Há 25 anos pedi a Darcy Ribeiro para escrever o prefácio ao livro que
terminara de escrever, OS ÍNDIOS E O BRASIL. Darcy escreveu e o livro
foi publicado pela Editora Vozes em 1988, com segunda edição em 1991. O
livro está para sair de novo, em breve, em terceira edição, por outra
editora, com adendos, acréscimos e análises renovadas. Compartilho com
vocês o Prefácio de Darcy Ribeiro.
PREFÁCIO
Afinal, um livro sobre os índios
bom de ler: honesto, sábio, leal. Sim, estas são as qualidades distintivas
desse texto de Mércio Pereira Gomes. Ele aqui dá conta da situação existencial
dos índios trinta anos depois do meu balanço em Os índios e a Civilização.
Quando procedi àquela avaliação, a
expectativa da UNESCO, que encomendou a pesquisa, era mostrar ao mundo o
caminho pelo qual os brasileiros estavam incorporando os índios à civilização
como parte distinguível da sociedade nacional. Demonstrei que nada disso sucedia.
Os índios vinham e estavam sendo exterminados. Cento e quarenta e três povos
indígenas sobreviviam, é verdade (mas oitenta e sete haviam desaparecido entre
1900 e 1957), graças ao vigor extraordinário de sua identificação étnica que
lhes conferia uma resistência espantosa. Só o alcançaram, porém, a custo de
profundas transformações culturais, uma vez que grande parte das suas formas de
fazer, de sentir e de conviver se tornavam inviáveis ao contato com a
civilização.
Sobreviviam, assim, cada vez menos
"selvagens", menos "exóticos", porque cada vez mais
incorporados à rede de produção e de consumo. Por dez anos, andei
exaustivamente por todo o país e não encontrei em lugar nenhum qualquer grupo
de ex-índios confundíveis com os caboclos. Quaisquer que fossem as condições
que enfrentassem, por mais que elas lhes fossem adversas, ainda mesmo quando
profundamente mestiçado com negros e com brancos, permaneciam índios.
Foi assim que eu me deparei com
eles: seja sob a proteção oficial do Estado, seja sob o amparo missionário,
seja lutando frente a frente com o contexto civilizatório que os sitiava, todos
eram e permaneciam índios. Vale dizer, viam-se a si mesmos como uma comunidade
humana original, diferente da neo-brasileira.
A sobrevivência desses índios
residia, precisamente, na sua aparente incapacidade para se desfazerem na
sociedade nacional. Isto colocava uma questão crucial que ainda vibra,
desafiando a Antropologia brasileira: como é que se constituiu o povo brasileiro,
se não foi pela assimilação progressiva de grupos indígenas? Vai ser necessário
aprofundar muito mais o nosso conhecimento sobre o papel do convívio dos índios
com a civilização, debaixo das opressões do escravismo, e sobre as condições em
que mulheres apresadas eram prenhadas para parir filhos que não se
identificavam com a etnia materna e que eram rechaçados pela paterna. Esses filhos
de ninguém é que, ao se avolumarem, iam constituindo uma terceira camada de
gente, nem nativa nem européia, que seriam os primeiros brasileiros. Eis como
se deu a nossa formação demográfica inicial. Só pela opressão individualizada
de cada índio desgarrado de seu povo, os índios deixam de ser índio. No processo
histórico-social, tal como ele se dá fora do apresamento, o que de fato ocorre
não é o trânsito do índio ao brasileiro, como se pensava; mas o do índio
isolado ao índio integrado, ou seja, aquilo que eu chamei de transfiguração
étnica.
Já naqueles anos era visível que
alguns grupos indígenas estavam crescendo demograficamente, e que a tendência
era que, no futuro, viessem a existir mais índios, não havendo a hipótese de
que fossem liquidados. Prevaleciam, porém, no conjunto, condições tão terríveis
de compressão sobre os índios, que maior era o número dos que se viam
exterminados, do que aqueles que conseguiam refazer o seu montante populacional.
Passadas essas três décadas, Mércio nos mostra agora o fim do declínio
demográfico dos povos indígenas, anunciando, com toda clareza, que vai haver
mesmo mais índios no futuro do que no passado imediato.
A
praga que mais devastou os povos indígenas, desde o começo dos nossos séculos,
foram as pestes européias de extremada virulência que grassavam de tribo a
tribo, em cadeias de contaminação generalizada. Epidemias como as de varíola,
sarampo, catapora, difteria, gripe, coqueluche, tuberculose e outras. Esse
fator de morte se reduziu sensivelmente porque na própria sociedade nacional
essas ondas epidêmicas também desapareceram.
Outra praga, o genocídio, vinha
diminuindo de freqüência, desde os tempos de Rondon. Ela diminuiu, também
sensivelmente, nessas últimas três décadas, mas continua assassinando líderes
indígenas, e os assassinos permanecem sempre impunes, o que demonstra a
conivência da sociedade nacional com os massacradores de índios.
A terceira peste, que é o extermínio
cultural, o etnocídio, induzido tanto pela própria burocracia oficial
protecionista, como pela ação missionária, também declinou em seu poder destrutivo.
Durante séculos e mesmo nas décadas primeiras do século XX, tremenda foi a
opressão psicológica exercida sobre os índios pela desmoralização de suas
crenças e pela indução da idéia de sua inferioridade, o que conduzia ao
alcoolismo, à preguiça e à anomia.
O fim desse fator de extermínio se
deve, de um lado, à mudança de atitude das missões religiosas, principalmente
das católicas, que passaram a avaliar, para tentar evitar, os danos terríveis
que o etnocídio por elas provocado causavam aos povos que pretendiam proteger a
partir de uma ação em que o missionário se definia como agente civilizador.
