têm significado como acontecimentos locais,
imponderáveis" (Ribeiro 1970:57). Os índios do Nordeste não possuiriam
mais importância enquanto objeto de ação política (indigenista), nem
permitiriam visualizar perspectivas para os estudos etnológicos.
A construção do objeto "índios do nordeste"
Em
algumas capitais da região se consolidaram núcleos de pesquisa que
viriam, de algum modo, a desembocar em iniciativas destacadas e
relevantes6.
No entanto, a etnologia indígena não possuía o mesmo poder de atração
das investigações sobre as religiões afro-brasileiras, a arqueologia ou o
folclore, e mesmo as incursões dos catedráticos que estavam referidos à
lingüística ou à antropologia social7,
não deixaram de abordar em suas teses e comunicações as temáticas
indígenas através do viés do passado. Isso se refletia ainda com mais
clareza nos museus, onde as culturas indígenas eram representadas seja
por meio de peças arqueológicas e relações históricas de populações que
viveram no Nordeste, seja por coleções etnográficas trazidas de
populações atuais do Xingu ou da Amazônia.
É a partir de fatos de natureza política ¾ demandas quanto à terra e assistência formuladas ao órgão indigenista ¾
que os atuais povos indígenas do Nordeste são colocados como objeto de
atenção para os antropólogos sediados nas universidades da região. O que
aí ocorre exemplifica uma trajetória possível de institucionalização
para uma antropologia periférica, tal como observado por Peirano
(1995:24): em lugar de definir suas práticas por diálogos teóricos,
operam mais com objetos políticos ou ainda com a dimensão política dos
conceitos da antropologia.
Em 1975, como um desdobramento
da Reunião Brasileira de Antropologia, realizada em Salvador,
estabelece-se um termo de cooperação entre a Funai e a UFBA no sentido
de que esta pudesse vir a gerar estudos que subsidiassem programas de
assistência e desenvolvimento aos povos indígenas do estado. Embora essa
articulação tenha tido curta duração, estimulou o aparecimento de um
primeiro "grupo de trabalhos" (Carvalho 1977; Bandeira s/d, entre
outros) sobre alguns povos indígenas da Bahia ¾
como os Pataxó e os Kiriri, que, embora reconhecidos como "índios" pelo
órgão indigenista e pela literatura etnológica, não dispunham de terras
demarcadas e protegidas.
Organizados e mobilizados mais
tarde pela criação da ANAI e do PINEB (vide Agostinho 1995), os
antropólogos produzem uma quantidade expressiva de artigos, relatórios e
laudos que ampliam o conhecimento empírico sobre as condições de
existência da população indígena do estado (vide Carvalho 1984;
Agostinho 1988), gerando dados e argumentos que fortalecem suas
demandas.
É como uma resultante desse contexto que surge a primeira tentativa de definição dos "índios do nordeste"
como uma unidade, isto é, um "conjunto étnico e histórico" integrado
pelos "diversos povos adaptativamente relacionados à caatinga e
historicamente associados às frentes pastoris e ao padrão missionário
dos séculos XVII e XVIII" (Dantas, Sampaio e Carvalho 1992:433).
Em
vez de optar por um eixo ordenador central (como a história e as formas
de colonização, ou os nichos ecológicos e sua capacidade diferenciada
de atender às demandas das culturas e gerar processos adaptativos), que
lhes possibilitaria desenvolver um discurso teórico e interpretativo, os
autores associam variáveis de natureza teórica muito distintas dentro
de uma moldura que tem um caráter regional e particularizante. A unidade
dos "índios do nordeste" é dada não por suas instituições, nem por sua
história, ou por sua conexão com o meio ambiente, mas por pertencerem ao
Nordeste, enquanto conglomerado histórico e geográfico.
Ao
longo do ensaio, contudo, esses autores mencionam, a título de um
estigma, uma caracterização sociológica que poderia aplicar-se a todas
aquelas populações: "a partir da segunda metade do século, sobretudo, os
índios dos aldeamentos passam a ser referidos, com crescente
freqüência, como índios 'misturados', agregando-se-lhes uma série de atributos negativos que os desqualificam e os opõem aos índios 'puros'
do passado, idealizados e apresentados como antepassados míticos"
(Dantas, Sampaio e Carvalho 1992:451). Tal observação, no entanto, é
integrada a uma cadeia puramente cronológica de fatos históricos, sem
vir a ser incorporada a um esforço de conceituação.
A expressão "índios misturados" ¾ freqüentemente encontrada nos Relatórios de Presidentes de Província e em outros documentos oficiais ¾
merece uma outra ordem de atenção, pois permite explicitar valores,
estratégias de ação e expectativas dos múltiplos atores presentes nessa
situação interétnica. Em lugar de estabelecer um diálogo com as
tentativas de criar instrumentos teóricos para o estudo desse fenômeno ¾
como a noção de "fricção interétnica (Cardoso de Oliveira 1964), as
críticas às noções de tribalismo e aculturação (Cardoso de Oliveira 1960
e 1968), ou a noção de "situação histórica" (Oliveira 1988) ¾ a tendência dos estudos foi restringir-se aos trabalhos sobre a região (tal como a definem) e discutir a "mistura" como uma fabricação ideológica e distorcida.
O
órgão indigenista, igualmente, sempre manifestou seu incômodo e
hesitação em atuar junto aos "índios do nordeste", justamente por seu
alto grau de incorporação na economia e na sociedade regionais. O padrão
habitual de ação indigenista ocorria em situações de fronteira em
expansão, com povos indígenas que mantinham sob seu controle amplos
espaços territoriais (ou, inversamente, ameaçavam o controle das frentes
sobre estes) e que possuíam uma cultura manifestamente diferente
daquela dos não-índios. Estabelecer a tutela sobre os "índios" era
exercer uma função de mediação intercultural e política, disciplinadora e
necessária para a convivência entre os dois lados, pacificando a região
como um todo, regularizando minimamente o mercado de terras e criando
condições para o chamado desenvolvimento econômico (vide Oliveira 1983 e
1988; Lima 1995 para aprofundamento desse ponto).
No
Nordeste, contudo, os "índios" eram sertanejos pobres e sem acesso à
terra, bem como desprovidos de forte contrastividade cultural. Em uma
área de colonização antiga, com as formas econômicas e a malha fundiária
definidas há mais de dois séculos, o órgão indigenista atuava apenas de
maneira esporádica, respondendo tão-somente às demandas mais incisivas
que recebia. Mesmo nessas poucas e pontuais intervenções, o órgão
indigenista tinha de justificar para si mesmo e para os poderes
estaduais que o objeto de sua atuação era efetivamente composto por
"índios", e não por meros "remanescentes".
Em artigo que
integra uma publicação voltada para um público amplo (Oliveira 1994),
comparo os povos indígenas que estão na região Nordeste com aqueles da
Amazônia em termos dos territórios que ocupam ou reivindicam8.
