NETO, Geraldo Brandão
RESUMO: A
Literatura é uma arte que através dos séculos descreveu em suas
letras o nascer e o desaparecer de diversas nações. Procurou
relacionar as mais diversas experiências entre o homem e seu
ambiente, demonstrando uma relação de mútua dependência entre
ambos. Por meio destas relações, cria-se uma atmosfera de estreita
sincronia entre o homem e o lugar ocupado por ele em que, por meio de
diversas situações, o homem se identifica com este espaço e por
ele é delineado, admitindo de tal forma a criação de sua
identidade. Assim, o presente artigo procura delinear no conto
Voluntário, de Inglês de Sousa, algumas interpretações que
evidenciem a representação da identidade amazônica na formação
do homem da região, em especial do caboclo, aqui caracterizado na
figura da personagem Pedro. Para concretizar este objetivo, o
trabalho conta com os conceitos perpetrados por teóricos como Homi
K. Bhabha, Raymond Williams, Benedict Anderson, dentre outros. Apesar
de diferentes em suas temáticas, os pensadores utilizados como
suporte para este trabalho acabam por convergir em um único foco,
que consiste em criar uma análise da construção de uma comunidade
ou até mesmo de uma nação e a relação que os indivíduos têm
para com essa estruturação. Assim, possuir uma identidade não é
somente possuir características próprias, mas admitir em nosso
interior aspectos do cotidiano local, como as relações pessoais, os
costumes e as situações mais comuns da realidade para fomentar no
aspecto da criação da identidade.
Palavras-chave:
Amazônia, narrador, Pedro, caboclo, identidade, representação.
ABSTRACT:
The literature is an art that through the centuries, described on its
letters, the birth and the disappearing of several nations. It tried
to relate the most various experiences between the men and their
environment, showing a mutual dependent relationship between both. By
means of these relationships, it creates an atmosphere of narrow
synchronism between the man and the place occupied by him that, for
several situations, he identifies himself with this space and it’s
lined for him, admitting that way the creation of his identity. That
way, the present article tries to line in the tale “Voluntário”,
some interpretations that evidence the amazon identity’s
representation in the formation of region’s man, especially the
“caboclo”, that it’s known here in the figure of Pedro.
Concluding this objective, the work counts on the concepts created by
theoretical people like Homi K. Bhabha, Raymond Williams, Benedict
Anderson, among others. In spite of the differences in their themes,
these theoretical whosewere used like a support for this workend in a
run into a focus, which consists in creating an analysis of a
community construction or even a nation and the relationship that the
individuals have with this structure. This way, to have an identity
is not only to have own characteristics, but admit in our inner
aspects of the local routine, like the personal connections, the
customs and the common situations of the realityto
support the identity’s creation aspect.
KEY WORDS: Amazon,
narrator, Pedro, caboclo, identity, representation.
INTRODUÇÃO
Antes de elaborar um
conceito técnico para o vocábulo identidade, vale pensar em um
conceito superficial. O questionar sobre o que venha a ser a
identidade é também realizar um autoquestionamento: quem sou eu? Ao
responder esta pergunta, automaticamente formula-se um caráter
objetivo de nós mesmos, isto é, cria-se um julgamento daquilo que
somos, e, por conseguinte estaremos descrevendo a nossa própria
identidade.