Esta era a face mais hipócrita da civilização: salvar as almas dos índios, facilitando
o extermínio dos seus corpos e a espoliação de suas terras. Soma-se a essa
forma de opressão a exercida pelo Estado, representado pela burocracia oficial,
com o paternalismo amoral do funcionário que se fazia tratar como o
"paizinho protetor".
O fato decisivo, entretanto, foi a
resistência dos próprios índios que inviabilizou essa forma de etnocídio ao
rechaçar o fanatismo missionário e o paternalismo burocrático, impondo respeito
às suas próprias lideranças.
Mércio
valoriza com muita justeza o papel relevante representado pela opinião pública
nacional e internacional. Em muitas circunstâncias, nessas tantas décadas em
que tenho lutado pela causa indígena, eu senti que só ganhando a opinião
pública, através dos órgãos de comunicação, se conseguia salvar um grupo
indígena de uma extorsão ou de um extermínio. É exemplar o caso do projeto de
emancipação indígena, no governo Geisel, que, se aprovado, teria entregue todos
os grupos indígenas ao arbítrio funcionário, dando aos burocratas o direito de
declarar que uma tribo estava emancipada - na prática, abandonada à sua sorte.
Foi a reação levantada na opinião pública nacional e internacional que
paralisou a vontade genocida daquele governante.
Chamou a atenção, também, para um
fator positivo, surgido recentemente, que é o pendor preservacionista de
caráter ecológico, que passou a considerar as comunidades indígenas como faces
raras do fenômeno humano que têm, também, o direito de ser e de se expressar.
Por tudo isso louvo este livro, com
a alegria de ver que, afinal, temos um texto que pode servir de base ao debate
sobre a questão indígena, tal como ela se apresenta, hoje, aos olhos dos
próprios índios. Vale dizer, tal como se trava sua luta contra os genocidas e
os etnocidas, agora não mais sob a égide do missionário ou do protetor, mas sob
o mando do próprio movimento índio.
É de assinalar aqui que este índio
novo, tão melhor armado para a sua própria defesa, provoca grandes antipatias.
O seu símbolo maior, Mário Juruna, chega a desencadear ódios como se fosse um
ser detestável. É profundamente lamentável que até a imprensa mais respeitável
do país, a exemplo do Jornal do Brasil,
tenha mantido, durante anos, uma campanha sistemática de desinformação contra o
Deputado Mário Juruna, através dos procedimentos mais antiéticos, indignos da
sua tradição jornalística. Essa gente, apodrecida no preconceito, ignora que Juruna
surge à luz como um herói do seu povo. Graças à mobilização que ele fez de todos
os Xavantes e à declaração de guerra que impôs à sociedade brasileira, ele
recuperou para o seu povo mais da metade do território tribal, roubado com a conivência
de funcionários da FUNAI. Como esquecer as célebres reuniões do Conselho de
Segurança Nacional onde se colocava em discussão se se devia mandar tropas e
canhões acabar com os Xavantes, à moda americana, ou se era mais ajuizado
mandar demarcar as terras que lhes haviam sido furtadas.
Ao meu juízo, Mário Juruna pode ser
considerado um dos melhores, se não o melhor deputado da legislatura passada, se
eles se julgam por sua eficácia na defesa daqueles que se propõem representar.
Muitas vezes sua ação pareceu ridícula e foi propositadamente deformada na
imprensa. Mas é de notar que suas posturas intempestivas se realizavam sempre a
partir de uma posição ética, tal como ocorreu quando provou que Maluf subornava
deputados.
Irritação ainda maior provoca em
outros setores o índio que apela para os mecanismos e linguagens do sistema
capitalista para sobreviver no contexto mercantil em que está posto. Índios
cobrando para serem filmados? Índios querendo royalties sobre minérios
extraídos do seu território? Índios arrendando castanhais? Índios cobrando aluguel
de pastos ou de terras agrícolas? Tudo isso parece horrível, tanto para os
bobocas, por sua ingenuidade, que só admitem o índio como o selvagem ingênuo,
quanto para os sabidos, que preferem negociar com funcionários ladravazes do
que com as lideranças das comunidades indígenas.
Em seu diagnóstico pioneiro dessas situações
novas, Mércio sempre olha os índios como gente igual a gente, merecedora de
respeito, capaz de raciocínio lúcido, gente necessitada de apoio na luta por
seus direitos, desde sempre expressos da forma mais clara em toda a legislação
nacional, mas desde sempre sistematicamente espoliados.
Adotando a perspectiva de Mércio,
começaremos a ver os índios como gente autônoma, cada vez mais precavida, que
não carece, nem requer tutelas oficiais ou paternalismos missionários.
Este livro assinala um outro fato
novo e relevante, que é o ressurgimento de uma Antropologia socialmente
responsável ante os grupos que estuda. Ela ressurge na figura de antropólogos
que me lembram Curt Nimuendaju e Eduardo Galvão, deixando para trás a atitude
boquiaberta, novidadeira e moralmente irresponsável, que floresceu nos
estercais da ditadura.
A sobrevivência dos índios, sua
permanência histórica como parte constitutiva e essencial do Brasil, provoca
desafiadoramente a necessidade de se criar uma nova Antropologia que responda não
somente pelo presente, mas que também tome coragem de ousar pensar para o
futuro. Todo o esforço antropológico brasileiro, até agora, vinha sendo no
sentido de explicar quem são os índios e o porquê de tantos se extinguirem e
uma porcentagem mínima sobreviver. Esta nova geração de antropólogos terá que
se aliar aos índios para projetá-Ios no futuro e ajudá-los, por todos os meios,
inclusive pelo pensamento, pela inteligência, a encontrar o seu lugar justo
numa nação justa e digna.
Darcy Ribeiro
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