Dadas as características e a cronologia da expansão das fronteiras na
Amazônia, os povos indígenas detêm parte significativa de seus
territórios e nichos ecológicos, enquanto no Nordeste tais áreas foram
incorporadas por fluxos colonizadores anteriores, não diferindo muito as
suas posses atuais do padrão camponês e estando entremeadas à população
regional9.
Essa
desproporção dá aos problemas e mobilizações dos povos indígenas na
Amazônia uma importante dimensão ambiental e geopolítica, enquanto no
Nordeste as questões se mantêm primordialmente nas esferas fundiária e
de intervenção assistencial. Se, na Amazônia, a mais grave ameaça é a
invasão dos territórios indígenas e a degradação de seus recursos
ambientais, no caso do Nordeste, o desafio à ação indigenista é restabelecer os territórios indígenas, promovendo a retirada dos não-índios das áreas indígenas, desnaturalizando a "mistura" como única via de sobrevivência e cidadania.
É
por isso que o fato social que nos últimos vinte anos vem se impondo
como característico do lado indígena do Nordeste é o chamado processo de
etnogênese, abrangendo tanto a emergência de novas identidades como a
reinvenção de etnias já reconhecidas. Como apontei naquela ocasião
(Oliveira 1994), é isso que pode ser tomado como base para distinguir os
povos e as culturas indígenas do Nordeste daqueles da Amazônia.
A
"etnologia das perdas" deixou de possuir um apelo descritivo ou
interpretativo e a potencialidade da área do ponto de vista téorico
passou a ser o debate sobre a problemática das emergências étnicas e da
reconstrução cultural. E é orientado por essas preocupações teóricas,
que se constituiu do início dos anos 90 para cá um significativo
conjunto de conhecimentos sobre os povos e culturas indígenas do
Nordeste10, ancorado na bibliografia inglesa e norte-americana sobre etnicidade e antropologia política, e ¾ é importante acrescentar ¾ nos estudos brasileiros sobre contato interétnico.
Apoiando-me
nessa significativa acumulação de dados etnográficos e nas
interpretações aí conduzidas, parece-me possível e necessário tentar uma
reflexão mais sistemática e elaborada sobre o lugar e a contribuição
que podem aportar esses estudos para a etnologia indígena. É o que
procurarei fazer a seguir.
Situação colonial e territorialização
Cabe
recordar que a noção de território não é de maneira alguma nova na
antropologia, sendo utilizada por Morgan (1973) como critério para
distinguir as formas de governo (societas e civitas,
baseadas, respectivamente, nos grupos de parentesco ou no território e
na propriedade), e retomada com a mesma função por Fortes e
Evans-Pritchard (1975) na classificação dos sistemas políticos
africanos. Em um artigo posterior, Bohanan (1967) fornece uma grande
quantidade de exemplos em que os princípios ordenadores de uma sociedade
estão localizados em um ponto específico da estrutura social ¾ o sistema de linhagem, as classes de idade, a organização militar, o sistema ritual, as formações religiosas ¾,
sem que as ações sociais possuam qualquer conexão mais significativa
com alguma base territorial fixa. À diferença dessas, outras sociedades
apresentam uma tendência a constituir formações estatais (ainda que
rudimentares) e costumam tomar o território como um fator regulador das
relações entre os seus membros.
Se muitos fatores (internos
e externos) podem ser indicados para explicar a passagem de uma
sociedade segmentar à condição de sociedade centralizada, o elemento
mais repetitivo e constante responsável por tal transformação é a sua
incorporação dentro de uma situação colonial, sujeita, portanto, a um
aparato político-administrativo que integra e representa um Estado (seja
politicamente soberano ou somente com status colonial). O que importa reter dessa discussão (que em outro trabalho ¾ Oliveira 1993 ¾ procurei explorar mais sistematicamente) é que é um fato histórico ¾ a presença colonial ¾
que instaura uma nova relação da sociedade com o território,
deflagrando transformações em múltiplos níveis de sua existência
sociocultural.
Foi para destacar a amplitude e a radicalidade de tal mudança ¾
a qual Henry Maine (1861), em uma linguagem claramente evolucionista e
sem se referir ao quadro colonial, celebrava como "a revolução mais
radical ocorrida no domínio da política" ¾ que foi formulada a noção de territorialização.
Como argumentei anteriormente (Oliveira 1993), "a atribuição a uma
sociedade de uma base territorial fixa se constitui em um ponto-chave
para a apreensão das mudanças por que ela passa, isso afetando
profundamente o funcionamento das suas instituições e a significação de
suas manifestações culturais". Nesse sentido, a noção de territorialização é definida como um processo de reorganização social
que implica: 1) a criação de uma nova unidade sociocultural mediante o
estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; 2) a
constituição de mecanismos políticos especializados; 3) a redefinição do
controle social sobre os recursos ambientais; 4) a reelaboração da
cultura e da relação com o passado.
Tal formulação pretende
acrescentar um elemento novo à clássica análise de Barth (1969) sobre
os grupos étnicos e suas fronteiras. Afastando-se das posturas
culturalistas, Barth definia um grupo étnico como um tipo
organizacional, onde uma sociedade se utilizava de diferenças culturais
para fabricar e refabricar sua individualidade diante de outras com que
estava em um processo de interação social permanente. Do ponto de vista
heurístico, portanto, seria um equívoco pretender reportar-se a uma
condição de isolamento (localizada no passado) para vir a explicar os
elementos definidores de um grupo étnico, cujos limites (boundaries) seriam construídos ¾ e sempre situacionalmente ¾
pelos próprios membros daquela sociedade. Isso o leva a propor o
deslocamento do foco de atenção das culturas (enquanto isolados) para os
processos identitários que devem ser estudados em contextos precisos e
percebidos também como atos políticos (recuperando assim a definição
weberiana de "comunidades étnicas" ¾ vide Weber 1983).
A
elaboração teórica de Barth vai justamente até esse ponto, quando,
então, cede a vez à investigação empírica. Quando a primeira é retomada
mais tarde (Barth 1984; 1988), o prisma adotado já é diverso (como
mencionarei adiante). Creio, no entanto, que é importante refletir mais
detidamente sobre o contexto intersocietário no qual se constituem os
grupos étnicos. Não se trata de maneira alguma de um contexto abstrato e
genérico, que possa absorver todas as sociedades e suas diferentes
formas de governo, mas de uma interação que é processada dentro de um
quadro político preciso, cujos parâmetros estão dados pelo Estado-nação
(Williams 1989). Para dar mais atualidade histórica a tal contexto,
caberia fazer dois reparos à formulação anterior: que algumas vezes o
exercício do mandato político pode ser transferido de um Estado-nação
para outro; e que existem regulamentações internacionais que ganham a
cada dia mais força e que vêm a instituir novos dinamismos na relação
entre grupo étnico e Estado-nação.
A dimensão estratégica
para se pensar a incorporação de populações etnicamente diferenciadas
dentro de um Estado-nação é, a meu ver, a territorial. Da perspectiva
das organizações estatais ¾ das quais os reinos seriam a primeira modalidade conhecida ¾,
administrar é realizar a gestão do território, é dividir a sua
população em unidades geográficas menores e hierarquicamente
relacionadas (vide Revel 1990), definir limites e demarcar fronteiras
(Bourdieu 1980).