Cada indivíduo é dotado
de características peculiares que o tornam único. Levando estas
afirmações para a realidade brasileira de ontem e de hoje, tal
proposta se faz ainda mais desafiadora, pois se sabe desde os tempos
do Brasil Colônia que a sociedade na qual estamos inseridos sempre
foi uma sociedade heterogênea, reforçando ainda mais a questão da
identidade do povo, que presente nas vastas e específicas regiões
do país acabaram por admitir em sua formação pessoal aspectos
próprios de tais lugares. Destarte, vale ressaltar que além de
possuirmos características inerentes ao nosso ser, também somos
moldados pelo espaço em que nos encontramos, seja em um espaço
urbano, seja em um espaço rural. A partir dessa inserção,
afirma-se que o homem está condicionado à profunda interação com
o meio em que vive, estabelecendo uma íntima ligação com a sua
comunidade, mesmo que “jamais conheça, encontre ou nem sequer ouça
falar da maioria de seus companheiros, embora todos tenham em mente a
imagem viva da comunhão entre eles” (ANDERSON, 2008: 32)
Constrói-se por meio do
processo de aquisição de uma identificação com o ambiente uma
ideia duplicada, pois ao agir em seu ambiente comum, o homem admitirá
a partir de tal ação uma imagem que se reflete em seu ser, e tal
imagem irá estruturar o pilar de uma identidade inerente ao próprio
indivíduo. Se identificar com o seu ambiente natural não é somente
criar um elo, mas ter consciência de um conhecimento profundo deste
mesmo espaço, ou seja, sentir-se enraizado e pertencente a tal
hábitat:
Primeira: existir é ser
chamado à existência em relação a uma alteridade, seu olhar ou
locus. É uma demanda que se estende em direção a um objeto externo
e, como escreve Jaqueline Rose, ‘É a relação dessa demanda com o
lugar do objeto que ela reivindica que se torna a base da
identificação. (Bhabha, 2010: 76)
Seguindo a citação,
convém afirmar que a construção de uma identidade social se
estabelece com a reivindicação daquilo que pertence ao homem que
está inserido em um determinado ambiente, pois a partir de tal
exigência, ele conseguirá se identificar com o meio.
O
mundo amazônico é um locus em constante mutação. Inerente a esse
mundo real e também imaginário tem-se diversas situações que
enfocam uma realidade bastante peculiar, que ora oscila entre o
tradicional, ora se faz presente numa inserção ao mundo moderno.
Retratar a realidade do homem amazônida é um trabalho que vem sendo
proposto nos mais diversos ramos de estudo. Revelar como esse homem
se apresenta, suas características, seus dons, seus pensamentos e
sentimentos é uma tarefa destinada àqueles que observam essa
realidade local através de uma apurada ótica, ótica essa que
analisa minuciosamente a relação do homem com seu meio,
evidenciando nesta perspectiva a formação do indivíduo quanto a
busca por sua identidade e pela representação de sua realidade.
Assim,
o presente artigo busca enfocar no conto Voluntário, contido
na obra Contos Amazônicos, de Inglês de Sousa, as
perspectivas literárias e culturais que desencadeiam na identidade
amazônica das personagens e como estes são representados.
Atentaremos aqui para a análise da personagem Pedro, figura central
da trama. Importante salientar o modo de vida rústico descrito na
narrativa, evidenciando dessa maneira uma realidade puramente local,
típica e que serve como espelho para a compreensão deste “mundo”
que parece estar à parte do território nacional, um mundo que
flutua na imensidão de seu caráter social e imaginário. Este
trabalho segue múltiplas questões para enfocar em seu objetivo
principal, o estudo da identidade, porém, sem jamais deixar a margem
o próprio texto literário, no caso, o conto, como forma melhor de
compreensão desta identidade.
NARRATIVA/DRAMA
Todos sabem da relação
Literatura e História. E o reflexo disso são as obras que se
apresentam recheadas de críticas sociais que deixam transparecer a
insatisfação do autor para com a realidade em que vive. É comum,
portanto, que personagens acabem se apresentando de forma a
caracterizar essa insatisfação.
Nesta história,
especificamente, verifica-se que tudo gira em torno da ironia. É com
o título, que Inglês de Sousa inicia sua crítica em torno das
ações militares que aconteciam no país e como essa prática se
refletia na situação da população brasileira, haja vista que a
mesma não possui poder de escolha, sendo totalmente submissa as
ordens provenientes da corte instalada no Rio de Janeiro. Um exemplo
disso observa-se no conto Voluntário, um texto que reflete a
crueldade com que eram recrutados os homens que participariam da
guerra do Paraguai.