A noção de territorialização tem a mesma função heurística que a de situação colonial ¾
trabalhada por Balandier (1951), reelaborada por Cardoso de Oliveira
(1964), pelos africanistas franceses e, mais recentemente, por Stocking
Jr. (1991) ¾, da qual descende e é caudatária em termos teóricos. É uma intervenção da esfera política que associa ¾ de forma prescritiva e insofismável ¾ um conjunto de indivíduos e grupos a limites geográficos bem determinados. É esse ato político ¾
constituidor de objetos étnicos através de mecanismos arbitrários e de
arbitragem (no sentido de exteriores à população considerada e
resultante das relações de força entre os diferentes grupos que integram
o Estado) ¾ que estou propondo tomar como fio condutor da investigação antropológica.
O que estou chamando aqui de processo de territorialização é, justamente, o movimento pelo qual um objeto político-administrativo ¾
nas colônias francesas seria a "etnia", na América espanhola as
"reducciones" e "resguardos", no Brasil as "comunidades indígenas" ¾
vem a se transformar em uma coletividade organizada, formulando uma
identidade própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e de
representação, e reestruturando as suas formas culturais (inclusive as
que o relacionam com o meio ambiente e com o universo religioso)11.
E aí volto a reencontrar Barth, mas sem restringir-me à dimensão
identitária, vendo a distinção e a individualização como vetores de
organização social. As afinidades culturais ou lingüísticas, bem como os
vínculos afetivos e históricos porventura existentes entre os membros
dessa unidade político-administrativa (arbitrária e circunstancial),
serão retrabalhados pelos próprios sujeitos em um contexto histórico
determinado e contrastados com características atribuídas aos membros de
outras unidades, deflagrando um processo de reorganização sociocultural
de amplas proporções.
O que sucedeu aos povos e culturas
indígenas do Nordeste? As populações indígenas que hoje habitam o
Nordeste provêm das culturas autóctones que foram envolvidas em dois processos de territorialização
com características bem distintas: um verificado na segunda metade do
século XVII e nas primeiras décadas do XVIII, associado às missões
religiosas; o outro ocorrido neste século e articulado com a agência
indigenista oficial. Embora possa surpreender que a construção de
objetos étnicos não ocorra quando da conquista nem na faixa do litoral,
isso não é raro, como demonstra Wachtel (1992:46-48) ao observar que,
entre os Chipaya e seus vizinhos no altiplano boliviano, a cristalização
dos elementos que podem ser ditos como constitutivos das identidades
étnicas atuais só se efetuou no curso do século XVIII.
Pelo
primeiro movimento, famílias de nativos de diferentes línguas e
culturas foram atraídas para os aldeamentos missionários, sendo
sedentarizadas e catequizadas. Desse contingente é que procedem as
atuais denominações indígenas do Nordeste, coletividades que
permaneceram nos aldeamentos sob o controle dos missionários, e
distantes dos demais colonos e dos principais empreendimentos (como as
lavouras de cana-de-açúcar, as fazendas de gado e as cidades do
litoral). Nesse sentido, a relação de aldeamentos missionários (vide
Dantas, Sampaio e Carvalho 1992:445-446) pode ser lida como uma complexa
árvore genealógica, contendo cadeias sucessórias e demandas
territoriais.
Mas as missões religiosas foram instrumentos
importantes da política colonial, empreendimentos de expansão
territorial e das finanças da Coroa, localizadas principalmente no
sertão do São Francisco. Para isso incorporavam ao Estado colonial
português um contingente de "índios mansos" e que já era produto de uma
primeira "mistura". Devemos observar que o processo de territorialização
vivenciado pela população autóctone é radicalmente diverso daquele
gerado pela política indigenista do século XX que, em termos de
propositura, pretende interromper o processo de assimilação compulsória,
deixando o progresso material da região como uma tarefa para os
não-indígenas. No caso das missões, que são unidades básicas de ocupação
territorial e de produção econômica, há uma intenção inicial explícita
de promover uma acomodação entre diferentes culturas, homogeneizadas
pelo processo de catequese e pelo disciplinamento do trabalho. A "mistura" e a articulação com o mercado são fatores constitutivos dessa situação interétnica.
Se as missões ¾ enquanto produto de políticas estatais ¾ conjugavam aspectos que podemos chamar de assimilacionistas e preservacionistas, o seu sucedâneo histórico ¾ o "diretório de índios" ¾
pendeu decisivamente para a primeira direção, estimulando os casamentos
interétnicos e a fixação de colonos brancos dentro dos limites dos
antigos aldeamentos. Essa foi a segunda "mistura", cujos efeitos
só não foram maiores pelo caráter extensivo e rarefeito da presença
humana nas fazendas de gado, único empreendimento que teve relativo
sucesso na região. Sem existir fluxos migratórios significativos para o
sertão, as antigas terras dos aldeamentos permaneceram sob o controle de
uma população de descendentes dos índios das missões, que as mantinham
como de posse comum, ao mesmo tempo que se identificavam coletivamente
mediante referências às missões originais, a santos padroeiros ou a
acidentes geográficos.
Mas a política assimilacionista vai
recrudescer, apoiada em mudanças demográficas e econômicas. Com a Lei de
Terras de 1850 inicia-se por todo o Império um movimento de
regularização das propriedades rurais. As antigas vilas,
progressivamente, expandem o seu núcleo urbano e famílias vindas das
grandes propriedades do litoral ou das fazendas de gado buscam
estabelecer-se nas cercanias como produtoras agrícolas. Os governos
provinciais vão, sucessivamente, declarando extintos os antigos
aldeamentos indígenas e incorporando os seus terrenos a comarcas e
municípios em formação. Paralelamente, pequenos agricultores e
fazendeiros não-indígenas consolidam as suas glebas ou, por
arrendamento, estabelecem controle sobre parcelas importantes das terras
que, na ausência de outros postulantes, ainda subsistiam na posse dos
antigos moradores. Essa foi a terceira "mistura", a mais radical,
que limitou seriamente as suas posses, deixando impressas marcas em
suas memórias e narrativas. É o que sucedeu, por exemplo, com os
Pankararu do Brejo dos Padres, que descrevem a extinção do antigo
aldeamento fazendo referência ao "tempo das linhas", quando ocorreram os
trabalhos de demarcação e distribuição de lotes (Arruti 1996).
Antes
do final do século XIX já não se falava mais em povos e culturas
indígenas no Nordeste. Destituídos de seus antigos territórios, não são
mais reconhecidos como coletividades, mas referidos individualmente como
"remanescentes" ou "descendentes". São os "índios misturados" de
que falam as autoridades, a população regional e eles próprios, os
registros de suas festas e crenças sendo realizados sob o título de
"tradições populares". Foi nessa condição, por exemplo, que uma equipe
do antigo Instituto Nacional do Folclore, na década de 70, visitou o
antigo aldeamento de Almofala, filmando e gravando a realização do
"torém", ritual mais importante dos índios Tremembé (Valle 1993).
O
segundo movimento de territorialização tem início na década de 20,
quando o governo de Pernambuco reconheceu (embora consolidando ocupações
posteriores) as terras doadas ao antigo aldeamento missionário de
Ipanema (1705), passando-as ao controle do órgão indigenista "para que
nela resida[issem] os descendentes dos Carnijos" até que pudessem ser
liberados dessa tutela (vide Peres 1992). Os Fulni-ô, como passam a ser
chamados desde a implantação de um Posto Indígena com esse nome, mantêm a
sua língua (yatê) e um período de reclusão ritual (o "ouricouri"),
constituindo-se assim como os mais claramente "índios" entre a população
indígena do Nordeste. O processo de territorialização operou como um
mecanismo antiassimilacionista (vide Cardoso de Oliveira 1972), criando
condições supostamente "naturais" e adequadas de afirmação de uma
cultura diferenciadora, e instaurando a população tutelada como um
objeto demarcado cultural e territorialmente. Apesar da última ressalva
do decreto, que fazia parte das finalidades declaradas da política
indigenista oficial, a intenção de tutores e tutelados nunca caminhou na
direção da total assimilação e da eliminação da tutela.
Nas
décadas seguintes foram implantados Postos Indígenas em diversas áreas
do Nordeste, visando atender as populações ali situadas. Em 1937 isso
ocorreu com os Pankararu (Brejo dos Padres, PE) e os Pataxó, da Fazenda
Paraguassu/Caramuru (Ilhéus, BA); em 1944 com os Kariri-Xocó, da ilha de
São Pedro (AL); em meados da década de 40 com os Truká, da ilha de
Assunção (BA); em 1949 com os Atikum, da serra do Umã (PE), e os Kiriri,
de Mirandela (BA); em 1952 com os Xukuru-Kariri, da Fazenda Canto (AL);
em 1954 com os Kambiwá (PE); e em 1957 com os Xukuru, de Pesqueira
(PE). Na maior parte desses casos terras foram demarcadas e destinadas
às populações atendidas.
Em linhas gerais, esse processo de
territorialização trouxe consigo a imposição de instituições e crenças
características de um modo de vida próprio aos índios que habitam as
reservas indígenas e são objeto, com maior grau de compulsão, do
exercício paternalista da tutela (fato independente de sua diversidade
cultural). Dentre os componentes principais dessa indianidade (Oliveira 1988) cabe destacar a estrutura política e os rituais diferenciadores.
A organização política de quase todas as áreas passou a incluir três papéis diferenciados ¾ o cacique, o pajé e o conselheiro (isto é, membro do "conselho tribal") ¾,
tomados como "tradicionais" e "autenticamente indígenas". A indicação
ou ratificação dos ocupantes desses papéis era realizada pelo agente
indigenista local (o chefe do P.I.), que, de fato, ocupava o topo dessa
estrutura de poder e quem distribuía os benefícios provenientes do
Estado (de alimentos a empregos, passando por empréstimos ou permissões
de uso de instrumentos agrícolas, meios de transporte, cacimbas d'água
etc.).
O patrimônio cultural dos povos indígenas do
Nordeste, afetados por um processo de territorialização há mais de dois
séculos, e depois submetidos a fortes pressões no sentido de uma
assimilação quase compulsória, está necessariamente marcado por
diferentes "fluxos" e "tradições" culturais (Hannerz 1997; Barth 1988).
Para que sejam legítimos componentes de sua cultura atual, não é preciso
que tais costumes e crenças sejam, portanto, traços exclusivos daquela
sociedade Ao contrário, freqüentemente, tais elementos de cultura são
compartilhados com outras populações indígenas ou regionais, como
ocorre, por exemplo, com os índios Tremembé e seus vizinhos, que possuem
em comum um conjunto de crenças e narrativas sobre o passado e o mundo
sobrenatural, que são, no entanto, muito distintas daquelas da população
rural do interior do Ceará (vide Valle 1993).
Mas a
política indigenista oficial exige demarcar descontinuidades culturais
em face dos regionais, e assim o processo de territorialização ganha
características bem distintas do que ocorreu nas missões religiosas. O
ritual do toré, por exemplo, permite exibir a todos os atores presentes
nessa situação interétnica (regionais, indigenistas e os próprios
índios) os sinais diacríticos de uma indianidade (Oliveira 1988)
peculiar aos índios do Nordeste. Transmitido de um grupo para outro por
intermédio das visitas dos pajés e de outros coadjuvantes, o toré
difundiu-se por todas as áreas e se tornou uma instituição unificadora e
comum. Trata-se de um ritual político, protagonizado sempre que é
necessário demarcar as fronteiras entre "índios" e "brancos". Foi o que
sucedeu com os Atikum, considerados como "índios" pelo SPI após ¾ como relatou um informante Atikum quase quarenta anos depois ¾
um inspetor ter ido assistir à performática realização de um toré. Ao
ver que "dançavam um toré arroxado" o representante oficial deu-se por
convencido, passando a encaminhar o processo de reconhecimento do grupo
(vide Grünewald 1993).
O processo de territorialização
não deve jamais ser entendido simplesmente como de mão única, dirigido
externamente e homogeneizador, pois a sua atualização pelos indígenas
conduz justamente ao contrário, isto é, à construção de uma identidade
étnica individualizada daquela comunidade em face de todo o conjunto
genérico de "índios do Nordeste". Os pajés Pankararu podem ensinar a
comunidades de parentes desgarrados como se faz um "praiá" (cerimonial
em que as máscaras dançam representando os "encantados"), mas cada nova
aldeia (assim como cada grupo étnico dali surgido ¾
como os Pankararé, os Kantaruré e os Jeripancó) irá levantar sua
própria "casa dos praiás", instituindo a sua própria galeria de
"encantados" e instaurando uma relação específica com os "encantados"
mais antigos (Arruti 1996).
Cada grupo étnico repensa a "mistura"
e afirma-se como uma coletividade precisamente quando se apropria dela
segundo os interesses e crenças priorizados. A idéia da "mistura"
está presente também entre os próprios índios, sendo acionada muitas
vezes para reforçar clivagens faccionais. Assim é que os Xukuru e
Xukuru-Kariri, dentre outros, fazem distinção entre os "índios puros"
(de famílias antigas e reconhecidas como indígenas) e os "braiados"
(produto de intercasamento com brancos ou outros já mestiçados) (vide,
respectivamente, Fialho 1992; Martins 1994)12.
Algumas
vezes era o próprio Posto Indígena que identificava os membros de uma
denominação indígena, mediante o fornecimento de carteira individual,
que atestava que "o portador desta era efetivamente índio". Mas à
imposição da norma segue-se a sua apropriação local, sempre específica e
individualizadora. Assim, os Kiriri criaram uma nova figura para lidar
com o fenômeno da identidade étnica, tão simples e clara como a lista,
só que sob seu controle e, portanto, podendo ser usada situacionalmente ¾
para "ser índio" não basta ter descendência indígena nem ter carteira, é
preciso também, como dizem, "passar no coador" (isto é, ter uma conduta
moral e política julgada adequada, mantendo-se em uma lista que fica em
mãos do cacique e que é atualizada de tempos em tempos em reunião do
"conselho indígena") (vide Brasileiro 1996).