No
conto em estudo, Inglês de Sousa narra a história de Pedro e sua
mãe, a velha tapuia Rosa que viviam numa vila as margens do rio,
próxima a cidade de Alenquer, no interior do Pará. Os dois, filho e
mãe, vivem sossegadamente com um sustento mínimo até que Pedro é
recrutado a força pelo Capitão Fabrício para servir na guerra. A
partir de então, o conto ganha uma conotação histórica, relatando
este fato marcante na historiografia nacional. A partir disso, sua
mãe, Rosa, segue numa tentativa de resgatar seu filho e encontra em
Alenquer um antigo conhecido, advogado, que em dias passados já
dormira em sua casa. Expõe para ele a situação ocorrida, recebendo
sua ajuda com o intento de soltar seu filho. O advogado procura na
cidade contatar as autoridades locais para libertar Pedro, porém não
consegue, já que o juiz que analisava o caso foi subordinado a
enviar o jovem tapuio para o “Paço da Pátria”, isto é, para
combater na guerra. Ao longo do texto, as personagens seguem uma
única linha de comportamento, sendo dessa forma consideradas
personagens planas, pois cada persona permanece agindo segundo
uma forma de conduta. Existem, porém, algumas mudanças no que diz
respeito às atitudes das personagens. Pedro, por exemplo, quando
assediado pelo Capitão Fabrício para servir como voluntário na
guerra transforma-se numa fera que luta por sua sobrevivência:
Foi uma cena terrível
que teve lugar então. A velha Rosa, desgrenhada com os vestidos
rotos, cobertos de sangue, soltava bramidos de fera parida. Pedro
estorcia-se em convulsões violentas, e os soldados não conseguiam
arredá-lo da mãe. Fabrício ordenando que levassem o preso, lançara
ambas as mãos aos cabelos da velha e puxando por eles, procurava
conseguir que largasse as roupas do filho. Os guardas impacientes e
coléricos desembainharam a baioneta e começaram a espancar
alternadamente a mãe e o filho, animados pela voz e pelo exemplo do
sargento, ainda pálido pelo susto que sofrera. (SOUSA, 2005: 30)
Esta
passagem supracitada evidencia uma espécie de jogo entre as figuras
do colonizador e do colonizado ou do opressor e do oprimido, pois
manter um sob custódia é ao mesmo tempo reforçar a sua própria
existência, já que estas personagens tendem sempre a se
complementar no interior da narrativa. Capturar Pedro e levá-lo como
voluntário para a guerra não é somente praticar uma tirania
construída por meio da inveja que sentem da destreza física do
jovem tapuio, traço primordial para a realização do recrutamento,
mas sim subjuga-lo a tal ponto que a partir disso se estabelecerá a
desconstrução da identidade da figura central, pois acarretará na
tensão cisão da representação de sua identidade e “é dessas
tensões – tanto psíquicas quanto políticas – que emerge uma
estratégia de subversão” (BHABHA, 2010: 101). Ela é um modo que
busca não desvelar a completude do Homem, mas manipular sua
representação, seu modo de ser e aniquilar a sua essência.
Estória
narrada predominantemente em terceira pessoa, descrita num tempo
cronológico pelo advogado contratado por Rosa para defender o filho,
o conto apresenta um narrador onisciente e onipresente. O narrador, a
princípio narra em terceira pessoa, como no seguinte excerto: “Pedro
era em 1865 um rapagão de dezenove anos, desempenado e forte. Tinha
os olhos pequenos, tais quais os do pai, com a diferença de que eram
vivos, e de uma negrura de pasmar” (SOUSA, 2005: 24). Porém,
ocorre uma mudança na narrativa, a história é contada por um
narrador que é testemunha dos fatos ocorridos com Pedro e sua mãe
Rosa. Assim, podemos entender o narrador homodiegético, ou, seja, em
1ª pessoa, mas que não é a personagem principal da trama, pois o
narrador surge como o advogado que iria interceder por Pedro e ele
afirma que: “Estava eu a esse tempo em Santarém, preparando uma
viagem a Itaituba, a serviço da minha advocacia” (SOUSA, 2005:
32). A narrativa segue apresentando uma linguagem coloquial e
regional, típica do povo amazônico evidenciando dessa forma um dos
elementos que contribuem na construção de uma identidade amazônica
no texto:
Apesar da pobreza rústica
da casa, com as suas portas de japá e as paredes de sopapo, com o
chão de terra batida, cavada pela ação do tempo, tinha a tapuia em
alguma conta o asseio. Trazia o terreiro bem varrido e o porto livre
das caravanas que a corrente do rio vinha ali depositando. (SOUSA,
2005: 23)
A ambientação da vida
do homem amazônico, retratando o cotidiano real e mágico de cada
tapuio é relatado na trama quando o narrador descreve o ribeirinho
contemplando o vasto mundo que o cerca, como observa-se no trecho
abaixo transcrito:
Em que pensará o pobre
tapuio? No encanto misterioso da mãe-d’água, cuja sedutora voz
lhe parece estar ouvindo no murmúrio da corrente? No curupira que
vagabundeia nas matas, fatal e esquivo, com o olhar ardente, cheio de
promessas e ameaças? No diabólico saci-pererê, cujo assobio
sardônico dá ao corpo o calafrio das sezões? Em que pensa? Na
vida? É talvez um sonho, talvez nada. É uma contemplação pura.