Antes de
finalizar esta sumária apresentação de dados resultantes de pesquisas
mais recentes, caberia retornar à discussão do início deste subtítulo
sobre a natureza última dos grupos étnicos. Seguindo a análise de Weber
sobre as comunidades étnicas, Barth certamente diria que é a política.
Os dados apresentados em uma situação etnográfica bastante adversa ¾
em que populações que se reivindicam como indígenas estão altamente
dependentes do Estado e muito afetadas por agências e instituições
ocidentalizantes ¾ parecem exigir
uma maior complexificação. Cada comunidade é imaginada como uma unidade
religiosa e é isto que a mantém unificada e permite criar as bases
internas para o exercício do poder. Uma metáfora acionada por diferentes
grupos, em variados contextos, conecta as gerações do passado e do
presente (Baptista 1992; Barreto Filho 1993; Grünewald 1993; Arruti
1996). Os antepassados seriam "os troncos velhos" e as gerações atuais
"as pontas de rama". Quando as cadeias genealógicas foram perdidas na
memória e não há mais vínculos palpáveis com os antigos aldeamentos, as
novas aldeias têm de apelar aos "encantados" para afastar-se da condição
de "mistura" em que foram colocadas. Só assim podem reconstruir para si
mesmas a relação com os seus antepassados (o seu "tronco velho"),
podendo vir a redescobrir-se enquanto "pontas de rama".
Diásporas e viagens
Um outro movimento de territorialização
ocorre nos anos 70/80, quando chegam ao conhecimento público
reivindicações e mobilizações de povos indígenas que não eram
reconhecidos pelo órgão indigenista nem estavam descritos na literatura
etnológica. Era o caso dos Tinguí-Botó, dos Karapotó, dos Kantaruré, dos
Jeripancó, dos Tapeba, dos Wassu, dentre outros, que passam a ser
chamados de "novas etnias" ou de "índios emergentes".
As
metáforas utilizadas, seja para descrever esse processo, seja para
definir a especificidade dessas sociedades, devem ser vistas com
bastante reserva e desconforto, pois comprometem a investigação com
pressupostos arbitrários e equivocados. É comum o uso de imagens
naturalizantes ligando a dinâmica das sociedades ao ciclo biológico dos
indivíduos. Fala-se em nascimento e morte sob as imagens mais simples e
diretas, algumas vezes com a desculpa de uma intenção literária, mas
também na elaboração ou reelaboração de conceitos com pretensão
explicativa.
Assim aparece, por exemplo, o termo
"etnogênese", empregado por Gerald Sider (1976), no contexto de uma
oposição ao fenômeno do etnocídio. Não caberia tomá-la como conceito ou
mesmo noção, pois este e outros autores, que também aplicam a mesma
idéia na etnografia de populações indígenas (como Goldstein 1975),
sequer sentem a necessidade de melhor defini-la, tomando-a como
evidente. Em termos teóricos, a aplicação dessa noção ¾ bem como de outras igualmente singularizantes ¾
a um conjunto de povos e culturas pode acabar substantivando um
processo que é histórico, dando a falsa impressão de que, nos outros
casos em que não se fala de "etnogênese" ou de "emergência étnica", o
processo de formação de identidades estaria ausente.
Também
outras noções que ocupam lugares precisos dentro de certos quadros
teóricos podem vir a ser utilizadas com significados muito deslocados e
referidos à metáfora naturalizante acima criticada: é o caso dos
conceitos de acamponesamento/proletarização, cujo par é aplicado por
Amorim (1975) com a intenção de descrever um ciclo evolutivo marcado
pela fatalidade (expansão do capital e proletarização) atribuída à
história.
Uma outra classificação freqüente é a do atributo
da invisibilidade. Retoma uma tradição presente no Ocidente de
estabelecer uma identificação entre a visão e o conhecimento,
considerando aquela como uma faculdade privilegiada13.
Embora possa ser de utilidade enquanto artifício descritivo, no plano
da análise comparativa continua a ser caudatária de uma etnologia das
perdas e das ausências culturais.
A caracterização de
"índios emergentes" não deixa de ser igualmente incômoda. Por um lado,
sugere associações de natureza física e mecânica quanto ao estudo da
dinâmica dos corpos, o que pode trazer pressupostos e expectativas
distorcidos quando aplicada ao domínio dos fenômenos humanos. Como
imagem literária, ao contrário, reporta-se a uma aparição imprevista,
enfatizando o fator surpresa. Por sua ambigüidade, pode ser suscetível
de usos variados sem, no entanto, contribuir para o entendimento de
aspectos relevantes do fenômeno que designa.
Um outro
conjunto de imagens adota como estratégia singularizar tais sociedades,
de forma a poder contrapô-las e distingui-las dos modelos sociológicos
usuais. O mais popularizado é o costume de falar em "novas etnicidades"
(Bennett 1975), englobando um extenso arco de fenômenos (migrantes,
minorias reconhecidas, afro-americanos, índios em cidades etc.) que, em
si mesmos, pouco têm em comum. Mas, afinal, existe uma "velha"
etnicidade? Ou os autores que utilizam tal expressão estariam
construindo uma unidade fantasmática a partir de diferentes enfoques
pelos quais os antropólogos estudaram outras unidades sociais? Em lugar
de perder-se na linguagem do empiricismo, seria o caso de partir para
uma explicitação de pressupostos teóricos, mostrando aqueles que não
seriam cabíveis nas novas circunstâncias, bem como apontando os que
poderiam abrir caminhos alternativos para a análise. A noção de sociétés fractales
(vide Bernand e Gruzinski 1992:32) elaborada para indicar sociedades
cujas formas de sociabilidade são irregulares e interrompidas, também
parece-me sofrer de uma limitação similar.
Em um artigo recente, J. Clifford (1997) procura dar um status
de instrumento analítico ao termo "diáspora", amplamente difundido nas
discussões atuais sobre globalização, migrações e etnicidade. Embora o
autor não se encaminhe para uma definição, poderíamos dizer que a
diáspora remete àquelas situações em que o indivíduo elabora sua
identidade pessoal com base no sentimento de estar dividido entre duas
lealdades contraditórias, a de sua terra de origem (home) e do lugar onde está atualmente, onde vive e constrói sua inserção social (o que Bhabha 1995 chama de locations).
Apesar da multiplicidade de formas de que a diáspora se reveste,
Clifford insiste em que a sua unidade só pode ser afirmada por oposição
aos processos que afetam as nações e os povos indígenas (excluídos estes
da noção de diáspora porque jamais deixariam de estar referidos à sua
própria origem).