(SOUSA, 2005: 26)
A
DOMINAÇÃO COMO FORMA DE EXCLUSÃO DA IDENTIDADE
O
conto Voluntário é uma grande ironia, pois como se pode
verificar no trecho transcrito abaixo, o recrutamento era dado de
forma mais violenta e desumana possível. Sobre essa perspectiva,
Inglês de Sousa (2005), relata este fato através da seguinte
situação:
O rapaz soltou um grito
surdo, avançou contra Fabrício, arrancou-lhe a espingarda das mãos
e brandiu-a sobre a cabeça do capitão, como se fora uma bengala.
Quando ia descarregar o golpe sentiu-se agarrado. Era o sargento
Moura e dois soldados, que saindo de um matagal próximo, moviam-se
aproximando sem serem vistos. Ao ruído da luta, acudiu à velha
Rosa, que, soltando brados lamentosos, tentou arrancar o filho aos
soldados, mas o capitão Fabrício segurou-a por um braço e atirou-a
de encontro a um esteio da casa. (: 30)
Na
obra temos a relação entre o dominador e o dominado, representados
por “capitão Fabrício, nomeado recrutador em todo o termo de
Alenquer, recebera ordem terminante do presidente da província para
mandar pelo primeiro vapor um contingente de voluntários, custasse o
que custasse” (SOUSA, 2005: 28); e pelo jovem Pedro,
este filho único da velha tapuia Rosa, que não poderia ser
recrutado para a guerra do Paraguai.
Nessa
ocasião, o narrador, foi procurado por Rosa, que lhe havia dado
guarida em algumas passagens pelo igarapé de Alenquer. Foi ela quem
lhe contou à história que ele narrara até aquele momento do conto.
Ante a astúcia das forças “legalistas”, o que fez o advogado
para soltar Pedro foi em vão, pois ele fora embarcado antes dos
demais “voluntários”, o que fez o advogado pensar que o jovem
estava livre de sua “obrigação” com a Pátria.
Ao
procurar velha Rosa para dar a boa notícia, esta replicou afirmando
que aquilo não era verdade, expondo seu caráter supersticioso,
verificado na seguinte fala do narrador: “Na sua opinião, eu
estava enfeitiçado. Pedro não estava no quartel, e, portanto,
seguira naquele mesmo vapor para capital” (SOUSA, 2005: 35).
Em
conversa com o juiz, o advogado constatou que Pedro realmente estava
entre os embarcados, o que gerou seus protestos:
A indignação fez-me
ultrapassar os limites da conveniência. Perguntei irado, ao juiz
como se deixara ele assim burlar pela polícia, expondo a dignidade
do seu cargo ao menosprezo de um funcionário subalterno. Mas ele,
sorrindo misteriosamente, bateu-me no ombro e disse em tom paternal:
– Colega, você ainda
é muito moço. Manda quem pode. Não queira ser palmatória do
mundo. (SOUSA, 2005: 35)
A
última frase do juiz funciona como uma denúncia de um sistema
corrupto, que não leva em consideração os direitos alheios, mas
sim as conveniências, tanto que a resposta do magistrado é
reveladora.
O
destino de Rosa foi perambular pelas ruas de Santarém, carregando os
estigmas da exclusão, denotado nos qualificativos a ela atribuído:
“pobre tapuia doida”. Os três termos expõem sua condição de
desvalida, de mestiça e de sem voz, pois a fala do louco é
desconsiderada.
A
exclusão é demarcada mesmo no discurso daquele que, aparentemente,
questiona o sistema excludente, o narrador, pois em todo o conto ele
faz com que os posicionamentos de Pedro e de sua mãe sejam feitos
por meio do discurso indireto, portanto vetando-lhes a palavra.
A
ausência do poder da palavra pode ser depreendida também de algumas
aproximações feitas, como no momento em que Pedro foi abordado
pelos homens do capitão e sua mãe interferiu: “A velha Rosa,
desgrenhada, com os vestidos rotos, coberta de sangue, bramidos de
fera parida” ou fala do capanga Manoel de Andrade, ao mandar
prenderem Pedro: “- Amarra porco, rapaziada!”. Ao serem vistos
como animais perdem o aspecto humano, demarcado principalmente pelo
uso afetivo da palavra.
A
única expressão direta de Rosa ocorre ao final da narrativa: “Meu
anel de diamantes/ caiu n’água e foi ao fundo;/ os peixinhos me
disseram:/ viva Dom Pedro Segundo!”. Porém, essa fala é
desconsiderada, devido à loucura da mulher e ao fato de trata-se de
uma “quadrinha popular”, portanto de cunho coletivo. O caráter
pessoal da fala está subjacente ao texto e advém justamente da
ironia que inicia o conto, o seu título. A trova é uma crítica ao
Segundo Império e propõe um pequeno jogo alegórico em que os
elementos da composição popular podem representar elementos do
conto: anel de diamantes = Pedro; caiu n’água e foi ao fundo =
sucumbir na guerra; os peixinhos = opinião pública; e Dom Pedro
segundo = sistema vigente.
Como
se observa, a narrativa de Inglês de Sousa se afigura como um
documento de crítica social, e é por conta desse aspecto, dentre
outros, que sua obra continua atual, podendo funcionar como uma fonte
de leitura da cultura e do homem da Amazônia e do Brasil.
O RETRATO DO LOCAL
COMO REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE
Quando se trata a
respeito de uma identidade, tem por finalidade primordial buscar uma
revelação de aspectos interiores e exteriores de si ou de outrem.
Uma revelação que tem por base um caráter empírico, ou seja, é
necessário caracterizar os elementos que formam todo um ambiente ou
um ser. Para tal, é de suma importância a inserção do indivíduo
neste ambiente identitário, onde ele se vê como parte não somente
extrínseca, mas também intrinsecamente num espaço que interage com
ele, onde ele (indivíduo) o forma e automaticamente também é
formado por ele (espaço/local).
A identidade cultural é
um conjunto vivo de relações sociais e patrimônios simbólicos
historicamente compartilhados que estabelece a comunhão de
determinados valores entre os membros de uma sociedade. Sendo um
conceito de trânsito intenso e tamanha complexidade, podemos
compreender a constituição de uma identidade em manifestações que
podem envolver um amplo número de situações que vão desde a fala
até a participação em certos eventos.
Durante muito tempo, a
ideia de uma identidade cultural não era devidamente problematizada
no campo das ciências humanas. Com o desenvolvimento das sociedades
modernas, muitos teóricos tiveram grande preocupação em apontar o
enorme “perigo” que o avanço das transformações tecnológicas,
econômicas e políticas poderiam oferecer a determinados grupos
sociais. Nesse âmbito, principalmente os folcloristas, defendiam a
preservação de certas práticas e tradições.
Partindo dessas novas
noções de identidade, antigos temas relacionados à cultura que
aparentavam completo esgotamento ganharam um novo fôlego
interpretativo. As identidades passaram a ser trabalhadas com
definições menos rígidas. Diversos estudos vão contra a ideia de
que uma população deve abraçar a sua cultura e garantir todas as
formas possíveis de cristalizá-la. Dessa forma, presencia-se a
abertura de novas possibilidades de entender o comportamento do homem
com seu mundo. Assim, no conto “Voluntário”, de Inglês de
Sousa, tais aspectos que tendem a ir em busca de uma identidade
amazônica, através de descrições minuciosas dos caracteres que
formam o povo amazônida, seu modo de vida e o seu ambiente.