A razão da exclusão dos povos indígenas do
conceito guarda-chuva de diáspora parece-me vazada em um uso
esquemático das polaridades culturais em uma situação interétnica, o que
a meu ver, inclusive, compromete o esforço de Clifford na construção
relacional do conceito de diáspora. Mas o que interessa aqui é outro
aspecto: feitas as devidas ressalvas, poderia dizer que Clifford,
implicitamente, estaria sinalizando a importância da relação com a
origem como característica das identidades indígenas. Por que os povos
indígenas nunca chegariam à condição de unhomed (Bhabha 1995:9), tão típica das populações que sofrem processos migratórios?
É isso que me estimula a retomar uma imagem ¾ a da "viagem da volta" (Oliveira 1994) ¾
por mim utilizada em uma publicação destinada a um público heterogêneo
de pessoas interessadas nos "índios do Nordeste" (inclusive as suas
próprias "lideranças"), e anterior ao artigo de Clifford. No sentido
usado naquele contexto, a viagem é a enunciação, auto-reflexiva, da
experiência de um migrante, transposta para os versos de Torquato Neto:
"desde que saí de casa, trouxe a viagem da volta gravada na minha mão,
enterrada no umbigo, dentro e fora assim comigo, minha própria
condução".
Os debates teóricos sobre etnicidade apontam
sempre para uma bifurcação de posturas: de um lado, os instrumentalistas
(Barth 1969; Cohen 1969; 1974; e muitos outros), que a explicam por
processos políticos que devem ser analisados em circunstâncias
específicas; de outro, os primordialistas, que a identificam com
lealdades primordiais (Geertz 1963; Keyes 1976; Bentley 1987). A imagem
figurativa por mim utilizada tem, justamente, como finalidade superar
essa polaridade, também objeto de reflexão de Carneiro da Cunha (1987),
mostrando que ambas as correntes apontam para dimensões constitutivas,
sem as quais a etnicidade não poderia ser pensada. A etnicidade supõe,
necessariamente, uma trajetória (que é histórica e determinada por
múltiplos fatores) e uma origem (que é uma experiência primária,
individual, mas que também está traduzida em saberes e narrativas aos
quais vem a se acoplar). O que seria próprio das identidades étnicas é
que nelas a atualização histórica não anula o sentimento de referência à
origem, mas até mesmo o reforça. É da resolução simbólica e coletiva
dessa contradição que decorre a força política e emocional da
etnicidade.
Na imagem de "viagem da volta" há dois aspectos
que explicitam, respectivamente, a relação entre etnicidade e
território e entre etnicidade e características físicas dos indivíduos,
que é preciso esclarecer e elaborar melhor. A expressão "enterrada no
umbigo" traz para os nordestinos uma associação muito particular. Nas
áreas rurais há um costume de as mães enterrarem o umbigo dos
recém-nascidos para que eles se mantenham emocionalmente ligados a ela e
à sua terra de origem. Como é freqüente nessas regiões a migração em
busca de melhores oportunidades de trabalho, tal ato mágico (uma
"simpatia") aumentaria as chances de a criança retornar um dia à sua
terra natal. O que a figura poética sugere é uma poderosa conexão entre o
sentimento de pertencimento étnico e um lugar de origem específico,
onde o indivíduo e seus componentes mágicos se unem e identificam com a
própria terra, passando a integrar um destino comum. A relação entre a
pessoa e o grupo étnico seria mediada pelo território e a sua
representação poderia remeter não só a uma recuperação mais primária da
memória, mas também às imagens mais expressivas da autoctonia.
O
outro ponto é a relação entre etnicidade e características físicas. Ao
dizer que sua natureza está "gravada" na própria mão, o narrador cria um
vínculo primário inextirpável, transmitido biologicamente, entre ele e a
coletividade maior. Trata-se de algo muito mais forte do que uma
lealdade, a qual remeteria a fenômenos socioculturais e a contextos e
oportunidades de atualização histórica (ou não). Inscrita em seu próprio
corpo e sempre presente ("dentro e fora, assim comigo"), a relação com a
coletividade de origem remete ao domínio da fatalidade, do irrevogável,
que estabelece o norte e os parâmetros de uma trajetória social
concreta. Enquanto o percurso dos antropólogos foi o de desmistificar a
noção de "raça" e desconstruir a de "etnia", os membros de um grupo
étnico encaminham-se, freqüentemente, na direção oposta, reafirmando a
sua unidade e situando as conexões com a origem em planos que não podem
ser atravessados ou arbitrados pelos de fora. Sabem que estão muito
distantes das origens em termos de organização política, bem como na
dimensão cultural e cognitiva. A "viagem da volta" não é um exercício
nostálgico de retorno ao passado e desconectado do presente (por isso
não é uma viagem de volta).
Na minha escolha da imagem de
"viagem da volta" também esteve presente uma outra razão, quase, diria,
de fidelidade etnográfica. Desde V. Turner (1974), os antropólogos sabem
que as peregrinações podem ser importantes meios para a construção de
uma unidade sociocultural entre pessoas com interesses e padrões
comportamentais variados. Não são poucos nem inexpressivos os autores
que consideram as viagens como fator importante na própria constituição
das sociedades (Fabian 1983; Anderson 1983; Pratt 1992 e, mais
recentemente, Clifford 1997).
É exatamente isso que se
verifica nos estudos mais recentes sobre os grupos étnicos do Nordeste.
Foi absolutamente decisivo o papel de líderes como Acilon, entre os
Turká (vide Baptista 1992), de Perna-de-Pau, entre os Tapeba (Barreto
Filho 1993), de João-Cabeça-de-Pena, entre os Kambiwá (Barbosa 1991).
Suas viagens às capitais do Nordeste e ao Rio de Janeiro para obter o
reconhecimento do SPI e a demarcação de suas terras configuraram
verdadeiras romarias políticas, que instituíram mecanismos de
representação, constituíram alianças externas, elaboraram e divulgaram
projetos de futuro, cristalizaram internamente os interesses dispersos e
fizeram nascer uma unidade política antes inexistente. É preciso
perceber que essas viagens só assumiram tal significação porque os
líderes também atuaram em uma outra dimensão, realizando outras viagens,
que foram peregrinações no sentido religioso, voltadas para a
reafirmação de valores morais e de crenças fundamentais que fornecem as
bases de possibilidade de uma existência coletiva.
Acilon Ciriaco da Luz foi o primeiro "chefe da aldeia" ¾ conforme relato feito quase cinqüenta anos depois por sua filha à pesquisadora Mércia Baptista ¾
porque foi ele quem viajou no tempo e no espaço e chegou até a antiga
"aldeia" onde seus antepassados ("índios puros") lhe ensinaram coisas
muito importantes e úteis, que seus pais já haviam desaprendido.
Contaram-lhe o verdadeiro, mas esquecido nome da aldeia, mostraram-lhe
os limites que ela deveria ter e mandaram "levantá-la outra vez",
ensinando ao "seu pessoal" como deveriam viver. Essa viagem ¾ feita por um homem marcado desde a infância pela paralisia ¾ criou o grupo étnico Turká (Baptista 1992).