Salienta-se aqui que a identidade não é uma máxima dentro da obra
de Inglês de Sousa, mas procura-se levantar uma questão que pode se
apresentar em um ou outro texto do autor paraense, sendo assim,
possível de discussão.
É
notório como o narrador descreve o ambiente amazônida, e em
especial a população ribeirinha. Ao longo de certas passagens da
narrativa, o narrador relata o ambiente ribeirinho como um locus
amoenus, um lugar de calma, de paz e onde todos se congratulam
através de uma perspectiva muito ímpar, pois a vida do campo [...]
é móvel e presente: move-se ao longo do tempo, através da história
de uma família e um povo; move-se em sentimentos e ideias, através
de uma rede de relacionamentos e decisões (Williams, 2011: 21). Na
comunidade ribeirinha não existe egoísmo, individualidade, posto
que o tudo pertence a todos, demonstrando uma divisão igualitária
das “coisas da gente tapuia”, pois “quanto à generosidade,
basta dizer que jamais lhe sucedia arpoar um pirarucu sem presentear
com a ventrecha os vizinhos pobres, e se um belo dia lhe caía sorte
de matar um peixe-boi no lago, havia festa em casa. (SOUSA, 2005: 24)
Esta
passagem confirma um traço peculiar referente à personagem central
da trama, Pedro, que “era o mais destro
pescador do igarapé de Alenquer. Nenhum conhecia melhor do que ele
as manhas do pirarucu e da tartaruga” é tratado como um
tapuio autêntico que nasceu para lidar com as coisas da floresta,
afeiçoado a pesca, ao trato com as coisas da natureza exuberante que
o cerca, além de ser muito bem quisto por seu povo. Assim, a
identidade presente no texto está fortemente ligada à figura de
Pedro, que como mencionado, mantém uma adaptação concreta ao
espaço em que vive, um espaço verdadeiro, onde o protagonista
mantém uma relação de familiarização, um espaço que além de
ser de todos, também é seu, fato este que evidencia uma relação
umbilical da personagem e seu ambiente. Quando se notam tais
aspectos, em que o indivíduo é basicamente formado por um lugar no
qual está inserido, torna-se claro a presença de uma relação
identitária do ambiente. Reforça-se o valor da identidade segundo a
afirmativa de CANCLINI (2000: 190), que no seu ponto de vista que
“ter uma identidade seria, antes de mais nada, ter um país,
uma cidade ou um bairro, uma entidade em que tudo o que é
compartilhado pelos que habitam esse lugar se tornasse idêntico ou
intercambiável”. A condição social do homem, seu entendimento de
si e do meio em que vive promove uma identidade imediata, por meio da
construção de um corpus social que caracterizará e dará forma a
um determinado espaço.
O
grau de identidade não se apresenta somente por meio de uma ótica
da relação entre personagem e espaço, mas também através de uma
cultura local que é seguida a risca por todos os seres que habitam a
região, que tratam e seguem suas vidas mediante as práticas de
normas simples e naturais, pois “foi pela reunião de uma
maquinaria monstruosa de descrições – de nossos corpos, nossos
atos de fala, nossos hábitats, nosso conflitos e desejos, nossa
política, nossas sociabilidades e sexualidades” (AHMAD, 2002: 87)
que estruturam a essência de um povo e, por conseguinte sua
identidade. O caboclo amazônida retratado no conto é um tipo humano
que vê a vida passar sem pressa nenhuma. Exala em suas atitudes uma
tranquilidade latente, onde fuma seu tabaco, come seu peixe,
demonstrando assim um aspecto de seu cotidiano:
Quando caía a tarde,
depois de ter comido a sua lasca de pirarucu assado ou a gorda posta
do fresco tambaqui, com pirão de farinha d’água, molho de sal,
pimenta e limão, ia sentar-se à soleira da porta, de onde
contemplava o magnífico espetáculo do pôr-do-sol entre os aningais
da margem do rio e ouvia o canto da cigarra, chorando saudades da
efêmera existência, que a tananá oculta, em doce estribilho,
consolava. (SOUSA, 2005: 25)
Observa-se
então a rotina do caboclo que reside às margens dos grandes rios da
Amazônia, conectado com o mundo do qual extrai o seu sustento e para
o qual pode ao fim da tarde contemplar. Tal contemplação ocorre
como uma junção do magnífico com o grandioso, revelando desta
forma o caráter poético da enormidade do ambiente, e quando este
aspecto se revela, tende a acarretar numa diminuição do próprio
caboclo que se vê minúsculo diante de um ambiente que para ele é
considerado seu próprio mundo, ou melhor, este ambiente é o mundo,
no sentido que tudo possui, que gera a vida e que a vida sustenta.