Daí
a afirmação de que o surgimento de uma nova sociedade indígena não é
apenas o ato de outorga de território, de "etnificação" puramente
administrativa, de submissões, mandatos políticos e imposições
culturais, é também aquele da comunhão de sentidos e valores, do batismo
de cada um de seus membros, da obediência a uma autoridade
simultaneamente religiosa e política. Só a elaboração de utopias
(religiosas/ morais/políticas) permite a superação da contradição entre
os objetivos históricos e o sentimento de lealdade às origens,
transformando a identidade étnica em uma prática social efetiva,
culminada pelo processo de territorialização.
Uma etnologia dos "índios misturados"?
Voltando
à sugestiva metáfora do antropólogo como astrônomo, poderia dizer que
pesou sobre a etnologia do Nordeste uma estranha maldição: no momento
mais adequado para a observação das diferenças ¾ ou seja, no início da colonização ¾
não existia ainda a disciplina (com seu instrumental teórico e
metodológico); uma vez esta constituída, não havia mais culturas que
possibilitassem registros de afastamentos significativos. Tal paradoxo,
contudo, não seria específico do Nordeste brasileiro, mas compartilhado
em grau maior ou menor pelas áreas de colonização mais antigas nas
Américas (como a costa leste da América do Norte, o planalto central do
México, a faixa entre os Andes e o litoral do Pacífico, bem como a
região platina), que deram origem a populações fortemente heterogêneas,
com "culturas híbridas" (Canclini 1995) e índios misturados, aos quais os etnólogos e etnógrafos não dedicaram maior interesse.
Em um volume especial da revista L'Homme,
comemorativo dos quinhentos anos do descobrimento da América, Bernand e
Gruzinski (1992:21) indicam algumas lacunas significativas na
investigação etnológica. Segundo eles, os mestiços constituiriam o lado
verdadeiramente esquecido da antropologia americanista, cujo maior
defeito seria o de operar as suas pesquisas como se existisse uma
"clivagem epistemológica entre Índios de um lado e não autóctones do
outro" (Bernand e Gruzinski 1992:9).
Tal citação deixa-me
em posição mais confortável para fazer um comentário. A antropologia
brasileira registrou nas décadas de 50 e 60 preocupações inovadoras e
reflexões bastante originais diante de problemáticas e padrões de
trabalho científico colocados em prática naquele momento nos centros
metropolitanos de produção e consagração da disciplina. Dentre outras,
eu indicaria três que merecem ser reexaminadas e revistas: a crítica aos
estudos de aculturação e ao conceito de assimilação; a ênfase no estudo
da situação colonial e suas repercussões sobre os dados e
interpretações; e a dimensão ético-valorativa do exercício da ciência.
As
sugestões contidas na metáfora da astronomia propiciaram importantes
avanços em muitos domínios da etnologia, mas também inibiram (ou
tenderam a colocar como invisíveis e secundários) a pesquisa e a
reflexão sobre fenômenos socioculturais que não se enquadravam
exatamente em sua ótica. Em um movimento de distanciamento dos
pressupostos do americanismo, eu indicaria esquematicamente quatro
pontos de ruptura.
O primeiro seria o questionamento quanto
à completa abstração dos contextos em que são gerados os dados
etnográficos. Se estes não viajam no espaço interestelar através das
lentes de um telescópio, nem resultam de condições ideais de
laboratório, é necessário então descrever, de modo circunstanciado, as
condições concretas de funcionamento das culturas ditas autóctones para
poder desnaturalizar e compreender contextualmente os dados obtidos
(vide Rosaldo 1980; 1989; Fabian 1983; Clifford e Marcus 1986; Clifford
1988; 1997; Oliveira 1988). Em um reexame crítico de algumas monografias
clássicas dos africanistas ingleses, Owusu (1978) faz importantes
retificações etnográficas e interpretativas, atribuindo os equívocos aí
encontrados ao costume ¾ que chama de "anacronismo essencial" ¾
de apresentar os dados etnográficos como se resultassem de um contexto
tradicional, quando de fato foram coletados no quadro colonial.
Os
povos indígenas hoje estão tão distantes de culturas neolíticas
pré-colombianas quanto os brasileiros atuais da sociedade portuguesa do
século XV, ainda que possam existir, nos dois casos, pontos de
continuidade que precisariam ser melhor examinados e diferencialmente
avaliados. As sociedades indígenas são efetivamente contemporâneas
àquela do etnógrafo (Laraia 1995), da qual participam mediante
interações socioculturais que precisam ser descritas e analisadas, pois
constituem uma dimensão essencial à compreensão dos dados gerados.
Segundo,
não é possível descrever os fatos e acontecimentos dentro de uma
cultura a partir de uma temporalidade única e homogeneizadora (a longa
duração). Caso os registros etnográficos estejam circunscritos a uma só
temporalidade, a tendência será, necessariamente, distorcer, minimizar
ou mesmo omitir os fenômenos que não se ajustam a um tal ritmo,
produzindo análises parciais, esquemáticas e pouco explicativas. Entra
em cena, então, uma história da contingência e do acidental, e não uma
história constitutiva, que integre as diferentes temporalidades e
permita compreender os fatos e as unidades observadas (vide Thomas 1989;
1994; Bensa 1996).
Terceiro, os relatos etnográficos
evidenciam que as sociedades indígenas são complexas e suas culturas
heterogêneas e diversificadas. Até para compreender as expressões mais
emocionais e reiteradas de unidade e harmonia, é preciso resgatar a
polifonia real (Ramos 1988). As ações e os conteúdos simbólicos que
trazem não correspondem unicamente a uma projeção de modelos atemporais e
inconscientes, mas representam uma solução a problemas (inclusive com
uma dimensão ético-valorativa) surgidos no curso das interações sociais
(vide Bellah 1983; Velho 1995). Seria extremamente empobrecedor despojar
as intervenções verbais dos nativos de uma dimensão crítica e
explicativa, que esteja associada à constituição de "comunidades de
argumentação" (vide Cardoso de Oliveira 1996) que podem operar em
diferentes planos e com objetivos diversos.
Quarto, as
culturas não são coextensivas às sociedades nacionais nem aos grupos
étnicos. O que as torna assim são, por um lado, as demandas dos próprios
grupos sociais (que através de seus porta-vozes instituem as suas
fronteiras), e, por outro, a complexa temática da autenticidade (que
acaba por conferir uma posição de poder ao antropólogo, demarcando
espaços sociais como legítimos ou ilegítimos). Em tempos de
multiculturalismo, vale lembrar a indagação formulada por Radhakrishnan:
"por que eu não posso ser indiano sem ter de ser 'autenticamente
indiano'? A autenticidade é um lar que construímos para nós mesmos ou é
um gueto que habitamos para satisfazer ao mundo dominante?" (1996:
210-211). Para escapar dessa armadilha, alguns autores (Barth 1984;
1988; Hannerz 1992; 1997) sugerem abandonar imagens arquitetônicas de
sistemas fechados e se passar a trabalhar com processos de circulação de
significados, enfatizando que o caráter não estrutural, dinâmico e
virtual é constitutivo da cultura.