Paes Loureiro, em Cultura Amazônica: uma poética do imaginário,
afirma que:
Percebe-se nas relações
estetizantes com o real da Amazônia, que há um maravilhamento do
homem, o que é próprio de quem está diante de algo que é imenso e
diante do qual a pequenez do homem se evidencia. Pequenez que é
superada pelo homem natural através de um imaginário que a
transforma e permite uma articulação com a natureza, dentro de uma
relação onde estão presentes as categorias perto-longe,
convivência-estranhamento. Penetrar na floresta, navegar nos
intermináveis e incontáveis rios (aproximadamente 14 mil cursos
d’água) provoca a sensação de estar adiante ‘do mundo’ e não
a de estar diante de um mundo delimitado; a de estar diante do
próprio universo. (1995: 61)
O caboclo amazônida é
retratado na narrativa como um ser de virilidade, capaz de adentrar
na floresta e conhecer todos os seus mínimos detalhes, mantendo uma
afinidade com o ambiente, o que é notório no povo da região, em
especial o povo ribeirinho. Assim, o narrador destaca os caracteres
físicos de Pedro, afirmando ser ele um caboclo “legítimo”. A
partir desta afirmativa, admite-se uma característica marcante na
Literatura Amazônica que seria formar uma “persona” local, isto
é, criar um indivíduo que congratule de aspectos muito
peculiarmente naturais, aspectos estes que são muito melhor
delineados quando o indivíduo referido vive em contato direto com
seu locus, nascendo, portanto, a figura do caboclo como
elemento central desta Literatura, já que o caboclo é apresentado
como objeto de reflexão do homem da Amazônia, segundo afirma COSTA
(2010) a respeito do caboclo como elemento preponderante da
Literatura Amazônica:
A literatura ao buscar
como objeto de reflexão o homem da Amazônia acabaria mais cedo ou
mais tarde elegendo, ou melhor dizendo, construindo seu personagem
principal. E no caso paraense, para ficarmos apenas no estado do
Pará, esse personagem foi sem dúvida nenhuma o “caboclo”. (:
65)
O
caboclo amazônida é retratado então numa perspectiva reflexiva sob
a condição do homem da Amazônia, que procura caracterizar um
indivíduo que se expõe em todos os seus aspectos, desde os mais
comuns, até os mais complexos. MAGALHÃES LIMA (1999) em seu artigo
A Construção Histórica do Termo Caboclo – Sobre estruturas e
representações sociais no meio rural amazônico, aborda de
maneira objetiva as múltiplas denominações atribuídas ao vocábulo
caboclo, teorizando atos e hábitos peculiares do homem amazônida
que vive em constante fluxo relacional com o ambiente em que está
inserido. Numa destas teorias, ela nos informa que:
O arquétipo do caboclo
também é composto de traços culturais que distinguem seu modo de
vida de uma existência branca e urbana. As características de uma
arquitetura distinta, os meios de transporte que usa seus
instrumentos de trabalho, seu conhecimento e modo de manejar os
recursos da floresta, seus hábitos alimentares, sua religiosidade,
mitologia, sistema de parentesco e diversos maneirismos sociais
expressam a existência de uma cultura cabocla que é básica para o
conceito desse típico amazônida. (: 13)
Assim, pode-se perceber
uma teorização sobre o modo de vida caboclo, isto é, uma descrição
puramente objetiva dessa realidade. Numa espécie de fusão, entre o
objetivo e o subjetivo, carregado de uma conotação histórica,
Inglês de Sousa aborda esta concepção de criação de uma
identidade amazônica retratando em seu texto um típico caboclo do
Amazonas, um indivíduo que só vai existir nesse e para esse
hábitat. É importante ressaltar o olhar observador do autor, pois
mesmo distante da Pará, sua terra natal, que ele abandonara cedo,