Tal alternativa de
construção teórica parece-me mais profícua e universal, permitindo uma
base mais ampla de comparações, sem exigir a aceitação de pressuposições
quanto ao isolamento, ao distanciamento e à objetividade. Nesse
sentido, considero que as pesquisas e interpretações sobre os "índios
misturados" tiveram o mérito de trazer para o debate entre os etnólogos
alguns dos desafios presentes na disciplina antropologia.
Ao concluir, gostaria de explicitar com a máxima clareza possível que a minha intenção não é propor uma etnologia dos "índios do Nordeste", ou mesmo uma etnologia dos "índios misturados",
que funcionasse como um contraponto ao modelo dos americanistas. Como
lembra Fardon (1990), a regionalização da antropologia leva à
homogeneidade de métodos e problemáticas, à criação de uma rede de
interdependências acadêmicas e institucionais que torna difícil pensar a
renovação teórica como um movimento interno a essas virtuais
subdisciplinas. Embora existam sinais de insatisfação, em face dos
pressupostos acima criticados, em expressivos autores americanistas
(como Taylor 1984:231-232; Turner 1991; Overing 1994), a preocupação em
reafirmar uma continuidade interior, bem como a tendência a evitar abrir
diálogos mais amplos, limitam, a meu ver, essas iniciativas. Em virtude
dos mesmos argumentos não poderia, de modo algum, postular a
autonomização de enfoques ou problemáticas vis-à-vis os debates e
dilemas que afetam a disciplina como um todo. Se, por mera necessidade
de comunicação tivesse de agregar algum adjetivo ao exercício de
investigação e reflexão que pesquisadores diversos realizaram no
Nordeste, mas também na Amazônia e em outras regiões do mundo, talvez
fosse oportuno destacar a preocupação de buscar caminhos para uma
possível "antropologia histórica".
Recebido em 19 de novembro de 1997
Aprovado em 6 de janeiro de 1998
Aprovado em 6 de janeiro de 1998
João
Pacheco de Oliveira é professor-titular de Etnologia do Museu Nacional e
leciona no PPGAS/UFRJ. Realizou pesquisa com os índios Ticuna, do que
resultou sua tese de doutoramento, publicada em 1988. Orientou teses e
dissertações sobre povos indígenas do Nordeste e da Amazônia, em
programa comparativo de pesquisas em etnicidade e território. E-mail: jpacheco@ism.com.br
Notas
1 Os de Estevão Pinto, editados em 1935 e 1938 na Coleção Brasiliana, e Hohenthal, publicado na Revista do Museu Paulista em 1960.
2
Foram quatro dissertações na Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFBA,
duas dissertações e uma tese de doutorado no PPGAS, e uma dissertação
de mestrado na UnB.
3 Que iria do litoral da Paraíba ao sul da Bahia, abrangendo também o sertão de Pernambuco, Alagoas, Bahia e Minas Gerais.
4
Se o termo mesclagem nos parece estranho, uma consulta ao dicionário
pode ser esclarecedora: além de significados gerais, como "misturar,
confundir" e outros mais específicos, intercalar, entremear, incorporar
(também bastante cabíveis), é registrado explicitamente "misturar (o
sangue) pelo casamento de pessoas de raças diversas" (Holanda 1975:915).
5
Por um lado, Lévi-Strauss chama a atenção para a escala de tempo em que
o etnólogo deve proceder aos seus registros e interpretações: é a
"longa duração", onde as disposições quanto ao tempo, como em Braudel,
remetem aos parâmetros com que opera a geologia; por outro, etnologia e
história, partilhando o mesmo objeto e método, distinguem-se por
perspectivas complementares, organizando seus dados em relação "às
condições inconscientes da vida social" ou, respectivamente, "às
expressões conscientes" (Lévi-Strauss 1967:34). A noção de cultura é
equiparada à de "isolado" em demografia, sendo do mesmo tipo e possuindo
o mesmo valor heurístico. Ainda que a sua amplitude possa variar em
"função do tipo de pesquisa considerado", não deixaria jamais, contudo,
de "corresponder a uma realidade objetiva" (Lévi-Strauss 1967:335).
Seguir tais regras de método permitiria definir o lugar da antropologia
entre as demais ciências sociais, como sendo "hoje a única disciplina do
distanciamento social" (Lévi-Strauss 1967:423).
6
Como o Museu de Arqueologia e Etnologia e o Curso de Pós-Graduação em
Ciências Sociais da UFBA, os Cursos de Pós-Graduação em História e
Arqueologia da UFPE, o Museu Câmara Cascudo e a curta experiência de um
Mestrado em Ciências Sociais em Natal, e o Museu Théo Brandão em Maceió.
7
Como o fizeram, respectivamente, Frederico Edelweiss, que se dedicou ao
estudo das línguas Tupis, ou ainda Thales de Azevedo (1976), ao
focalizar a catequese como processo de aculturação.
8
Enquanto na Amazônia a maioria das áreas ultrapassa os 50.000 ha e as
terras indígenas representam de 10% a 40% da superfície dos estados, no
caso do Nordeste, as extensões de terras pleiteadas são pequenas (em
geral inferiores a 2.000 ha), correspondendo a fazendas de porte médio e
jamais representando mais de 0,7% das terras do estado.
9
Se na Amazônia a proporção entre terra/homem é de mais de mil ha por
índio, no Nordeste, onde a população indígena é numerosa (porque já
atravessou em gerações passadas os desequilíbrios demográficos vividos
nas primeiras fases do contato), essa relação corresponde a 7,2 ha para
cada índio.
10
Em sua maioria são dissertações de mestrado (defendidas principalmente
no PPGAS e na UFBA, mas ainda na UFPE e na UnB), mas tambem incluem
importantes laudos periciais, relatórios de identificação e também
projetos de pesquisa (notoriamente Sampaio 1986).
11 Caberia chamar a atenção para a diferença entre territorialização
(um processo social deflagrado pela instância política) e
"territorialidade" (um estado ou qualidade inerente a cada cultura).
Esta última é uma noção utilizada por geógrafos franceses (Raffestin,
Barel) que destaca, naturaliza e coloca em termos atemporais a relação
entre cultura e meio ambiente (vide crítica conduzida em Oliveira 1994).
12
Não encontrei explicação para o termo "braiado". Tratando-se de uma
região de criatório, talvez possa haver alguma associação com o termo
"bragado" (aplicado a bois e cavalos "cujas pernas têm cor diferente do
resto do corpo") (Holanda 1975:224).
13 Não se trata de uma aplicação nova em face das populações indígenas da América, existindo monografias ¾ como a de Elizabeth Colson (1974 [1953]) sobre os Makah, e de Anthony Stocks (1981) sobre os Cocama ¾ que assumem como eixo ordenador de sua exposição a idéia da invisibilidade.
*
Conferência realizada no concurso para professor-titular da disciplina
Etnologia, Museu Nacional/ UFRJ, Rio de Janeiro, 11 de novembro de 1997.
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