mesmo assim, ele consegue criar a imagem de um ser que é a
materialização mais comum do espaço social: o caboclo. O caboclo
pode ser considerado a metáfora de uma pura identidade amazônica,
portanto uma representação concreta do seu lugar de origem e não
se deve jamais esquecer que tratar de uma discussão acerca da
identidade é a mesma coisa que reforçar a prática de um discurso
analítico de compreensão de um específico objeto social, já que o
caboclo, em muitos casos seja considerado um grupo social da
Amazônia, ainda se discute a sua situação étnica, pois
“entretanto, a questão mais importante a ser considerada na
análise da categoria caboclo é exatamente a da não-definição: o
caboclo é aquele que está nas franjas, nas fronteiras da
modernidade, o que estava antes da modernidade, o que é de certo
modo contra a modernidade” (RODRIGUES, 2006: 125).
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Neste
artigo, procura-se relatar a evidência de marcas de identidade que
ora se apresentam em algumas passagens do conto Voluntário,
escrito pelo paraense Inglês de Sousa. Com a descrição dos hábitos
e costumes do povo amazônida, o autor procura mostrar o cotidiano
simples de um povo que oscila entre o tradicional e o moderno, num
contraponto entre o rural e o urbano, característica tão fortemente
enraizada na cultura popular do Norte.
Tendo
como enfoque principal a situação do caboclo como uma classe
social, que vive em constante relação com o ambiente e que deste
tira o seu sustento, o autor aborda questões particulares daquela
realidade tão tipicamente comum, mas recheada de um fator imaginário
estetizador, como afirma Paes Loureiro, em seu Cultura Amazônica:
uma poética do imaginário. Este mesmo fator imaginário
estetizador tende a construir uma sequência de aspectos que são
altamente concernentes ao ambiente, formando neste, uma auratização,
construindo, assim, uma noção de identidade.
Torna-se
claro também que a noção de identidade vai muito mais além do que
uma análise da relação entre o homem e o meio em que está
inserido. A identidade constrói-se mediante a afinidade do homem,
inserido em seu espaço próprio, com o outro, fato que acontece no
conjunto da alteridade. Isso confirma que uma renúncia de si é a
comprovação do caráter e da presença de um indivíduo que se faz
único por causa da construção de seus traços físicos mais comuns
ou pela presença ativa de uma cultura única. Isso entra e acordo
com um discurso crítico pós-colonial que afirma a outridade do ser
enquanto objeto, como fonte de estímulo para a acentuação de sua
essência, conceituando um caráter único de formação de uma
imagem local em que o meio reflete um íntimo de seu vivente mais
habituado.
Portanto,
definir um aspecto identitário em torno de uma cultura amazônica é
enfatizar a figura de homens que trazem consigo uma série de
discursos de formação étnica. A evidência dos conceitos
perpetrados neste artigo torna-se claro quando o narrador de
Voluntário expõe a presença única de uma persona diretamente
identificada com o espaço em que vive a personagem Pedro. Pode-se
observar, desta forma, que a presença de Pedro é marcante no conto,
por ele trazer consigo aspectos tão particulares, quanto também são
aspectos comuns de sua região. Para finalizar, conclui-se que os
discursos de estruturação da identidade se baseiam em perspectivas
críticas pós-coloniais, as quais “exigem formas de pensamento
dialético que não recusem ou neguem a outridade (alteridade) que
constitui o domínio simbólico das identificações psíquicas e
sociais” (BHABHA, 2010, p. 242).
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